quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

É possível um ateu ser Junguiano?


Recentemente me fizeram uma pergunta bastante inusitada, porém muito interessante, em resumo, “é possível um ateu ser Junguiano?”. A resposta esse questionamento suscita alguns outros, no que concerne a perspectiva da ciência de Jung. Dentre esses questionamentos suscitados podemos pensar de imediato em qual seria o significado de religião para Jung? Ou o que ele entendo por ateísmo? Se levarmos a pergunta ainda mais longe, o que faz com que alguém seja um analista Junguiano? E de maneira negativa, o que faz alguém não ser? Eu não fui tão longe na resposta a essa interrogação, mas pretendo aprofundar aqui a minha resposta. De imediato a resposta a indagação é um sim e um não, obviamente explicarei os dois.
Sim, é possível ser Ateu e Junguiano, assim como é possível ser teísta e Junguiano, as duas coisas possuem vantagens e problemas. Jung era fundamentalmente um empirista, como ele afirmou em carta de 1947 a Erminie Huntress Lantero “não há uma única coisa na minha psicologia que não seja fundamentada por experiências reais”, ainda nessa mesma missiva afirma que toda a sua Psicologia deriva de sua experiência imediata com pessoas vivas, logo não se trata da formulação de experiências místicas ou de elucubrações filosóficas, mas do ponto de vista de um médico que tinha de tratar de seus pacientes que estavam sofrendo. O fato de ele ser um empirista e um pragmático, não significa que não existam influências filosóficas em seu trabalho, em especial Kant e James fundamentam diversas questões extracientíficas que aparecem na obra. Em especial, Kant leva Jung a sustentar uma postura de agnosticismo, que me parece ser fundamental para que ele elabore a noção empírica de realidade psíquica.
De acordo com Kant, Deus enquanto um ens metafísico realmente existente não pode ser objeto da experiência, logo não se pode constituir sobre ele qualquer conhecimento válido, sendo assim, na seara científica, não se pode afirmar nada sobre Deus. Isso significa que tanto a firmação sobre a existência de Deus quanto sobre sua inexistência são metafísicas, logo ambas impossíveis em termos empíricos ou mesmo racionais. Consequentemente, em termos estritamente psicológicos, ou seja, científicos, para Jung não cabe a ciência opinar sobre essa ou qualquer outra questão teológica ou metafísica, resta simplesmente não saber.
No que concerne a Psicologia enquanto um saber científico e racionalmente conduzido, todavia, existe a percepção empírica de que para ser real uma ideia basta existir. Jung afirma, de maneira tipicamente pragmática, que real é tudo aquilo que age, que atua. Nessa ótica, a ideia de existência de deus é psicologicamente real, bem como, a ideia da sua inexistência também o é. Numa perspectiva de uma ética clínica, as duas posições são perfeitamente válidas e reais, desde que atuem na vida das pessoas que as professam, que não sejam meras opiniões ou uma simples uma mascarada. Mas não se trata simplesmente dessa percepção tão singela, pois Jung com frequência fala em Deus em seus livros, e sempre, eu devo frisar, SEMPRE, deixa claro não ser teólogo e nem tampouco filósofo, mas sim um cientista. Ao falar em Deus, Jung está se referindo a um fato psíquico empiricamente verificável, tanto na experiência do homem moderno, quanto na antropologia, história das religiões e psicologia dos estados mórbidos da alma. Quando ele usa a palavra Deus, em termos psicológicos, ele está se referindo a Imago Dei, um fenômeno intuitivo, que significa aquilo que é mais importante, a maior quantidade de libido, uma imagem psíquica da totalidade, que pode ou não corresponder ao um ens metafísico realmente existente. Essa experiência, da imago dei, é imediata e sentida como supremamente real, vem carregada, em geral, de um afeto avassalador de espanto e terror, podendo ser tanto salvífica quanto destrutiva.
Logo, psicologicamente, Deus é real. Certa feita, ao ser questionando por um teólogo se ele afirmava que deus é psicológico, o que ofendia a sensibilidade desse teólogo, Jung resumiu assim esse insólito debate: para o teólogo psicológico não passava de algo menor, para Jung era justamente o mais importante, logo nem de longe dizer que deus é psicológico o diminui. Infelizmente, a maioria de nós, especialmente os psicólogos, tem uma sensibilidade similar à desse teólogo e não a de Jung.
Nesse sentido, da existência real no psiquismo de uma imago dei, para Jung, em termos pragmáticos, o ateísmo é impossível, pois a natureza possui um horror vacui, quando eu abandono conscientemente a ideia de um deus, um ser supremamente importante, ela vai ser substituída, com sérios prejuízos a vida e a adaptação, por algum ideia inconsciente de um supremo valor, que doravante sem que o saibamos, será o nosso deus. Nesse ponto, Jung concorda com o apóstolo Paulo,
O fim dessas pessoas é a perdição; o deus deles é o estômago; e o orgulho que eles ostentam fundamenta-se no que é vergonhoso; eles se preocupam apenas com o que é terreno. (Filipenses 3:19)
Qual o significado de religião para Jung? A conscienciosa consideração do numinoso, ou seja, daqueles efeitos dinâmicos não causados pela vontade, que é mais vítima deles do que seu criador, pois o numinoso é uma condição do sujeito. Temos igualmente de nos recordar, que para Jung toda mitologia é a essência da alma projetada, ou seja, toda ela é uma projeção do inconsciente coletivo, e como ele afirmou em seu Símbolos da Transformação, serve para nos ensinar os limites de nossa personalidade empírica, que além de nós existem os Deuses e que devemos respeitá-los, temê-los e adorá-los, mas jamais nos confundir com eles. Em outras palavras, não nos identificarmos com o efeito numinoso da manifestação viva dos arquétipos, sob pena de sermos possuídos por esse efeito e perdermos a nós mesmos.
A posição de Jung me parece suficientemente esclarecida, mas pergunta ainda não foi respondida. Resta nos lembrarmos que Jung afirmava que a Psicologia não pode se converter em uma cosmovisão, pois do contrário não passaria de um método sugestivo e ortopédico, todavia, é fundamental que o médico possua uma cosmovisão, uma filosofia de vida em sentido antigo. É necessário que o médico seja capaz de justificar intelectual e moralmente seus atos, e escolhas e que possua um posicionamento claro diante do mundo, do tempo em que vivemos e das grandes questões políticas. Lembre-se, estimado leitor, que Aristóteles chamava originalmente a metafísica de filosofia primeira. Ao se pensar seriamente sobre o que é o cosmos e como devemos viver nele, é de fundamental importância imaginar as consequências de existirem ou não deuses, ou um deus, como queira. Para Aristóteles, por exemplo, Deus era um primeiro motor imóvel sem o qual a noção de causalidade que dava racionalidade ao mundo não seria possível, para Sartre, por exemplo, se existir um deus no sentido de um demiurgo criador do homem, há um sentido a priori para a vida humana, uma essência humana. Sem deus, para Sartre, é mais ou menos como temia Dostoevsky, o homem tudo pode. Pensar na existência de um demiurgo é ponderar igualmente em um sentido para a existência. Ter uma cosmovisão significa, como asseverou Jung, ponderar seriamente sobre a vida e a morte, e tais ponderações levam quase que forçosamente a certas questões metafísicas.
Um analista Junguiano pode ser ateu desde que ele seja capaz de justificar o seu ateísmo de acordo com sua cosmovisão, que não se trate de uma reação sintomática ou de uma compensação, mas sim de algo que genuinamente corresponda as suas inclinações, que esteja em acordo não apenas com a sua equação pessoal, mas com a integridade da sua personalidade. Também é preciso que ele ou ela compreenda que é possível pensar e sentir de uma maneira diversa, e que sua experiência corresponde a uma verdade e não “A Verdade”. O pior erro que um analista pode cometer é supor o seu próprio psiquismo nos outros. O mesmo vale para um analista que seja Judeu e creia em Hashem, ou um cristão, ou para um analista que acredite nos orixás ou em qualquer outra divindade. Urge igualmente lembrar do que von Franz nos ensina, a diferença entre o pastor  e o médico, é que o pastor acredita que deus se limitou a escrever as escrituras, o médico, por seu turno, sabe que deus pode se manifestar criativamente na alma das pessoas. Não fosse isso o bastante, devemos ter sempre em mente, que nunca saberemos o que deus quer das pessoas, não podemos jamais, sejamos ateus ou crentes, nos converter em messias ou demônios do poder.
É igualmente indispensável lembrar a jocosa afirmação de Campbell de que no fundo crentes e ateus estão enganados. Alguém é religioso por acreditar de maneira denotativa nas imagens da Torá, de que de fato houve um jardim primordial onde uma cobra falava, já um outro é ateu por não conseguir acreditar que houve um jardim e um casal primordial em que a mulher foi feita da costela desse primeiro homem. Ambos perdem de vista o valor de metáfora do mito, e com isso seu engano os afasta da realidade psicológica que essas imagens traduzem para nós acerca de nós mesmos. Ao compreendermos os mitos de maneira conotativa, ou seja, metafórica, essas imagens estranhas que até então eram opacas se tornam transparentes ao transcendente e nos revelam a riqueza até então inaudita de nossa vida interior. Para alguém que deseje ser um analista, importa mais em sua lida com a alma o valor de metáfora da religião. Mito é a religião do outro e religião não passa de uma incompreensão popular da mitologia.
Seja crente ou ateu um analista não deve se converter num proselitista, jamais deve corrigir uma inclinação do paciente que não se corrija a si mesma e deve ter sempre um temor reverente diante dos abismos de desconhecido que o outro ser humano diante dele representa.
Todas essas indagações e possibilidades de respostas me levam a matutar igualmente, de uma maneira mais ampla, no que torna alguém um Junguiano. Há, ao menos, duas maneira de responder a isso, uma positiva e outra negativa. Ambas as vias podem levar ao descaminho de me transformar num demônio de poder, capaz de decidir, como um juiz paternalista quem é ou não é um Junguiano, e nisto eu não desejo me tornar. Mas também não posso me esquivar de cogitar, tanto no campo do intelecto quanto no do valor, pelo significado daquilo a qual dedico a minha vida, do contrário estaria contrariando as recomendações que eu mesmo faço aqui.
Ser psicólogo te torna um junguiano? Não, de forma alguma, na realidade nenhum diploma te torna um junguiano, nem o de medicina que Jung possuía, nem o de filologia de M. L. von Franz. Foucault estava coberto de razão ao dizer que o diploma serve apenas para constituir um valor mercantil do saber, fazendo os que não o possuem se julgarem incapazes ou sem o direito ao saber, o que têm um diploma sabem que ele não serve para nada, não tem conteúdo e é vazio, somente os que não o tem vêm nele um sentido pleno. Não bastasse tudo isso, com raras e honrosas exceções, os cursos de psicologia e medicina nada ensinam sobre Jung ou sobre os saberes que realmente importavam para que fosse possível compreendê-lo. A formação em Zurique também não exige qualquer diploma específico, então isso significa que o diploma do Instituto C. G. Jung me torna um junguiano? Não, ele é só mais um diploma como os outros, por sinal, um que M. L. von Franz em seu tempo detestava e repudiou.
Fazer análise com um analista junguiano me torna um? Não necessariamente, e mesmo uma análise que realmente o levou a um alto grau de autoconhecimento não é garantia suficiente de que você tenha se tornado um junguiano, mas, por certo é uma condição indispensável, até porque, outra condição para ser um analista é não ter uma neurose ativa, ou seja, certo grau de saúde psíquica.
Conhecer a obra, as ideias e o método de Jung me tornam um junguiano? Não, assim como a análise, isso não é suficiente, sendo, porém uma condição indispensável, apesar de existirem idiotas em número suficiente que pensam o oposto, que podem ser junguianos sem ler, e nem compreender Jung. Pior, há alguns que se julgam capazes de julgar a obra ou ainda de a ela fazer reparos, ou mesmo que Jung foi superado, esses deveriam estar em camisas de força e não tagarelando soltos por aí.
Ser reconhecido pelos meus pares como um Junguiano me torna um analista junguiano? Não, eu particularmente não me fio nas massas ou opiniões coletivas e ligo muito pouco para elas, como dizia Jung “cem cabeças brilhantes juntas formam uma só cabeça de bagre”. Houve um tempo aqui na minha cidade natal, que para a minha eterna vergonha, um sujeitinho desprezível que mal havia saído dos cueiros em termos de competência teórica no que concerne a obra de Jung foi alçado à condição de “líder” do “movimento junguiano”, e reconhecido amplamente como possuidor de um saber e autoridade que não tinha e nem tem. Lamentavelmente ninguém parecia ter lido, ou ao menos compreendido O Eu e o Inconsciente, onde Jung falava justamente sobre esse fenômeno e de como justamente os mais pusilânimes são aqueles com maior sofreguidão respondem ao anseio das massas por prestigiar, devido a sua fraqueza e inferioridade têm uma avidez por prestígio. Eu via aquilo com espanto, era como se o líder de um movimento de pintores não soubesse pintar, um colega psicanalista, muito mordaz, dizia que o tal movimento era “perverso pseudomessiânico”, seu sarcasmo era muito acertado e apropriado.
Ter profundidade de personalidade, desenvolvido as funções que necessitavam de desenvolvimento e lutado arduamente para descobrir a minha verdade interior me torna um Junguiano? Não, isso é indispensável, conditio sine qua non, porém também não é suficiente. Sem isso é melhor nem começar, mas apenas isso, não basta.
Identificar-me como Junguiano perante os meus pares faz de mim um Junguiano? Não, já conheci uma pessoa que se autointitulava junguiana sem jamais ter lido um livro sequer do Jung e sem ter feito nem um mísero minuto de análise. Eu posso me identificar ou me intitular como eu bem entender, posso até mesmo afirmar ser Cristo, ou um Kriptoniano, isso importa bem pouco na maioria dos casos, visto a grande maioria das pessoas ser profundamente inconsciente de muitas coisas, e afirmar coisas absurdas ou que em nada condizem com suas inclinações, ou mesmo, serem simplesmente mentirosas e descaradas.
Então, meu caríssimo amigo Heráclito, o que diabos me faz ser, ou não ser um Junguiano? Não desista ainda, estimado leitor, compreenda que se trata de uma seara das mais espinhosas e que aprendi a argumentar com os textos de Jung e essa circoambulação é necessária.
O que te faz não ser um Junguiano? Bom, pra começo de conversa se você manda os seus pacientes desenharem madalas, ao invés de junguiano você não passa de um bocó que leu a obra de Jung com uma desatenção verdadeiramente condenável.  Caso você se julgue um místico ou messias de qualquer espécie e não um analista/cientista temos um sério problema. Se você não considera que existem forças inconscientes que agem de maneira poderosa sobre a consciência com uma autonomia quase diabólica, e, que o inconsciente é o problema fundamental da psicologia contemporânea, fica muito difícil pro seu lado. Mesmo levando isso em consideração, se você encara o inconsciente como uma espécie de poço dos desejos, ou o vê unilateralmente como algo bonzinho ou apenas como a fonte de sintomas neuróticos de toda espécie, certamente está no caminho errado. Minimamente, você precisa compreender 5 coisas simples: uma afirmação psicológica só é verdadeira se e somente si eu também puder afirmar o seu oposto, toda afirmação psicológica é relativa, mas relativa a um sujeito individual, os conceitos não explicam os fatos que eles denotam, toda observação genuinamente científica deve estar isenta de pressupostos teóricos ou filosóficos e o único critério de validez de uma hipótese em psicologia junguiana é o seu valor heurístico, isto é explicativo. Mas isso é apenas o mínimo.
Mas finalmente, o que o torna um Junguiano? Bem, fundamentalmente é preciso que você seja você mesmo. Isso pode soar um enorme clichê, ou um simples slogan tolo, porém, se você, estimado leitor, ainda não escapou das garras da primitiva identidade com seus pais, sua família, sua cidade ou mesmo sua nação, usando a expressão de James Joyce, se sua alma ainda não nasceu e alçou voo, não é possível sequer cogitar ser um junguiano, entretanto novamente temos uma condição indispensável, porém insuficiente em si mesma. É preciso viver a aventura do seu tempo, ser um homem moderno em sentido psicológico, estar atento aos grandes dilemas e problemas sociais e políticos, estar ciente das grandes questões imorredouras, daquilo que é grave e constante no sofrimento humano, possuir uma aguçada sensibilidade artística e uma vontade de estar vivo e de viver a vida em sua plenitude, mesmo em seus tropeços e horrores. É preciso uma grande dose de compaixão e uma dose ainda maior de coragem, toda coragem é pouca, se você tiver todas as demais qualidades e lhe faltar coragem desista, eu falo sério, desista. É necessário grande inteligência e erudição, e uma humildade ainda maior, pois o médico e o paciente estão em pé de igualdade, ambos estão no escuro.
É isso então? Não, não apenas, pelo menos. No fundo, a única resposta que posso lhes oferecer sou eu mesmo, a minha vida e a minha experiência, não como exemplo, jamais como exemplo, pois qualquer tipo de imitação leva a uma vida inautêntica. O que quero dizer, é que de tudo o que escrevi aqui, a única coisa que posso lhes assegurar com certeza, com cada uma das fibras do meu ser, é que eu sou um junguiano, e que isso significa antes e acima de tudo que eu sou eu.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

Palestra no curso de capacitação do livro cidade da gente em Juazeiro

Vou começar contando uma história que todos vocês já devem saber, justamente por todos vocês já saberem. Conta-se que o Padre Cícero resolveu vir morar em Juazeiro depois de ter tido uma visão de Cristo e dos doze apóstolos lhe dizendo que cuidasse do povo daqui e assim o fez. Assim como essa história, envolvendo o famoso patriarca de Juazeiro, há muitas outras que povoam o imaginário não apenas de Juazeiro, mas de todo o Ceará, como o encontro entre o padim e Lampião, ou a sedição de Juazeiro, que derrotou as forças do governo federal e depôs Franco Rabelo.
As histórias que nós compartilhamos, essas de que todos se lembram, são justamente aquelas que nos fazem sentir como uma parte viva da história. Para além da minha família imediata, eu também faço parte do lugar onde eu vivo, sou o resultado do que se passou por aqui antes de eu nascer, em certa medida, eu não sou simplesmente eu, mas sou parte de algo bem maior, a minha memória se expande para além daquilo de que me recordo da minha infância e dos meus pais, há uma memória coletiva que me permite dizer que sou de Fortaleza ou de Juazeiro, que me traz uma identidade com o lugar onde nasci ou vivo. Floro Bartolomeu era Baiano, mas constituiu aqui sua história, aqui deitou raízes e aqui em Juazeiro ele deixou sua marca ao lado do padre Cícero Romão Batista. Quando alguém diz que é de Juazeiro, sabemos que se trata da terra de Floro Bartolomeu e do Padre Cícero.
Todos nós em algum momento temos de nós perguntar “quem somos?”, e essa questão vem sempre seguida e só pode ser respondida se soubermos de onde viemos, quais são as nossas origens, onde estão as nossas raízes, de que solo viemos e como esse chão nos influencia. Tanto é que, desde muito tempo se fala na diferença entre o sertanejo e o homem que cresceu na beira da praia, o sertanejo, como disse Euclides da Cunha, é antes de tudo um forte, moldado pelo clima árido e hostil do sertão, não lhe resta alternativa a não ser a força para sobreviver em meio à aridez de sua terra. Muita gente se contenta em saber da história de seus pais e avós, na busca por essa resposta, mas isso não basta, pois não sou constituído apenas pela minha família, sou também a minha vizinhança, o meu bairro, meus amigos, não é à toa que falo “fortaleza é a minha cidade”, pois o lugar onde vivo e onde nasci é tão meu quanto eu sou dele. Mas que laços me unem aos locais e as pessoas que me são próximas? O que nos une, são as histórias que partilhamos, e o fato de sabermos que essa terra, possui uma história, que assim como o sertão com sua aridez e hostilidade, também molda o caráter daqueles que aqui habitam.
Os personagens famosos dos locais muitas vezes traduzem o caráter, a alma de um povo, nessa terra tão dura e tão severa com seus filhos, as histórias da grosseria de um Lunga, por exemplo, são engraçadas, pois esse personagem traduz um pouco daquilo que é a alma do sertanejo, sua simplicidade e o caráter direto, teimoso e sem arrudeios. É preciso ser teimoso e duro para ter sobrevivido as secas do sertão do nosso Ceará, mas ao mesmo tempo, somos famosos no Brasil inteiro pela gaiatice, e um personagem como seu Lunga sintetiza dois elementos da nossa identidade.
Ao pensarmos nas nossas histórias, elas nos dizem o que significa ser Cearense. Quando estamos fora do nosso estado, se não perdemos as nossas raízes, nos somos ao mesmo tempo um indivíduo, alguém que pode até não gostar de certos aspectos da nossa cultura ou do nosso jeito, mas que não pode negar que possui as qualidades e defeitos dos filhos dessa terra. Antes da terra nos comer, muito antes de nossos ossos serem roídos por ela, a nossa alma já assimilou, comeu a terra e fez dela uma parte de quem nós somos. E para saber quem somos, precisamos conhecer essa memória que não é só minha, mas de todos, e por ser de todos define as minhas raízes, me dá uma solidez que minha personalidade jamais teria se eu não soubesse muito bem de onde vim, que veio antes de mim. Mesmo que eu resolva dizer que não sou nada disso, só posso fazê-lo ao saber o que é tudo isso, do contrário não se pode nem mesmo negar essa influência.
Há uma importância enorme em se pensar a história dos lugares, nosso país é muito grande, e cada um desses locais possui uma realidade social, estudar a história do Brasil não basta, pensar Juazeiro apenas a partir da história do Brasil causa grandes distorções, Juazeiro é parte do Brasil, mas estamos diante de um paradoxo, pois assim como a parte, Juazeiro, não explica o todo, o Brasil, o todo não explica a parte. Voltando a pergunta inicial de quem somos, certamente uma parte disso é explicada pela tradição da nossa família, mas também somos um pouco do que ela não é, há algo de novo na nossa vida, e só posso saber o que é esse novo ao descobrir aquilo que sempre esteve aí.
Existem fenômenos que são próprios de Juazeiro, é claro que essas realidades de Juazeiro compõem o quadro mais amplo do Ceará e do Brasil, mas precisamos entender as especificidades do local, ou corremos o risco de acreditar que tudo o que vem acontecendo aqui é modelado ou ditado de fora, e isso não é verdade. O esforço de compreender a realidade social de um lugar, de entender como ela se constituiu, como foi moldada pela história, pelos acontecimentos grandes e pequenos, pelos muitos personagens que por aqui passaram, permite também perceber que a realidade em que vivemos não é simplesmente algo dado e natural, mas que passou por um processo longo de construção. Ao entender como se constituiu historicamente Juazeiro, que grandes forças atuaram aqui, posso igualmente imaginar uma outra Juazeiro, pois a história não nos aprisiona, mas nos liberta. A história não é um destino inexorável, mas algo do qual todos nós, saibamos ou não, somos atores, e ao nos darmos conta de nosso papel, podemos igualmente tomar em nossas mãos o nosso destino e o do lugar em que vivemos.
Aquilo de bom e belo em juazeiro é fruto de uma história, de uma construção histórica e social, mas igualmente, nossa pobreza e desigualdade, nossos preconceitos, não caíram simplesmente do céu, eles também foram construídos historicamente e, quando percebo isso, e me percebo como um ator dessa história, posso ser um agente transformador. A pergunta “quem eu sou? E de onde eu vim?”, nos leva igualmente a pensar “quem eu quero ser?” e “para onde eu vou”. A nossa memória, as histórias que contamos juntos se referem ao passado, mas também nos permitem imaginar um futuro. Sem o conhecimento da história, não nos damos conta das enormes mudanças que já aconteceram a nossa volta, e muitas pessoas acreditam que a maneira como as coisas são é a forma como sempre foram e devem ser. Outros, por desconhecimento romantizam o passado, com um saudosismo que vê no passado quase o idílio da infância, sem se dar conta que nossos pais e avós tiveram de superar inúmeros desafios para que chegássemos aqui, e essa visão romântica do passado nos nega o futuro.
O livro que vocês agora terão a oportunidade de utilizar foi feito com grande espírito crítico e deve ser o começo, o ponto de partida das discussões em sala de aula. Nenhum livro, por melhor que seja, e esse é sem dúvida um ótimo livro, deve ser sacralizado e tomado como a palavra final sobre um determinado assunto, mas sim como uma oportunidade para começar um debate, um ponto de partida seguro para se discutir um tema, mas o que ele lhe traz não é o conhecimento pronto e acabado, o conhecimento vai se constituir em sala, com os alunos. O livro é uma ferramenta poderosa, mas uma das ferramentas que possibilita essa construção, ele é de grande valia, pois há um material de apoio para tratar do tema da história e geografia local, um material em que o aluno pode se apoiar e retornar a ele, e até mesmo se afeiçoar a ele. O material que foi produzido, certamente o foi com muito carinho e não deve ser difícil se afeiçoar a ele. Mas em se tratando da história do lugar, o livro é um apoio fundamental, mas deve ser um apoio e não o começo e fim desse trabalho. Os alunos devem entender que o debate crítico, como o que foi realizado pelos autores é fundamental, e que aprender sobre história e geografia significa também pesquisar sobre esses temas, e não simplesmente receber o conhecimento de bandeja. Quando eu estava na universidade, uma das minhas professoras, Simone de Sousa, nos sugeriu que pedíssemos aos alunos que pesquisassem quem eram as pessoas que davam nomes as ruas próximas as suas casas, muitas delas personagens da história do local. Em outra oportunidade, sugeriu que pedíssemos aos alunos que trouxessem para a sala objetos que contassem um pouco da história da sua família, que fossem o aspecto tangível da memória compartilhada.
Há muitas maneiras de ensinar a história de um lugar, sendo que uma das mais diretas é ir ao local. Depois de ler sobre um lugar, de entender tudo o que se passou ali, esse lugar que antes parecia tão comum, se torna estranho e maravilhoso, ao mesmo tempo em que se torna, em alguma medida, muito mais familiar do que antes. Espero que com esse livro em mãos, Juazeiro se torna ao mesmo tempo, para seus alunos, um lugar mais familiar e mais estranho e maravilhoso.