segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Minha Despedida das Salas de Aula


Quando Norberto Bobbio se despediu de sua longa e prolífica carreira acadêmica, ele citou Max Webar, “A cátedra universitária não é nem para os demagogos, nem para os profetas.”. Webar estava correto, um demagogo não é capaz de ensinar, mas simplesmente de convencer, não tem compromisso com a verdade, mas apenas com seus interesses ou sua vaidade. O profeta, por seu lado, deseja seguidores que creiam em suas visões e se acomodem a sua sombra, no otium indignitatis daqueles que subsistem na proximidade de um mestre que lhes mantém numa cômoda infância espiritual, sem responsabilidades e nem preocupações.

Esses pensamentos me ocorrem justamente por estar a me despedir do meu papel de professor universitário, que venho desempenhando desde que me graduei em história em 2004. Não se trata necessariamente de uma aposentadoria, mas de seguir novos rumos, que me levam ao meu velho objetivo. Nesse momento de despedida, poderia certamente me deixar levar por certo saudosismo carregado de sentimentalidade, mas prefiro me despedir como professor e deixar registrado o que meus alunos me ensinaram nesses anos de docência. Os romanos já sabiam que “dicendo dices”, e eu aprendi muito com esse ofício tão peculiar e, como bem o sabia o velho Freud, impossível.

Há muitas similaridades entre o papel do analista e o do professor, e alguns dos conselhos que valem para um analista podem igualmente ser dirigidos aos mestres. Parafraseando Jung, tudo o que você pensa saber sobre os seus alunos é um preconceito ou uma projeção. Ao atravessar os umbrais de uma sala de aula, estamos numa miniatura curiosa de nossa sociedade, com suas mazelas e preconceitos, mas igualmente com tudo aquilo que nela viceja e vive, com a sutil diferença que ali se espera que as pessoas coloquem em questão as suas certezas e aprendam coisas novas. Por mais que ali possamos achar tudo aquilo a que estamos acostumados, a sala de aula é um lugar de transformação, que só vem depois da cuidadosa análise, da dissolução. Supor algo acerca dos seus alunos e agir a partir desses preconceitos pode ter o resultado de tornar os dois lados cristalizados, se o professor os trata como alunos eles o tratarão como professor, e isso só leva a estagnação. Assim como o analista, o professor precisa renunciar ao manto do saber, o que precisa ser cultivado em uma sala de aula é a dúvida, mas não qualquer dúvida, mas sim a dúvida metódica. Já existem certezas demais, e elas apenas nos paralisam. Gosto sempre de lembrar do mote formidável do racionalismo crítico de Popper “pode ser que eu esteja errado e pode ser que você esteja certo”, o primeiro a assumir essa postura racional deve ser o professor, e para ensiná-la ele deve primeiro vivê-la.

Assim como o analista, ao professor é direcionada toda sorte de projeções, e seus alunos irão lhe emprestar uma parte de suas almas. Isso lhe confere um poder sobre eles, mas lhe coloca aos ombros um fardo, pois agora pode influenciar, mas deve renunciar a toda pretensão consciente a isso. Influenciar e ensinar são coisas diversas, ensinar não é o mesmo que convencer. Heimrich Zimmer nos legou uma máxima fundamental dos upanishades, “há coisas dignas de serem aprendidas, mas que não são dignas de serem ensinadas”. As coisas mais importantes não são dignas de serem ensinadas, e assim como no caso do analista, a vontade de influenciar só priva o estudante de suas capacidades vitais, de suas potencialidades e do prazer da descoberta. Há verdades fundamentais as quais seus pupilos devem chegar sozinhos, outras podem ser transmitidas, e um bom professor deve ter a sabedoria de saber diferenciá-las. Jung disse, certa feita, ao homenagear seu grande amigo Richard Wilhelm, que “O homem reconhece instintivamente que toda grande verdade é simples. Aquele cujo instinto está atrofiado, imagina, por isso, que ela se encontra em simplificações baratas e trivialidades, ou, por outro lado, em razão de seu desapontamento, incorre no erro oposto de imaginar a verdade como algo infinitamente complicado e obscuro.” . Um professor cioso de seu ofício, jamais deve cair em simplificações baratas, ou mostrar-se obscuro para esconder sua falta de profundidade ou impressionar seus estudantes.

Uma das coisas mais importantes que um professor precisa estar ciente é justamente daquilo que ele não sabe. Por insegurança, puerilidade ou mesquinhez, alguns professores gostam de afetar um saber absoluto, sem dúvida e repleto de certezas. Toda e qualquer contrafação em sala de aula é um erro, mas esse é um dos piores. Fazer ciência é a arte de perguntar, e, como nos ensina Popper, toda ciência, para ser ciência precisa ser uma conjectura. Uma das mais valiosas lições que aprendi com Bachelard é a de que o cientista não tem direito a opinião, logo, caso eu nunca tenha estudado, ou pesquisado sobre algo, nunca me furtei de dizer “não sei”. Essa é uma frase libertadora, e que remove dos alunos os grilhões da certeza. Um professor precisa desconhecer muito mais do que aquilo que ele conhece, seu bem mais preciso é a sua ignorância, e deve se orgulhar dela e jamais tentar ocultá-la sob um véu pedante de autoridade. Um professor é antes de tudo um aluno, um estudante que jamais cessou de aprender, quando o aluno morre no peito do professor, este também fenece.

Um dos maiores historiadores do século XX, em sua derradeira obra, afirmou “[..] Não imagino, para um escritor, elogio mais belo do que saber falar, no mesmo tom, aos doutos e aos escolares. Mas simplicidade tão apurada é o privilégio de raros eleitos”. O mesmo Marc Bloch, afirma ainda nessa obra, que se a história falhar em divertir, certamente falhará em ensinar. Tal simplicidade deve ser almejada com afinco, pois diferente da simplificação barata de que falava Jung, ela consegue traduzir a verdade em sua simplicidade, com esforço podemos ser um desses eleitos, especialmente se compreendermos que esse esforço não serve a mim ou a necessidade de prestígio do eu, mas sim a meus alunos. Uma sala de aula precisa ser um lugar agradável, nossa sociedade nos obriga a passar anos a fio dentro delas e por muitas horas seguidas, tornar todo esse tempo algo fastidioso e chato é algo tolo de se fazer. Mas existem muitos obstáculo que impedem um professor de ser divertido, ou, ao menos agradável.

Alguns professores partem da premissa equivocada de que eles e seus alunos estão em lados opostos, são rivais. Professores e alunos estão do mesmo lado, seu objetivo é o mesmo, mas quando essa crença se instala, tudo o que se consegue é criar um clima insuportável de animosidade. Outros professores, em virtude de sua mediocridade, projetam em seus alunos a sua própria pequenez, e a usam para justificar seu fracasso em ensinar, ou seu descaso. Já escrevi certa feita, sobre um dos poucos ensinamentos que tive de meu pai, pois um de seus colegas chamava suas alunas de burras ao que ele retrucou “camarada, chamar as alunas de burras é fácil, o difícil é elevá-las ao seu nível”. O mínimo que se pode fazer por um aluno é tratá-lo com dignidade e respeito, e nunca deixar de ter esperança de que ele possa aprender, pois no fundo não sabemos realmente se ele pode ou não, sem esperança é impossível ensinar.

Fundamentalmente, como asseverou Jung, o que nós ensinamos é aquilo que somos. Assim como o analista, a principal ferramenta do professor é a sua personalidade, e ele deve velar por ela. Muito além do que se diz, o que mais impacta os alunos é quem nós somos. Somente alguém que é um indivíduo, que não está identificado com o próprio saber, o pensamento, a instituição, ou o papel de professor, é capaz de suportar a individualidade de seus alunos e ajudá-la a florescer. O papel de professor deve ser abandonado rapidamente, os generais vitoriosos de Roma tinham um escravo que lhes segurava acima da cabeça durante a parada da vitória uma coroa de louro e repetia incessantemente “tu és mortal”, e mesmo a modesta profissão de professor, pode levar a uma tal inflação. Fora da sala de aula, por mais que seus alunos o chamem de professor, você é apenas um sujeito que passeia com o cachorro e leva o lixo pra fora.

No mais, em todos esses anos, eu me diverti imensamente, tive alguns dissabores, aprendi muito mais do que ensinei e não tenho arrependimentos. Não deixarei de ser professor, tenho um compromisso moral com a Psicologia de Jung que me impele a ensiná-la, e certamente todo esse tempo como professor deixa marcas profundas. Certa feita, fui a um restaurante onde jamais estivera e, quando terminei de fazer o pedido, o garçom me perguntou “você é professor, não é?”, encabulado eu respondi afirmativamente. Tenho muito que agradecer a todos os meus alunos, especialmente aos que me causaram dissabores, pois eles foram meus maiores mestres e diante deles tive que desenvolver minha paciência e compaixão mais do que com os outros. Por sorte ou azar, os que me ensinaram compaixão e paciência foram poucos. Em sua maioria, eles me deram alegrias e bons momentos. Em geral não sou alguém que sente saudades ou se mantém preso ao passado, mas sentirei falta de todos vocês.