Ultimamente tenho percebido com crescente tristeza que muito da educação que recebi foi profundamente equivocada, pois tenho tido problemas por ser uma pessoa educada e ponderada, mas mesmo anos de meditação e treinamento para não ser vítima das próprias emoções podem claudicar diante da crescente falta de escrúpulos e sensatez das pessoas. Ainda mais, penso que aqueles que se pautam pela honradez deveriam aprender um pouco com aqueles que são torpes e pusilânimes, mesmo as escrituras trazem advertência aos filhos da luz quanto a isso:
Eis que vos envio como ovelhas ao meio de lobos; portanto, sede mansos como as pombas e astutos como as serpentes.
Durante os anos em que cursei a minha primeira faculdade, conheci um sujeito bastante sem caráter de quem aprendi algumas lições valiosas, diante do meu comportamento, sempre prestativo, manso e compreensivo ele advertia “a fronteira entre o bom o besta é tênue”. Mesmo vindo de alguém de caráter duvidoso, são sábias palavras. Em tempos em que ser espertalhão e egoísta é preferível a fibra moral e o altruísmo, é preciso que aqueles que se aventuram na vereda de um compromisso com algum tipo de valor ou bússola moral aprendam com os maus. Confúcio disse certa vez, ao ser indagado sobre quem foram seus mestres que “todos os homens são meus mestres, pois os bons me servem de exemplo e os maus de alerta”.
O convívio com o que há de torpe e pusilânime tem me ensinado valiosas lições, principalmente sobre responsabilidade individual. Nossas ações e palavras repercutem nas pessoas. Tenho visto, para a minha tristeza a calúnia e a falsidade prosperarem, e tenho sido testemunha de seus efeitos devastadores. Tenho presenciado a trapaça e a mentiram serem usadas como armas de maneira leviana e irresponsável, sem o menor pejo e sem o menor escrúpulo, e uma vez mais assistido a seus efeitos e sentindo na própria carne o látego impiedoso da mentira. Não é fácil ser como cordeiro em meio aos lobos, não sem a astúcia da serpente.
Existe uma fábula budista que transmite a mesma mensagem da passagem de Mateus 10.16. Conta-se que o Buda estava viajando pela Índia quando passou por um vilarejo onde as pessoas padeciam de sede. Nesse lugarejo existia um poço e água em abundância, mas nesse mesmo poço habitava uma naja de presas compridas como adagas que pingavam veneno. Compadecido com o sofrimento das pessoas e preocupado com o destino da serpente, que acumulava mau karma devido as suas ações ele interveio. Com sua infinita sabedoria e compaixão ele converteu a naja a não violência e partiu. Tempos depois, ao passar pelo mesmo vilarejo ele encontrou a outrora majestosa e temível serpente reduzida a um farrapo, mera sombra de sua antiga glória, maltratada e machucada. Curioso ele indagou sobre a origem de tamanho infortúnio. “fostes tu, respondeu a naja, o motivo de meu atual estado deplorável. Quando parei de atacar os aldeões eles começaram a se aproximar, a princípio ainda receosos, mas logo se sentiram a vontade e sem nenhum medo passaram a me maltratar e humilhar e aqui estou eu, fraca e derrotada!”. Buda sorriu com paciência e retrucou “eu te disse para não picar as pessoas, mas em momento algum te disse para não silvar”.
Assim como a naja da parábola budista, muitos daqueles que acreditam em agir tendo em mente mais do que o imediatismo egoísta da satisfação de seus próprios desejos, acabam vítimas de sua própria paciência e ponderação. Para aquele que pratica o mal e que age com desdém e egoísmo, e que apesar de ostentar destemor secretamente teme até mesmo a própria sombra, a calma é compreendida como fraqueza, a franqueza e a honestidade são vistas como estupidez.
Minha espada tem estado embainhada por tempo demais, talvez por ter abusado de minha força no passado, tenha me tornado vítima de fatal enantiodromia, e deixado sua lâmina enferrujar pela falto do uso, mesmo quando seria realmente necessário sujá-la de sangue. Talvez não baste apenas silvar, mas sim fazer uso efetivo das presas e do veneno. Campbell em um de seus livros disse não concordar com compaixão incondicional, pois existem muitas pessoas que mereceriam um belo cruzado no queixo.
Infelizmente uma vez mais me encontro diante das fronteiras da “terra devastada”, uma vez mais me afasto de mim mesmo, e estou prestes a pagar um preço alto por isso. Não que a outra senda seja fácil, o Ecce Homo talvez seja ainda mais difícil e árduo, mas é a senda que leva a busca de nossa “bem aventurança”, da fidelidade para com aquilo que se é verdadeiramente.
Não é fácil viver uma vida genuína, todos sempre possuem planos para você, mas tudo o que vive, a verdadeira maravilha de tudo o que vive, é que toda vida vive individualmente. Cada um de nós possui um caminho, caminho esse que repousa em nosso peito e que nunca é fácil de perceber. Os cavaleiros do Graal, ao começar sua busca entraram na floresta escura justamente onde não havia um caminho, onde ninguém jamais havia trilhado, onde não existiam pegadas a seguir. Eis o desafio colocado diante de todos nós, o desafio de encontrarmos a vereda que leva a nós mesmos.
Aqueles que trilham esse caminho não devem detestar o mal, já ouvi de minha professora Anizamba “nossa confusão mental é o nosso caminho espiritual”, e na visão budista aquele que nos ofende é um tesouro inestimável, pois nos dá uma oportunidade de praticar a compaixão. Mas novamente, compaixão não deve ser confundida com estultice! Manter-se inerte diante do mal não é compaixão, ao permitir que o mal seja praticado permitimos que aqueles que assim o fazem incorram na aquisição de grandes deméritos e se aprofundem em seus obscurecimentos. A mentira, a trapaça e a vilania sempre existirão, o mundo não precisa ser corrigido, ele é o que é, e não se enganem, é perfeito do jeito que é com toda a confusão e sofrimento. Mas para trilharmos o caminho da “bem aventurança” temos de cruzar espadas com as trevas. Darth Vader é uma emoção negativa, como ouvi do Dr Yang, mas ao mesmo tempo também uma pessoa real com quem devo me bater. Doravante o Darth Vader que se cuide...