segunda-feira, 28 de março de 2011

Parábolas Marciais

Já tive o privilégio de conhecer e treinar com grandes mestres de artes marciais e de vários caminhos espirituais, a começar pelo meu professor de shaolin o grão mestre Chan Kowk Wai (陳國偉). Recentemente, na realidade ontem, tive a oportunidade de conhecer e treinar com um mestre de Kung Fu Garça Branca e Tai Chi renomado mundialmente, o Dr. Yang Jing Ming (楊俊敏博士), e seu filho mais novo e presidente de sua organização para difusão da arte do Kung Fu (YMAA) Nicholas Yang. Além da técnica extremamente apurada, sofisticada e sutil – Dr. Yang ministrou um curso de Chin Na (擒拿) – me impressionou a figura humana, de uma humildade e simplicidade impressionantes, dono de um conhecimento enciclopédico sobre artes marcais e medicina chinesa, extremamente aberto e afetuoso. Durante o breve período em que ele nos ministrou seus ensinamentos e em que eu servi de interprete, ele narrou várias histórias e parábolas sobre seus treinos com seu mestre e outras histórias interessantes. Apesar dos freqüentes puxões de orelha de minha professora de Budismo a venerável Bhikkhuni Ani Zamba Chozom devido ao meu interesse por esse tipo de histórias, não pude deixar de me deleitar com as várias parábolas marciais que o mestre Yang compartilhou conosco. Devido a esse fato, resolvi compartilhar com todos os que lêem o meu blog, algumas dessas historietas maravilhosas que já tive a oportunidade de ouvir de grandes mestres.

Começo com uma da Ani Zamba, estávamos recebendo alguns ensinamentos quando ela percebeu que duas pessoas, duas jovens senhoras, estavam conversando durante a sua palestra. Com muito bom humor ela as repreendeu e mandou “sentarem-se separadas”, em seguida contou a seguinte parábola:

Existem quatro tipos de estudantes, por favor, pensem em que tipo vocês são e qual gostariam de ser. Estudantes são como vasos, onde o mestre despeja a água límpida e cristalina do ensinamento. Alguns desses estudantes são como vasos que já estão cheios, e não se pode colocar mais nada, sempre que o mestre derrama a água límpida do ensinamento ela apenas derrama. O segundo tipo parece estar vazio, mas há nele um pequeno buraco, e por mais que o mestre despeje a água cristalina do ensinamento, ela sempre se perde por esse pequeno buraco. O terceiro tipo parece estar vazio a primeira vista, mas há bem no fundo uma porção pequena e quase imperceptível de veneno, e por mais que o ensinamento seja puro, ao ser despejado nesse vaso ele se contamina e se torna envenenado. O quarto tipo é como um vaso que está genuinamente vazio, e neste o mestre pode despejar a água pura e cristalina do ensinamento e ele será preenchido por ela.

Mestre Yang contou outro que é bastante conhecido e parecido com que narrei antes, mas que é muito interessante mesmo assim:
Um guerreiro, muito orgulhoso de sua própria força a habilidade, procurou um famoso mestre para treinar com ele. Esse mestre rapidamente se deu conta do orgulho e arrogância desse guerreiro que o procurava em busca de ensinamentos, devido a isso o convidou para tomar chá. Ele lhe ofereceu uma xícara e a encheu até a borda, em seguida continuou a enchê-la, fazendo-a transbordar. Ao ver aquilo o guerreiro pediu ao mestre que parasse de derramar chá, pois a xícara já estava cheia e não cabia mais nada nela, ao que o mestre retrucou “você é como essa xícara, por isso não posso ensiná-lo, já está tão cheio que não se pode colocar mais nada”.

Várias vezes durante nosso treino com mestre Yang ele falou de sua compreensão sobre arte, sobre como é preciso ter o sentimento correto sobre as técnicas e de que é preciso a partir do fundamento e da raiz correta, estar sempre e sempre criando e tornando a arte algo pessoal e único. Por isso ele contou uma parábola referente ao criador do Tai Chi Yang, Yang Lu Chang (楊露禪), se não me engano, a história é a seguinte:

O mestre ensinou por três anos uma rotina de espada de Tai Chi a um de seus discípulos, até que cada um de seus movimentos possuía o sentimento correto, isso levou três anos. Ao perceber que todos os movimentos estavam perfeitos e com o sentimento correto ele mandou seu discípulo de volta a sua vila para treinar por mais três anos e depois retornar. Após os três anos o discípulo retornou, mas ele estava desapontado e envergonhado, ele treinara duro todos os dias para não desapontar o mestre, mas ao se apresentar diante dele disse “mestre, eu lamento, mas após o meu treino, cerca de trinta por cento dos movimentos não possui mais o mesmo sentimento” ao que o mestre replicou “não, não, isso não é bom, volte e treine por mais três anos”. Resignado, o discípulo fez como lhe fora ordenado. Após mais três anos ele retornou, e não ousava nem mesmo olhar nos olhos de seu mestre, tão grande era a sua vergonha e desapontamento. “mestre, dessa vez pelo menos setenta por cento de meus movimentos não possuem mais o mesmo sentimento”, calmamente o mestre retrucou “não, não, isso não é bom, vá embora e treine por mais três anos”. Resignado o aluno retornou para sua vila e treinou com ainda mais afinco e dedicação, todos os dias. Ao retornar, findos os três anos, ele disse com tristeza: “mestre, dessa vez nem mesmo um único movimento possui mais o mesmo sentimento que aprendi com o senhor”, ao que o mestre respondeu “ótimo! Isso sim é muito bom, agora esse é o seu sentimento e não o meu!”.

O mestre Yang usou várias vezes o exemplo de Picasso, pois ele era um grande pintor e um mestre de sua arte, pois havia encontrado a sua expressão pessoal e única da arte, que não era uma mera cópia dos modelos aprendidos com seus professores. Ele também contou uma história sobre seu mestre de Garça Branca:

Quando era jovem, meu mestre me ensinou um movimento do estilo Garça Branca e eu acreditava que ele possuía apenas uma única aplicação para a luta, todavia uma vez vi vários de meus colegas praticando esse movimento e cada um deles o utilizava de uma forma diferente. Imediatamente procurei o meu mestre e perguntei qual maneira de usar o movimento era correta, ele me respondeu com uma pergunta “pequeno Yang (pois eu era pequeno aos quinze anos de idade) quanto são um mais um?” imediatamente respondi que qualquer pessoa educada sabia que um mais um são dois, ele sorriu e replicou “não pequeno Yang, não são dois”. Confuso eu repliquei que ao somar um mais um a resposta era dois. Novamente ele sorriu e disse, “não, você está errado, seu pai é um e sua mão também é um, juntos tiveram cinco filhos, logo um mais um são sete. Se a arte está morta um mais um são dois, mas se está viva são sete!”.

Finalizo com uma história das mais interessantes narrada pelo Dr. Yang:

Um mestre de artes marciais chamou seus discípulos e lhes mostrou um grande vaso e um monte de pedras, em seguida pegou as pedras uma a uma e encheu completamente o vaso. Ao terminar essa operação ele perguntou “esse vaso está cheio?”. Os discípulos se entreolharam e responderam “sim está”. O mestre então pegou um punhado de pedrinhas bem pequenas e despejou no vaso, em seguida indagou “e agora, está cheio?”. Ainda confusos os discípulos responderam “sim, agora está cheio”. Sorrindo o mestre apanhou um punhado de areia e despejou completamente no vaso, virou-se para seus alunos e repetiu a pergunta, uma vez mais eles responderam afirmativamente, o vaso estava cheio. Ainda com o sorriso enigmático nos lábios ele encheu o tal vaso de água até a borda e disse “bem, agora está cheio, agora me digam, qual a relação entre esse vaso e as suas vidas?”

Bem, deixo em aberto a resposta, que fique o enigma para aqueles que se interessarem em meditar sobre ele.

terça-feira, 15 de março de 2011

Um Detalhe

Ontem pela manhã estive na casa dos meus avós e acabei vendo uma parte do programa da Ana Maria Braga (Mais Você), calhou de ser um momento em que se comentava o brutal assassinato de uma jovem carioca por um psicopata de cinqüenta anos. Uma psiquiatra estava lá para comentar o caso e um repórter mostrava o local do crime e a casa onde o tal assassino vivia. Um detalhe me chamou a atenção, detalhe esse que não foi comentado nem pelo repórter, nem pela apresentadora, tão pouco pela médica.

Acontece que as paredes externas da casa onde vivia o assassino estavam pichadas, seus vizinhos haviam escrito impropérios nas paredes para expressar sua raiva, dor e indignação, lá estavam palavras como “assacino”, “pedófilo”, “viado” e, o que me chamou a atenção “nordestino” e “baiano”. Deixando um pouco de lado a clara homofobia, e deixando de lado a hipocrisia, todos sabemos que na nossa sociedade “viado” é um xingamento dos mais graves e pesados para nossa sensibilidade patriarcal. Nordestino e Baiano estavam lado a lado com o que de mais pejorativo essas pessoas puderam escrever sobre um psicopata, revelando o desvalor, a xenofobia e o preconceito que transpareceu na revolta espontânea.

A raiva causa aquilo que Jung chamou de “abaixamento do nível mental”, um estado em que agimos de maneira irrefletida, e sem as inibições conscientes, certas verdades inconvenientes vêem a tona, como quando alguém está bêbado e fala sem pensar. Nesse caso, vemos com assustadora clareza o valor social que nós “nordestinos” – como se houvesse essa identidade monolítica entre as milhões de pessoas que vivem nas mais variadas cidades e estados do nordeste – temos para essa população. Nordestino é tão ruim quanto pedófilo e “assacino”.

Que esse preconceito existia eu já sabia, eu mesmo já fui vítima dele, mas não que era tão atroz, tão profundo e arraigado e que a nós, nordestinos, igualados e nivelados pelo ódio, fosse reservado lugar ao lado do que de mais vil se pode qualificar alguém. Não bastasse isso, a miopia daqueles que possuem o dever de ofício de informar e esclarecer que em nenhum momento fizeram menção a essas palavras de ódio e xenofobia. Como se a revolta diante de uma morte brutal e sem sentido justificasse tudo. É lamentável que num país tão cheio de diversidade e com uma cultura tão rica, esse tipo de sentimento de ódio e xenofobia ainda prospere.

sábado, 12 de março de 2011

Comer Rezar e Amar

Ontem assisti, em excelente companhia, ao filme estrelado por Julia Roberts, Comer, Rezar e Amar. Confesso que estava cético em relação ao filme e ao livro, devido a todo o oba oba que se formou em torno dessas obras, no entanto o filme foi uma agradável surpresa. Imaginava algo terrivelmente superficial e apenas pseudo-espiritual, como algumas das obras mais aclamadas de Paulo Coelho. O filme pelo menos não é nada disso, o que me fez lembrar das palavras sábias do mestre Yoda “keep your mind open”. Em minha defesa, eu mesmo escolhi o filme na locadora.

A espiritualidade que é mostrada no filme está longe de ser algo raso, ao contrário, toca em elementos dos mais fundamentais de maneira leve e singela. O processo de cura e transformação psicológica da protagonista e autora – boa atuação de Júlia Roberts – também soa extremamente genuíno. Tudo no filme é precioso e significativo, sendo ao mesmo tempo de uma singeleza bastante peculiar. É interessante, ao menos para mim, ter acesso ao universo feminino da busca espiritual, já que a maioria dos mitos, rituais e obras de grandes místicos e yogis são de uma perspectiva masculina.

É fácil se conectar ao vazio e sofrimento que transborda do filme devido as características comuns do modo de vida americano que nos empenhamos tanto em emular: a busca incessante por objetivos que fomos ensinados a buscar, sem nenhuma reflexão do que é que nossa alma anseia e com uma profunda inconsciência dos efeitos da impermanência. Mas o filme, apesar de tocar sempre e sempre nesse sofrimento, fala principalmente de amor e esperança. De como é difícil, depois de termos nos machucado, ou machucado outras pessoas, nos abrirmos novamente ao contato humano, o contato que pode ser realmente significativo e transformador. Jung dizia que toda relação humana genuína é como uma reação química, em que as duas personalidades se transformam. O filme mostra com rara sensibilidade o quanto estamos fechados a essa transformação e todo o sofrimento que isso acarreta, pois já dia meu xará grego “panta rei”  tudo muda, queiramos ou não.

Para aqueles que, como eu, passaram pelo drama de um divórcio e toda a dor e ressentimento que isso acarreta, não é tarefa difícil se identificar com as dores e dificuldades dos protagonistas. Campbell costumava dizer que um casamento de verdade, o casamento alquímico em que as duas almas se transformam, não é um caso de Amor prolongado, mas um ordálio, pois amar é entrega e sacrifício, é adquirir uma nova orientação de nossa personalidade, menos egoísta e investir nossas energias, não no outro, mas na relação que existe entre ambos. Esse aspecto do relacionamento humano é mostrado de maneira magnífica na visita que a protagonista faz ao túmulo de Augusto. Mudar pode não ser algo fácil, mas a estase, a imobilidade, é um tipo de morte em vida.

É interessante ver um filme americano que não investe no ideal americano de sucesso como sucesso material, mas o subverte, o verdadeiro sucesso só começa quando ela perde tudo, todo o seu dinheiro. O sucesso buscado pela personagem em sua jornada, é ser capaz de ouvir sua própria alma, restabelecer esse contato com o espírito que tece nossos sonhos a noite e que modela o nosso destino, encontrar a sua natureza e viver de acordo com ela, ao invés de cometer o erro de todo extrovertido, como eu mesmo, de seguir as ondas e mais ondas que surgem a nossa volta. A busca por esse centro é algo muito bonito. Mas o filme é ainda mais belo porque essa busca não resulta egoísta, mas numa abertura para o outro sendo a frase final dita pelo sábio Ketut em Bali, quando ela estava prestes a partir e deixar seu amado para trás em prol de seu recém descoberto equilíbrio, o coração do filme. Todo processo de crescimento espiritual genuíno é inclusivo, altruísta e não egoísta. Se depois de toda essa busca, não pudermos nos abrir a amar novamente, a aceitar o amor de outrem então foi tudo em vão.

Amar é saltar sobre um imenso abismo sem saber exatamente onde fica o outro lado, tudo pode acontecer, mas ao contrário do que possa parecer, o abismo nunca é tão grande assim. Um dos grandes temas do filme é o perdão, a raiva e o ressentimento são fardos terríveis de se carregar, há uma música bobinha que diz que “a raiva é o veneno que bebo querendo que o outro morra”, o perdão, ao contrário, é um remédio dos mais eficazes para curar a nossa alma.

Ainda não li o livro, mas certamente recomendo o filme, uma obra emocionante, sensível, e de uma sutileza e beleza comovedora, ótimo para assistir em boa companhia, como eu fiz.

segunda-feira, 7 de março de 2011

Histeria


Dupré assim definia a histeria: “Estado no qual o poder da imaginação e da sugestibilidade, unido a esta sinergia particular do corpo e do espírito que denominei psicoplasticidade, resulta na simulação mais ou menos consciente de síndromes patológicas, na organização mitoplástica de organizações funcionais, impossíveis de distinguir das dos simuladores.” Esta definição clássica define como sintomas superiores da histeria, a sugestibilidade, e o aparecimento de perturbações como a paralisia, a anestesia, a anorexia, que não têm, na ocorrência, fundamento orgânico, mas uma origem exclusivamente psicológica. (FOUCAULT, 1975, p.6).
Um dos primeiros trabalhos de Freud dedicado às afecções foi justamente sobre a histeria. O trabalho clínico de Freud com os pacientes que padeciam desse mal lhe forneceu material empírico que foi o combustível necessário a vários de seus insights que deram origem a psicanálise. Freud se insere numa longa tradição de autores e pensadores que se debruçaram sobre a miríade aparentemente desconexa de sintomas da histeria. Mesmo o termo possui uma história venerável, histeria é uma palavra de origem grega. Platão no Timeu associa a etiologia da histeria a uma prolongada falta de atividade do útero. Caso o útero esteja em condições favoráveis para gestar um bebê, mas mesmo assim permanecer inativo, esse órgão se tornaria a fonte de inumeráveis males, de angústias a obstruções das passagens de ar (QUINET, 2005).

Galeno, no século II, também relacionava a etiologia da histeria ao útero, mas a diferença de muitos de seus predecessores, ele abandona a idéia de que o deslocamento desse órgão causaria a afecção. Ele cria a hipótese da “retenção da semente feminina”, que seria semelhante ao esperma masculino. Os estados histéricos são o resultado da ausência do escoamento da semente que ocorre durante o coito. Ainda segundo Galeno, mulheres bruscamente privadas de intercurso sexual, como as viúvas, são as mais afetadas. A partir do século III até o renascimento, todos os fenômenos que antes eram identificados como histeria e associados de uma maneira ou de outra ao útero, passam a ser reconhecidos como possessão demoníaca. Os fenômenos identificados como possessão demoníaca, sob a influência da igreja, nesse período, são interpretados no final do século XIX – especialmente pela escola fundada por Charcot – como fenômenos histéricos. Será a prova histórica para Charcot de que a histeria não estava sendo inventada no século XIX, mas que sempre existiu.

O alquimista Paracelso, no século XVI, chamava a histeria de “Chorea Lasciva”, Rabelais, autor do Pantagruel, defendia que a histeria seria passível de controle intelectual voluntário pela pessoa por ela afetada.  Já no século XVII, surge uma nova etiologia para este velho mal. Para Lange, em seu Tratado dos vapores (1689) a histeria seria causada, por exemplo, “vapores seminais”. Ao acumular a “semente” em demasia, por falta de exercício da sexualidade, esse acúmulo geraria vapores que ao chegarem ao cérebro desencadearia toda a sorte de sintomas: convulsões, delírios, manias, etc. Thomas Willis (1621 -1675) é adepto da teoria dos “espíritos animais”, átomos constituídos por partículas minúsculas que sob o efeito do calor e da fermentação se formariam nas cavidades do coração iriam parar no cérebro devido à circulação sanguínea.

Segundo Willis, “o que parece constituir a histeria formal são os movimentos no baixo-ventre e como a ascensão de uma bola, gritos, tentativas de vômitos, a distensão dos hipocôndrios, eructações e borborigmos, a respiração desigual e dificultada, o calor na garganta, a vertigem, a convulsão e a rotação dos olhos, risos e choros desmedidos, palavras absurdas, por vezes a afonia e a imobilidade, a pulsação nula ou fraca, movimentos convulsivos na face e nos membros e por vezes em todo o corpo, ainda que as convulsões generalizadas sejam raras e não sobrevenham senão nos casos graves... As mulheres de todas as idades e de todas as condições são sujeitas a essa doença, ricas ou pobres, virgens, esposas ou viúvas... Eu a vi, mesmo algumas vezes entre homens.” (QUINET, 2005, p.95).

Thomas Sydenham (1624 – 1689) opunha-se a teoria uterina e propunha a teoria da “sede cerebral”, e tinha a histeria como “uma doença enganadora”, em sai variegada sintomatologia ela imitaria várias outras doenças, sendo um Proteu capaz de assumir mil formas, sendo difícil, senão impossível definir um quadro estável de sintomas capaz de definir a histeria. No século XVIII, Phillipe Pinel (1745 – 1826), alienista pioneiro, um dos antecessores de Charcot na Salpêtrière, foi o primeiro a libertar os loucos dos grilhões e não era adepto da teoria da “sede cerebral” de Sydenham, ao contrário, reafirmava a etiologia uterina, e chegava mesmo a recomendar o matrimônio como tratamento. Ele distingue a ninfomania ou “furor uterino”, da histeria, mas classifica a histeria como neurose.

O Tratado Médico-Filosófico sobre a Alienação Mental, de Pinel, publicado em 1801 e republicado em 1809, é a obra que inaugura a psiquiatria como especialidade médica. A concepção teórica de Pinel, exposta em seu já referido livro, considerava a loucura como comprometimento ou lesão do intelecto e da vontade, manifestando-se no comportamento dos pacientes sob as mais variadas formas. Mesmo variedades muito diferentes de sintoma podiam ter em comum um mesmo tipo de lesão da vontade ou do juízo. Estas propriedades comuns poderiam servir como base para a classificação e o diagnóstico. Todavia, para tal coisa ser possível, encontrar essa base comum de variados sintomas se fazia necessária à observação diligente de numerosos pacientes. O critério básico de definição para ele era, portanto, a lesão do intelecto e/ou da vontade. (PESSOTTI, 2001).

Em seu tratado, Pinel salienta que uma das “características físicas” dos alienados é o excesso de excitação sexual, a isso se somavam características físicas como à masturbação e o homossexualismo. Essas perturbações sexuais eram compreendidas como complicadores do processo de tratamento do alienado.  Tratamento este que consistia de certos aspectos simples: um diretor espiritual e um regime físico e moral bastariam para eliminar a alienação mental. (PESSOTTI, 2001).

Ex expositis, percebe-se que a etiologia sexual da histeria e das neuroses em geral proposta por Freud não era, em absoluto, uma grande novidade. Apesar disso, essa tese defendida por ele lhe granjeou muita oposição e não raro seus críticos o acusaram de uma “monomania sexual”. Outros autores, como por exemplo, Adler discordaram de Freud nesse ponto. Adler acreditava que a vontade de poder estava na raiz de todos os fenômenos neuróticos. Jung por sua vez, não considerava a teoria Freudiana ou a Adleriana como equivocadas, elas seriam casos particulares subsumidos por sua teorização de uma energia psíquica geral não substancialista. Não obstante, Freud inova ao propor um modelo psicológico para os mecanismos atuantes nos fenômenos histéricos, bem como na sua teoria de que muitos desses mecanismos desvendados de maneira indireta são inconscientes.

Projeção

Recentemente conclui a re-elaboração de um texto que vinha protelando há alguns meses, principalmente por que não estudava a sério psicologia analítica já de um bom tempo. Mas ao finalmente colocar um ponto final nesse texto também cheguei há algumas compreensões importantes, que já estavam, desde há época em que escrevi o tal texto, prestes a acontecerem. Pois bem, além dessas compreensões, algumas coisas se tornaram mais claras. É interessante quando você consegue falar com simplicidade sobre algo complicado. Uma dessas coisas que se tornou mais clara foi o conceito Junguiano de projeção, que pretendo esclarecer aqui.

É preciso que se diga que em psicanálise existe esse mesmo conceito, mas ele só se aplica à paranóia. No caso da psicologia analítica ele é um fenômeno geral e não necessariamente associado a alguma patologia. O fenômeno da projeção está associado à qualidade da nossa psique de se dissociar, pois aparentemente nossa psique é formada por vários complexos separados que se unem para formar uma individualidade. Mesmo ao falar do complexo do eu, Jung utilizava os termos “altamente compósito e variado”, num momento lembramos com clareza de um nome (ele possui a qualidade de ser consciente e estar associado ao complexo do eu) no momento seguinte esse nome desaparece, não somos mais capazes de nos recordarmos (não está mais associado ao complexo do eu), além disso, ao se referir ao inconsciente, Jung reiteradas vezes fala que “todo inconsciente é projetado”, mas estamos nos adiantando.

Na realidade, ao contrário do que versa a psicanálise sobre a projeção, nós pessoas normais projetamos o tempo inteiro, o que significa que, além das informações sensoriais que nos são transmitidas pelos sentidos, existem sempre influencias psicossomáticas internas que influenciam a maneira como experimentamos o mundo. Todavia, o fenômeno da projeção possui um escopo bem mais restrito, ele está relacionado ao fenômeno mais geral daquilo que Jung denominou de identidade arcaica. Só é considerada uma projeção, em termos junguianos, quando existe um sério distúrbio de adaptação. Esse distúrbio pode ser percebido quando a pessoa responsável pela projeção, ou aqueles a sua volta, unanimemente rejeitam o conteúdo projetado.

Já o fenômeno mais geral, da identidade arcaica, significa uma igualdade psicológica e é sempre um fenômeno inconsciente, e que é o fundamento da participation mystique, resíduo da primitiva indiferenciação psíquica entre sujeito e objeto. Logo do estado inconsciente primordial. Esse estado também caracteriza a primeira infância e o inconsciente do adulto civilizado. Este, na medida em que se não tiver tornado um conteúdo da consciência permanece preso a um estado de identidade com o objeto.

Isso significa que temos uma quase ilimitada mistura de nossa subjetividade na imagem que formamos do mundo. O termo arcaico é utilizado por Jung, pois essa é a condição original do homem, ou seja, um estado em que vemos e sentimos todos os processos psíquicos como algo exterior a nós mesmos. Bons e maus pensamentos são espíritos, afetos são deuses, estar apaixonado significa estar enfeitiçado e por aí vai. Projeções são socialmente perigosas, e terrivelmente perturbadoras, mas possuem um sentido e uma função. Existem certos processos inconscientes dos quais só podemos nos tornar conscientes através das projeções. Boa parte do trabalho analítico consiste em auto-conhecimento, pois não há transformação da personalidade sem auto-conhecimento, e isso significa, em termos psicológicos, a assimilação moral de certos conteúdos do inconsciente. O fenômeno projetivo é algo de uma seriedade perturbadora, por isso termino com uma citação bastante sugestiva de Marie Louise Von Franz de seu excelente Dreams (até onde eu saiba, sem tradução para o português):
Não existe tornar-se consciente sem as chamas da emoção e do sofrimento. Os distúrbio de adaptação que é estreitamente ligado com cada projeção leva, se tudo correr bem, a reflexão (se correr mal ela leva a homicídio e assassinato). Re-flexio, todavia, significa que a imagem que foi “irradiada” para fora em outro objeto é “enviada de volta” e retorna para si mesmo. (tradução minha).

sexta-feira, 4 de março de 2011

Hellboy





Hoje assisti pela milionésima vez Hellboy 2 – por sinal ótimo filme excelente direção de Guillermo del Toro e uma das melhores atuações de Ron Perlman – como ainda estou com insônia, mesmo depois de ter visto o filme, resolvi escrever sobre algo de que me recordei ao vê-lo.

Hellboy 2 estava prestes a estrear nos cinemas e eu estava numa aula de alemão falando sobre o personagem principal para o meu professor antes da aula começar propriamente – para os que não sabem o personagem principal é a besta da profecia do apocalipse, invocado prematuramente pelos nazistas e criado como filho de um bondoso cientista e agente de inteligência americano – uma garota entreouviu nossa conversa e fez um comentário, me recordo do seu nome, pois ela tinha o nome do Buda: Sidarta. Apesar do nome do príncipe indiano que abandonou o mundo para encontrar o caminho do meio, ela era protestante e casada com um pastor. Ao ouvir que o herói era um demônio, com chifres e tudo ela comentou “parece mais um jeito de fazer as pessoas gostarem do demônio”. Imediatamente retruquei que se tratava de uma metáfora, Hellboy lutava para transcender suas origens e se tornar a pessoa que ele gostaria de ser não a que estava destinado a ser pela ocasião de seu nascimento. Meu professor encerrou a conversa, incrédulo de que ela pudesse aceitar facilmente essa noção.




Hellboy é realmente um personagem fascinante, ele é como Pinóquio, tudo o que almeja é ser humano. O que remete a uma série de questionamentos dos mais interessantes sobre a condição humana. O que nos torna humanos? O fato de ter nascido como demônio o impede de ser humano ou são suas escolhas que determinam isso? Essas e muitas outras perguntas importantes deixam de ser feitas ou são esquecidas quando se olha para o filme ou para os quadrinhos de Mike Mignola e ao ver um demônio pensamos de maneira denotativa. “bem, se esse filme trata demônios como heróis só pode ser algo ruim”, perdendo-se a noção da metáfora o filme ou os quadrinhos se tornam opacos, eles perdem a qualidade de serem “transparentes ao transcendente”, para usar a expressão de Campbell.

Se é que existem realmente entidades metafísicas como anjos ou demônios, isso não importa muito, mas certamente os vivenciamos psicologicamente como partes de nossa personalidade, ou potenciais adormecidos em nós, que desconhecemos, essas figuras sombrias e estranhas surgem na nossa imaginação e sonhos como expressão criativa do espírito que tece nossos sonhos à noite, o “eu número dois” de que Jung fala em seu memórias, sonhos e reflexões, aquilo que em sua obra ele chamou de psique objetiva. Esses seres sobrenaturais só têm algo a nos dizer, algo que nos cala fundo a alma, quando os entendemos de maneira conotativa, como metáforas da condição humana, daquilo que é perene em nossa história não como indivíduos, mas como espécie.

Mitos e a arte criativa, como a de Mignola, estão repletos desses seres fantásticos por um motivo. Talvez existam realmente pessoas terrivelmente perturbadas que façam uso dessas metáforas no sentido aludido pela minha colega de alemão, mas quanto a isso só podemos lamentar. Pois esses “satanistas” incorreriam no mesmíssimo erro de minha colega, que é insistir na historicidade concreta dessas figuras. Em nossa sociedade, carente de mitos, o artista criativo assume o papel que antes foi do místico e do visionário que elaboravam as grandes tradições míticas. Campbell sempre fala de Mann e Joyce como aqueles que puderam lhe apresentar modelos válidos para sua vida em seus anos de formação. Se a miopia do radicalismo religioso nos privar até mesmo disso, então viveremos num mundo lamentável.

Esboço de uma consideração sobre os limites entre o Freudismo e a Filosofia

Esse foi um texto escrito há pouco mais de um ano, talvez um ano e meio, para uma das disciplinas do meu mestrado em psicologia, esta em particular ministrada pela professora Laéria Fontenele. Apesar da temática hoje em dia não me apetecer mais, esse é um escrito de que gosto, por isso resolvi publicá-lo aqui.


Chegamos ao termo dessa travessia, podemos fazer soar o objeto freudiano sob o choque do martelo filosófico (sem esmagar o objeto nem quebrar o martelo)?

A frase acima é de Paul-Laurant Assoun, do primeiro capítulo de seu livro sobre a metapsicologia Freudiana[1]. A questão é no mínimo intrigante, torna-se ainda mais perturbadora se levarmos em conta à letra de Assoun na já citada obra, onde ele passeia com segurança por intrincados conceitos da filosofia (em especial do Kantismo) e procura estabelecer um diálogo entre esses dois saberes, Mostrando o desafio que representa a obra inaugurada por Freud (a psicanálise) ao entendimento filosófico, ao mesmo tempo em que mostra a relação inextrincável de alguns aspectos da obra com certos debates cruciais para a filosofia, e que representam justamente uma das vigas epistemológicas de sustentação do edifício do Freudismo.
Talvez esse sucinto texto que me aventuro a escrever tenha pouco interesse psicanalítico propriamente, e se encaminhe mais um entendimento puramente epistêmico e, em certa medida, filosófico. Todavia, tendo sempre em vista, e como crivo princeps a obra de Freud e a advertência sagaz de Assoun, sobre esses dois saberes (psicanálise e filosofia) que “o próprio Freud nos desencoraja de confundi-los”[2]. Quiçá esse cuidado permita que ele possa ter algum interesse a psicanálise e, quem sabe, até a filosofia. Não raro as discussões fronteiriças desagradam a ambos os lados. Mas a epistemologia possui esse condão de perambular por muitos campos sendo paradoxalmente nativa e estrangeira a todos.
Mas, sem maiores digressões, de maneira um tanto quanto contraditória, Assoun afirma, sobre o que ele chama de “fenomenismo” do autor da interpretação dos sonhos, que ele esculpe uma certa “racionalidade”, que escapa de um idealismo, ao mesmo tempo em que (e aí está o nosso paradoxo) se funda na clínica, nos achados clínicos e na fala e na verdade de um sujeito particular. O que nos remete, a uma tensão, sempre presente, entre o geral e o particular. Pois toda a racionalidade filosófica refere-se ao geral, ao universal. Estando o particular, a singularidade em segundo plano. Tendo sido sempre a ciência, uma ciência do geral.
E a arte se exprime quando, de um complexo de noções experimentadas, se exprime um único juízo universal dos (casos) semelhantes. Com efeito, ter a noção de que de que Cálias, atingido de tal doença, tal remédio deu alívio, e a Sócrates também, e, da mesma maneira, a outros tomados singularmente, é da experiência; mas julgar que tenha aliviado a todos os semelhantes, determinados segundo uma única espécie, atingidos de tal doença, como os fleumáticos, os biliosos ou os incomodados por febre ardente, isso é da arte. (In Aristóteles, Metafísica I, V.II, São Paulo, 1984).
O fio de navalha sobre o qual caminha Freud talvez não fique claro apenas pelas palavras veneráveis do sábio estagirita, pois os caminhos e descaminhos que essa dialética entre o geral e o particular tiveram na história da filosofia no ocidente talvez não sejam imediatamente claros a todos. Para não despender muito tempo nesse debate (que se prolonga desde os veneráveis dias dos sábios da acrópole ateniense até hoje) vale atentar para as palavras de Pena.
Acerca do conhecimento intelectual ou racional, o que o caracteriza é o fato de que ele somente atinge o geral ou o abstrato, mas não o individual e o concreto. Na verdade, o conhecimento intelectual está sempre voltado para a busca de possibilidades. Seu mundo é o mundo do possível. Precisamente por essa razão é que todas as concepções filosóficas de tipo existencial revelam-se antiintelectualistas: elas só se interessam pelo individual. (2000, p.25)
Pena prossegue ainda mais descrevendo como se dá esse processo, em que o pensamento, através da abstração se afasta do particular.
O modo próprio através do qual se processa o conhecimento inteligível é a abstração. Por ela, precisamente, excluem-se os elementos que respondem pela participação do objeto e se liberam os elementos essenciais ou universais. (Ibidem)
A elucidação destes termos, utilizados por Assoun, faz saltar aos olhos a distância de Freud da discussão filosófica propriamente dita, e também a grandeza de sua obra, que, mutatis mutandis, parece equilibrar de alguma forma as medidas desiguais dessa balança entre o geral e o particular, ainda mais brilhantemente por que.
(...) Freud jamais separe, por um momento sequer, a pesquisa da “terapia”. Não há diferença entre pesquisar neurótico e “trata-lo”. Nada de fascinação, aqui, por uma clínica pura, que desampare o saber. (Assoun, 2000, p.24)
Sob o escrutínio atento da lente reveladora de uma reflexão epistemológica podemos perceber a complexidade da tecitura epistêmica de Freud, que mesmo não tendo, a rigor, refletido seriamente sobre isto (nesses termos, bem entendido) consegue equaciona-los de maneira interessante, mantendo-se entre esses dois pólos. Diferente de outros grandes nomes como Rogers, por exemplo, que absit invidia verbo se revela fascinado por essa “clínica pura”, sobre este ponto em particular, me alinho ao lado de Poincaré quando este afirma.
É que a filosofia antiintelectualista, recusando a análise e o discurso, condena-se, por isso mesmo a ser intransmissível: É uma filosofia essencialmente interna, ou ao menos o que se pode dela transmitir são apenas as negações; como então espantar-se com o fato de que, para um observador exterior,  ela tome a forma de ceticismo?
Aí está o ponto fraco dessa filosofia; se quer permanecer fiel a si mesma, esgota seu poder numa negação e num grito de entusiasmo. Cada autor pode repetir essa negação e esse grito, variando sua forma, mas sem nada acrescentar.
Além disso, não seria mais conseqüente calar-se? Ora essa, os senhores escreveram longos artigos; para isso não puderam deixar de usar palavras? Assim, não foram muito mais "discursivos" e, por conseguinte, não ficaram muito mais longe da vida e da verdade do que o animal que vive pura e simplesmente sem filosofar? Não seria esse animal o verdadeiro filósofo? (POINCARÉ, 1995, p.158)
Assoun qualifica a reflexão epistemológica de Freud, não sem razão, de “tão radical quanto singular”[3], Freud insere na ciência o inconsciente, o não sabido. Não à toa esse conceito ingressa na ciência apenas para romper com o conceito de ciência[4], pois o inconsciente se situa como uma instância última e insuperável de incognoscibilidade, que se opõe a noção mesma de ciência, indo à radicalidade etimológica dessa palavra (tão popular em nossos dias) encontra-se o termo latino scientia. Pois o termo ciência: conhecimento, saber, informação; do latim scientia ciente, que tem ciência[5]; scientia/ae é um substantivo da primeira declinação com significado de conhecimento, ciência, arte na língua filosófica o conhecimento (Cícero), a especulação (Cícero)[6]. Não e preciso grandes feitos de interpretação para se perceber a evidente antinomia entre os dois termos, ciência e inconsciente.
O Kantismo ocupa lugar central na discussão promovida por Assoun, talvez por que também Kant, há seu tempo, promoveu, como ele mesmo relata em seu Prolegômenos, uma “revolução copernicana”, também o filósofo de Koenigsberg impôs aos seus contemporâneos um severo limite ao saber, e mudou de posição o sujeito do conhecimento. Todavia, Kant certamente teria críticas severas a certos posicionamentos de Freud, e talvez não seja de todo ocioso tomar ciência dessas críticas. Assoun nos relata algo deverás curioso que se encontra na correspondência de Freud.
“Desde que estudo o inconsciente, tornei-me eu mesmo muito interessante.” Para além da frase espirituosa, existe aí a indicação de uma especificidade epistêmica do objeto de estudo da psicanálise: o “inconsciente” tem essa virtude única em seu gênero, enquanto “objeto de estudo”, de interessar o sujeito em si mesmo – o que contrasta, por sua radicalidade, com a categoria frouxa do “interessante”. (2000, p26)
A franqueza de Freud é de fato reveladora, ela expõe uma ferida aberta na própria tecitura epistêmica desse saber, que se a rigor, não pode ser chamado de psicologia, pelo menos tem com esta essa característica comum, que aos olhos de Kant, a invalidava ab ovo.
Na perspectiva Kantiana, o eu, sujeito de todo julgamento, é uma função de organização da experiência mas do qual não pode haver uma ciência, de vez que ele é a condição de toda ciência (Pena, 1991 p.36)
Problema esse que se configura como rochedo a bloquear o caminho, irremovível (visto não podermos subir em nossas próprias costas para vermos mais longe), mas que, de alguma forma precisa ser contornado, mas não esquecido ou escamoteado. O sentido do sujeito em Freud (segundo Assoun) é paradoxalmente muito próximo do de Kant e ao mesmo tempo, infinitamente distante.
Portanto, se o “sujeito” não é uma categoria, metapsicológica, ele organiza efetivamente a experiência do inconsciente, à maneira de um a priori induzido por essa experiência. Toca-se, aí, a versão do mesmo círculo elaborado pelo saber metapsicológico. A Spaltung – processo pelo qual o sujeito se cinde (Einriss) sob o efeito da representação da castração – obriga a pensar uma versão inédita que constitui um desafio essencial à racionalidade do sujeito elaborada pela tradição filosófica. (Assoun, 2000, p.34).
Em ambos (Kant e Freud) esse sujeito organiza a experiência e é condição de toda experiência, mas a similitude termina aí. Para Kant, e, cum grano salis, para a filosofia de uma maneira geral, não existe essa Spaltung nos sujeito do conhecimento, nem tão pouco ele sofre essa Einriss, ao contrário, esse sujeito é íntegro, completo, transparente a si mesmo e auto-determinado. A faculdade da razão, possibilita auto-determinação, esse poder de uma quase semelhança a Deus, βρις  de que se pode, com justiça, acusar a filosofia. E que tal acusação, vinda do campo psicanlítico, causa estranheza e, não sem razão, um certo temor. Talvez nesse momento eu esteja sendo por demais ousado, mas chego a pensar que, se levada a sério pela filosofia a crítica Freudiana teria conseqüências, talvez, ainda mais profundas que aquela formulada por Kant, todavia devo a fortiori considerar essa afirmação demasiada para o fôlego desse texto.
Mas outros temores à psicanálise (e a psicologia) causam aos filósofos, pois a atividade pensante, que é base de toda a Filosofia, é uma atividade psíquica, e como tal, pertence ao campo da psicologia. O próprio sujeito do conhecimento é objeto de estudo da psicologia[7]. O que faz com que a Filosofia (como já apontou Nietzsche) corra o risco de tornar-se um saber submetido à psicologia.
Assoun também aponta algo crucial, que talvez não seja facilmente notado. Ele faz uma diferenciação entre Metafísica e Metapsicologia, e, a meu ver, uma das mais fundamentais diferenças reside na impossibilidade da psicanálise (ou qualquer outro saber psicológico) estabelecer um cosmovisão (Weltanschauung), o que é justamente o papel da Metafísica. Nesse sentido, é vital que a psicanálise não degenere em ideologia, nem tão pouco, que participe da cosmovisão científica. Do contrário, o delicado e precário equilíbrio entre geral e particular a que aludi anteriormente se esfacelaria.
A psicanálise não cria nenhuma visão de mundo original nem nenhum estilo de vida nesse sentido (Assoun, 2000, p.28)
No momento em que a psicanálise reforça ou adere a alguma Weltanschauung, ou pior! Torna-se ela mesma uma cosmovisão, tudo está perdido. E certamente as conseqüências clínicas seriam graves, pois a possibilidade de abertura para o individual, para o singular, para a vida mesma, pois tudo o que vive, vive individualmente (já nos alertava Goethe) estaria perdida, e a psicanálise rebaixada a saber ortopédico, normalizante. Como muitas psicologias, lamentavelmente, hoje o são.
Além disso, se se aceita naquilo que Freud repete ad nausea, que a psicanálise é uma ciência (mesmo que não seja, ela é um saber que, ao mesmo tempo, rompe com a doxografia do vulgo, e não se constitui em saber filosófico) não pode jamais, pretender estabelecer alguma verdade metafísica. Talvez seja mais fácil compreender essa afirmação quando se entende o que se diz quando se fala ou escreve a palavra metafísica. Metafísica, em grego, significa além (μετά) da física (φυσικά), reza a tradição que se deve ao fato dos textos de Aristóteles (hoje chamados de metafísica), que tratavam do tema dos princípios das causas primeiras, estarem, na biblioteca de Alexandria, na prateleira acima dos textos que tratavam da físis (φίσις). Para os gregos a metafísica não tratava de algo além ou exterior a físis (φίσις), para eles vigia o que se chamou de “realismo metafísico”. Durante o medievo (período em que a obra de Aristóteles gozava de autoridade quase inquestionável) chamava-se de metafísica a ciência do ser perfeito, ou a ciência de Deus, e de ontologia uma série de outras questões pertinentes (a imortalidade da alma, finitude ou infinitude do cosmos, etc.), a partir de Kant, metafísica e ontologia se confundem, e as questões ontológicas passam a ser chamadas também de metafísicas. Com Kant, chamou-se de metafísico todo o saber que se pretendia transcendente, ou que, em outras palavras, dizia algo sobre a coisa em si (Das Ding Sich).
Percebe-se, que a psicanálise, se segue ad litteram a noção de inconsciente, como limite do saber, ou como não sabido, não pode avorar-se de dizer algo definitivo sobre a coisa sem qualquer mediação, ou melhor, como se toda mediação tivesse sido brevi manu removida, ou, para ser novamente (e talvez demasiadamente, até) ousado, como se fosse possível acesso direto ao inconsciente ou como se esse não existisse. Mesmo Kant considerava a metafísica indispensável, principalmente como saber regulativo, e, a despeito da psicanálise não poder falar desse lugar (a qual ela não pertence) também à jovem ciência não cabe depreciar a metafísica, e nesse ponto creio que excedo os limites estreitos desse texto e o deixo com um ponto final provisório.



[1] Assoun, Paul-Laurent; 1996, Rio de Janeiro
[2] Ibidem p.38.
[3] Assoun, 2000, p.26.
[4] Ibidem p.25.
[5] Cunha, Antônio Geraldo da, 1986, p.182.
[6] Garner, 2003, p.896.
[7] Jung, 1986, p.214.

GRÃO MESTRE CHAN KOWK WAI





O texto que será reproduzido aqui é uma tradução minha para o português do original em castelhano, de um fragmento do livro: “Hung-Sing-Choy-li-Fat y ‘la palma de Hierro” de Carlos Moreira e Pedro Valência.

5ª Parte: Biografia do mestre Chan Kowk Wai, herdeiro da tradição de Cheun Hung Sing”.

Poucas vezes têm um estudante de Wu-Shu a oportunidade de encontrar-se com um homem que concentre em sua pessoa tantos conhecimentos sobre a arte marcial chinesa.

Nascido em 3 de Abril de 1935, em Cantão, começou desde a mais tenra idade sua carreira nas artes marciais. Aos 4 anos de idade todavia muito jovem para ser aceito com aluno por Chan Cheok Sing (o mestre de Choy-Li-Fat na sua aldeia natal), porém demasiado ansioso para aprender Wu-Shu, dedicava todo o seu tempo a assistir aos treinos, observando atentamente todos os detalhes e tentando memorizar os movimentos que logo praticava sozinho. Um dia estava tão entusiasmado com sua prática, que não se deu conta de que um dos discípulos do mestre Chan Cheok Sing lhe observava. Este impresionado com a abilidade do menino, o levou a presensa do mestre, o qual lhe pediu que lhe demonstrasse o que havia podido aprender por se mesmo. Depois de uma breve demonstração Chan Cheok Sing se deu conta das excepcionais qualidades naturais e de grande facilidade de aprendizado de Chan Kowk Wai, e rompendo com a norma aceitou o menino como seu mais jovem discípulo (a idade de 4 anos), dando início assim a uma brilhante carreira nas artes marciais chinesas.

Durante dez anos esteve Chan Kowk Wai sob a orientação do mestre Chan Cheok Sing. Já adolescente, a instabilidade políttica e social que assolava o continente chinês a partir da disputa de poder entre os comunistas e nacionalistas, obrigou sua família, como a tantas outras a emigrar para Hong Kong. Uma vez ali o jovem Chan Kowk Wai não perdeu tempo em contactar seu tio Ma Kim Fong, mestre do estilo Luo Han, uma das mais importantes escolas externas do norte que tem suas raízes no templo Shaolin de Honan.

Algum tempo depois, seu tio recebeu a visita de um amigo, outro grande mestre de Wu-Shu procedente também da China. Este não era outro senão Yang Sheung Mo, um mestre de Hung Gar que aos 35 anos de idade deixou suas aulas para seguir ao grande Ku Yu Cheung “A palma de ferro de Shaolin do norte”. Yang Sheung Mo foi o herdeiro da escola de Ku Yu Cheung em Gonshau, Cantão, porém as mudanças políticas ocorridas com a vitória dos comunistas a deixar o país como muitos outros mestres de seu tempo.. Yang Sheung Mo era muito famoso por sua “cabeça de ferro”, uma habilidade que desenvolveu a partir dos métodos de Chi-kung ensinados por Ku Yu Cheung.

Tinha acabado de chegar a Hong Kong e buscava um lugar para dar aulas e desenvolver sua preciosa herança marcial. Este fato levou a que o jovem Chan Kowk Wai lhe oferecesse sua própria casa como residência e seu pátio como escola, sendo esta a primeira escola de Shaolin do Norte fora da China Continental, e Chan Kowk Wai seu primeiro aluno.

Com sua natural habilidade e tendo o seu mestre em casa durante todo o tempo, Chan Kowk Wai não tardou em destacar-se muito do grupo de alunos que se havia reunido em torno de Yang Sheung Mo, ajudado por sua grande constância nos treinos, uma enorme vontade e não pouco sacrifício. Assilimilar a enorme bagagem técnica que lhe transmitia Yang Sheung Mo lhe obrigava nesta época de sua juventude a não ter praticamente nenhuma vida social. Nem cinema, nem festas, nem distrações; todo o seu tempo dedicava aos estudos e aos treinos de Wu Shu. Estes sacrifícios, no entanto lhe renderam uma recompensa: havia conquistado absoluta confiança de Yang Sheung Mo, e este lhe fez herdeiro de todos os seus conhecimentos.

A pesar de Ter uma vasta experiência em diversos estilos de Wu-Shu, Yang Sheung Mo era um homem de mentalidade aberta que incentivou a seu jovem herdeiro a tentar ampliar cada vez mais seus conhecimentos, Assim como o próprio Ku Yu Cheung havia feito em toda a sua vida. Também teve em sua juventude o raro privilégio de ser aluno dos “Cinco tigres do Norte”, os cinco mais famosos mestres do norte da China: O próprio Ku Yu Cheung  e Wong Lai Shen (ou Wah Lai Chen), mestre do estilo Luo Hap (ou Liu He, “as Seis realizações”) e de “Zhura Men” o “Estilo Natural” , também participou de um intercâmbio técnico com o mestre Tam Sam, aprendendo a linhagem Bak Sing do estilo Choy-Li-Fat das mãos de seu próprio criador.

Desta forma, Chan Kowk Wai dedicou todo o seu esforço a aprender dos melhores mestres do seu tempo. Além de completar seus estudos no estilo Luo Han com seu tio Ma Kim Fong, completou também seus estudos em outras escolas. Estudou o estilo de “Louvadeus Sete Estrelas” com o mestre Wong Hon Fan, o “Rei do louvadeus”; o estilo “Garra de Águia” com o mestre Chin Jin Man, da mesma escola do mestre Lau Fat Man, o “rei da Águia”; e finalmente o Choy-Li-Fat do mestre Yan You Chin, um médico herdeiro da mais pura tradição da linhagem criada por Cheun Hung Sing, que só quis Ter três discípulos em toda a sua vida.

O mestre Yan You Chin aprendeu o estilo de seu pai, yan Yim so, dentro da mais pura e severa tradição marcial seguida por sua família. Yan Yim So, juntamente com o famoso mestre Ho Ng’au, foi aluno por sua vez do mestre Gan Yu Tem, que juntamente com Chan Ng’au Sem eram os herdeiros mais importantes de cheun Hung Sing, o criador da escola de Fat Sam, considerado o co-fundador do estilo junto ao próprio Chan Heung.

Assim mesmo, Yam Yim So acrescenta um importante conteúdo técnico a sua tradição familiar de Choy-li-Fat depois de haver passado também por um período de aprendisagem com o monge Yien Sien, mestre do estilo Choy Gar.

Yan You Chin ensinou também a Chan Kowk Wai todos os métodos curativos da tradição dos grandes mestres das artes marciais, é por isso que o mestre Chan terminou por adquirir uma importantíssima prática na medicina tradicional chinesa..Seu grande poder interno, conseguido através  de muitos anos de prática do “Sino de Ouro”, lhe permitiu desenvolver a habilidade de curar com um método combinado de acupressura e Chi-Kung que poucos mestres podem igualar.

Além de seu longo período de treinamentos sob a tutela demuitos mestres, Chan Kowk Wai dedicou a maior parte de suas horas de descanso a ler e investigar a história do Wu-Shu e os seus personagens.

Possuidor de uma memória excepcional(e não poderia ser de uotra maneira para poder recordar os incontáveis grupos técnicos dos estilos que praticou), seu amplo conhecimento sobre as anedotes, datas e nomes de vários personagens históricos do Wu-shu não deixa de ser impressionante.

Em 1960, depois de haver passado mais de dez anos sob a orientação de Yang Sheung Mo, o então mestre chan Kowk Wai decidiu mudar-se para o Brasil, levando em sua bagagem um vastíssimo conhecimento de mais de dez estilos diferentes de Wu-Shu e um amplo arsenal de armas tradicionais, assim como um profundo conhecimento do “Chi-Kung” marcial e o método completo do “Sino de ouro” (Siu Cant Son) Do estilo Shaolin do Norte, um poderoso método que cultivou e desenvolveu da energia vital dirigido ao combate, o método que havia permitido a Ku Yu Cheung desenvolver sua incomparável “palma de Ferro” e a Yang Sheung Mo sua famosa “Cabeça de Ferro”.

Estabelecendo-se na cidade de São Paulo, participou da fundação do centro social chinês, onde deu aulas por um período de 12 anos, sendo o pioneiro absoluto no ensino das artes marciais chinesas no Brasil e um dos primeiros mestres no continente americano a aceitar alunos que não tivessem ascendência chinesa.

Acompanhando suas aulas na universidade de São Paulo, onde ensinou durante mais de sete anos, em 1972, juntamente com outros 46 alunos, fundou a “Academia sino Brasileira de Kung Fu”, que com o tempo se transformou na base da Associação sino-Brasileira de Wu-Shu e da Federação Brasileira de Kung Fu, congregando os demais mestres  de Wu-Shu do país para para trabalhar na divulgação das artes marciais chinesas.”

Este é apenas um pequeno fragmento de uma história que continua até os dias de hoje, pois mestre Chan e seu filho Tomaz Hon Kit Chan continuam até hoje o árduo e incansável trabalho de ensino e divulgação das artes marciais chinesas em nosso país.
 

BIOGRAFIA DO MESTRE KU YU CHEUNG

O texto que será reproduzido aqui é uma tradução minha para o português do original em castelhano, de um fragmento do livro: “Hung-Sing-Choy-li-Fat y ‘la palma de Hierro” de Carlos Moreira e Pedro Valência.

O mestre Ku Yu Cheung foi um dos primeiros mestres do norte da China que se mudou para o sul com o intuito de ensinar ali um estilo nortista de Wu Shu. Sua grande reputação como artista marcial, despertou de imediato o interesse dos demais mestres sobre sua pessoa. Além disso, como pioneiro no ensino de estilos do norte, Ku Yu Cheung decidiu forjar a sua reputação nas províncias do sul através de uma série de combates amistosos com mestres proeminentes das diferentes cidades que visitava.

Quando finalmente se estabeleceu em Gonshau (Cantão), rapidamente cresceu o interesse do mestre Tam Sam por comprovar as qualidades marciais da recém chegada escola do estilo Bak Siu Lum de Ku Yu Cheung.

Para enfrentá-lo, Tam Sam enviou seu melhor aluno, Kou Tai Chian para que desafiasse Ku Yu Cheung para um combate. O desafiante, um corpulento e musculoso homem de quase cem quilos de peso, solicitou primeiro uma entrevista particular com Ku Yu Cheung dentro dos recintos da própria escola. Buscando uma desculpa para desafiá-lo para um combate, ou talvez falando com sinceridade, disse não crer no poder da sua famosa “palma de ferro”, e que a quebra dos tijolos devia tratar-se de algum tipo de truque.

Ku Yu Cheung sabia que o jovem estava procurando por uma luta, mas naquele momento já tinha uma escola estabelecida e uma crescente reputação, então porque combater com um desconhecido, isso não o interessava de modo algum. Assim diante dessa provocação preferiu evitar o combate direto, optando por fazer uma demonstração de seu domínio da energia interior. Dirigindo-se ao pátio da escola, apontou para um tijolo do muro lateral, perguntando se este tijolo parecia com um tijolo trucado ou um tijolo real. Ao receber uma resposta afirmativa, diante da visão atônita de todos os presentes, arrancou o tijolo escolhido com a ponta dos dedos, deixando os demais intactos.

Apesar da demonstração de Ku Yu Cheung, ao corpulento desafiante havia sido confiada uma missão como melhor aluno da sua escola, e não podia regressar sem haver combatido. Insistindo nisso, talvez por orgulho, talvez por temer que o chamassem de covarde, argumentou com Ku Yu Cheung que apesar de seu domínio da energia interior ser excepcional, em um combate um combate também eram necessárias outras habilidades. Sem poder recusar ao desafio, Ku Yu Cheung aceitou o seu pedido. O jovem confiava na força de seus músculos, mas já estava prevenido para os poderosos punhos de seu pequeno e bem mais franzino oponente. Mal se colocou em guarda e iniciou o combate, Ku Yu Cheung lançou um poderosíssimo chute lateral que levantou e arremessou os quase cem quilos de seu atacante, segundo testemunhos oculares, a mais de 20 metros, estava o mesmo no meio da rua, em uma rapidíssima e completa derrota para este. O jovem se levantou surpreendido e confuso, pois apesar do poderoso chute que havia recebido não estava ferido. Admitindo desta vez a superioridade de Ku Yu Cheung lhe cumprimentou e retirou-se de volta a sua escola.

O mestre Tam Sam ouviu com reservas o relato do seu melhor aluno, pois apesar de tudo não podia acreditar que tão formidável domínio da energia interior puder-se ser encontrada fora dos muros de Shao Lim e em pleno século XX. Sendo assim colocar-lo a prova uma vez mais.

Desta vez enviou cinco de sues melhores alunos ao restaurante aonde Ku Yu Cheung ia todos os dias para ler o jornal. O mais jovem de todos levava um bastão. Com a estratégia cuidadosamente ensaiada, os quatro companheiros cercaram dissimuladamente Ku Yu Cheung, que se encontrava sentado em um tamborete lendo. Ao sinal combinado o mais jovem tentou tira-lo de seu assento enganchando-o com seu bastão enquanto os demais se lanaçaram em um ataque simultâneo nas quatro direções.

Reagindo com extraordinária rapidez, Ku Yu Cheung se levantou de um salto e ao mesmo tempo lançou um chute duplo e um golpe usando os dois punhos derrubando em um instante seus quatros adversários. O quinto, em uma atitude inteligente, fugiu.

Hoje, todavia vive e é um respeitado médico me Hong Kong, seu nome é Sii Li Fei e foi ele que em uma conversa direta com o mestre Cham Kowk Wei, transmitiu esta história dos enfrentamentos de Ku Yu Cheung e a escola de Tam Sam. Depois destes rápidos combates, Tam Sam já não duvidava mais da habilidade e poder de Ku Yu Cheung, e decidiu conhece-lo pessoalmente, quis fazer uma visita de cortesia a sua escola. Então nasceu uma grande amizade entre os dois mestres, mas ambos eram artistas marciais e seu campo de atuação era o combate e em pouco tempo Tam Sam solicitou uma prova prática, Tam Sam era muito famoso pelos seus bloqueios e por seus “Punhos de Leopardo”, e desejava por a prova a velocidade de seus punhos contra os chutes de Ku Yu Cheung, a sim entraram em acordo que lançaria dez chutes e Tam Sam limitar-se-ia a bloqueá-lo.O resultado desta prova não foi menos surpreendente que os duelos anteriores, Ku Yu Cheung pode golpeá-lo dez vezes seguidas com as pernas sem que Tam Sam o alcançasse com seus bloqueios.

Estas provas não fizeram mais do que aumentar sua amizade. Nos duelos seguintes que Ku Yu Cheung recebeu, enquanto viveu em Gonshau, Tam Sam sempre se interpunha entre o desafiante e lançava um contra desafio; e antes de lutar com Ku Yu Cheung deveria primeiramente enfrentar a ele em combate.

Essa amizade que se solidificou entre ambos e que estava baseada em respeito mútuo e foi frutífera para as duas escolas, pois se estabeleceu um intercâmbio técnico entre os alunos de uma de outra. Em virtude do qual, hoje muitos mestres de Shao Lim Norte conhecem as três formas da linhagem Bak Sing de Choy-Li-Fat, enquanto que os mestres desta também conhecem as cinco primeiras formas de Shao Lin Norte.

Dentre os mestres mais destacados mestres que participaram deste intercâmbio, estão Yu Cheung em GonShau e o mestre de Cham Kowk Wai, o mestre Cham Nin Pak, um aluno de Tam Sam que se converteu em herói da segunda guerra mundial – apelidado “macaco de ferro”por sua invencibilidade nos inúmeros combates que teve em sua longa vida como artista marcial - ; e o mestre Chui Cheung, também aluno de Tam Sam, um dos mais respeitados mestres de Choy-Li-Fat, conhecido como um dos “Quatro invencíveis do Cantão”, reputação que ganhou com seus punhos e muitíssimo combates.

A Viagem de Chihiro



Este é um texto que escrevi há alguns anos, justamente na época em que o filme de Miyazaki estava em cartaz nos cinemas, como jamais o publiquei, resolvi fazê-lo no blog. O filme a viagem de Chihiro continua sendo uma obra prima e um dos meus favoritos, então creio que o texto, mesmo sendo já de certa maneira datado, possa despertar algum interesse.

O filme a viagem de Chihiro, em japonês Sen to Chihiro no kamikakushi (千と千尋の神隠し), de Hayao Miyazaki (宮崎 駿), é um dos mais geniais e belos filmes de animação que já passaram em nossos cinemas.

Comecemos por Miyazaki, um ilustre desconhecido entre nós, exceto talvez por alguns “Otakus” (pessoa aficionada por mangás). Miayzaki é autor do excelente Mononoke Hime (princesa Mononoke) em português, além de Porco Rosso, Nasicca e Meu Vizinho Totoro, também excelentes. Em seus filmes, e a viagem de Chihiro não é exceção, está presente uma crítica muito inteligente a nossa sociedade e nosso modo de vida. Em Mononoke Hime, há uma crítica constante a sociedade industrial e a interminável luta da nossa sociedade contra a natureza, um dado que é muito caro à cultura ocidental e cristã. Na nossa cultura deus está separado da criação, além disso, há uma supremacia do homem sobre a criação, é nosso direito subjuga-la, a natureza supostamente existe para nos servir. Sobre este ponto, no livro Capitão Mouro de Georges Bourdoukan, o personagem do título, um mulçumano ironiza essa empáfia dizendo: “...o Altíssimo, em sua infinita bondade, diria que o homem foi criado no sexto dia, por isso não deve ser orgulhoso e enaltecido, pois o mosquito foi criado antes dele”. Esta dicotomia homem versos natureza era profundamente estranha às culturas tradicionais da China e do Japão e isso se reflete até hoje em suas manifestações religiosas. 

Miayzaki possui um estilo delicado, seu traço é delirante, seus filmes, especialmente A viagem de Chirriro, são quase oníricos. Suas histórias podem ser lidas de muitas formas diferentes, mas sua acidez demolidora contra nosso atual modo de vida é uma marca constante.

Mas falando especificamente do filme em questão, muitos dos aspectos dele podem ser confusos se não soubermos decodificar certos símbolos que surgem de forma vertiginosa na tela, ou certas referencias. Por exemplo, em um dado momento do filme, uma das personagens fala da existência de oito milhões de deuses, o que nos remeteria a uma cultura politeísta, ledo engano. O termo original, que foi traduzido de modo capenga como deus é, em japonês Kami, uma palavra que pode ser escrita com três letras chinesas diferentes, podendo significar papel (紙), como em tegami (手紙/carta) ou origami (折り紙/arte de dobrar papel), pode significar cabelo (髪) ou “deus” (神).

 Como já foi dito Deus é uma tradução capenga que nos remete fortemente a noção judaico-cristã de divindade (que seja: deus como criador e o mundo como mecanismo), não é o caso. Kamis não são deuses, mas espíritos, espíritos que habitam todas as coisas, desde um rio até uma cozinha, por exemplo, no ritual matinal do Zen budismo da escola Soto Zen, em um certo momento se reverência o Kami da cozinha. Em nossa cultura existe um contraste muito forte entre o mundo material e o espiritual, na cultura xintoísta japonesa, e na antiga cultura Taoísta Chinesa (varrida pelo vagalhão vermelho que tomou conta da China) esta separação não é tão clara, as coisas são ao mesmo tempo matéria e espírito nas palavras de Lao Tzu, autor do Tao Te King, citado por Alan W. Watts: “ser ou não ser surgem mutuamente. Longo e curto subentendem um ao outro; difícil e fácil se implicam mutuamente”.

Tomemos o exemplo de um rio, ele é a água, a correnteza, os peixes, mas também uma entidade espiritual, existindo um Kami do rio, ou um kami da montanha, e por aí vai. Nessa cultura existem os deuses propriamente ditos, como Amaterazu a deusa do sol, de quem o imperador é descendente, ou na china o Imperador de Jade, senhor das cortes celestiais.

Outra imagem marcante no filme é a presença de dragões. Nos mitos de vários países orientais, especialmente China e Japão, o dragão (em chinês ch’en ou Lung) é considerado o poder espiritual supremo, o mais antigo símbolo da mitologia oriental e também o mais ambíguo. Dragões representam o poder celestial e o poder terreno, sabedoria e força. Eles residem na água e trazem fortuna boa sorte e, segundo a crença chinesa, chuva para as plantações. Na tradução de Richard Wilhelm do livro das mutações temos a seguinte definição para os dragões: “O dragão tem, na China, uma conotação completamente diferente daquela que tem no Ocidente. Simboliza a força propulsora, eletricamente carregada, dinâmica, que se manifesta nas tempestades. No inverno essa força recolhe-se de volta a terra; no começo do verão reativa-se, surgindo no céu como relâmpago e trovão. Como conseqüência às forças criativas da terra despertam”.

 Acredita-se que a presença de representações de dragões na parada do dia de ano novo sirva para repelir espíritos malignos que poderiam estragar o ano novo. Na china o dragão de cinco garras tornou-se o emblema oficial do imperador, o dragão de quatro garras é considerado o dragão chinês comum. O dragão de três garras é reconhecido como o dragão japonês. Na mitologia Hindu, o Deus Hyndra, o Deus do céu, aquele responsável pelas chuvas, teve de caçar Vitra, o dragão das águas, para recuperar a chuva. 

Dentre as inumeráveis descrições dos dragões na china antiga, uma deles referia-se a eles como: “uma criatura longa e escamada, capaz de tornar-se visível ou invisível, pequeno ou largo, curto ou longo. Que sobe ao céu durante o equinócio de primavera, e que submerge em águas profundas durante o equinócio de outono”, Geralmente os dragões chineses são descritos como sendo formados por partes de nove criaturas: a cabeça de um camelo, os olhos de um demônio (ou de um coelho em algumas versões), as orelhas de uma vaca, os chifres de um cervo, pescoço de cobra, barriga de sapo, garras de águia e as solas dos seus pés são de um tigre, e as 117 escamas que cobrem o seu corpo são escamas de carpa.Entre os muitos poderes dos dragões incluem-se: mudar a cor do seu corpo, voar mesmo sem asas e desaparecer diante dos olhos em uma explosão de luz brilhante.

Através da história chinesa os dragões têm sido comparados à água. Dizem que algumas das piores enchentes na china ocorreram quando um mortal aborreceu por algum motivo um dragão. A crença nos dragões influenciou decisivamente a mentalidade do povo chinês, suas pinturas sua poesia e literatura e até mesmo a sua arquitetura, os beirais dos telhados chineses são inclinados para cima para que à noite os dragões possam enroscar suas caudas para dormir (no Brasil podem-se ver algumas casas com essa peculiaridade devido à influência que os portugueses receberam quando invadiram Macau na China).

Na mitologia chinesa existem muitos tipos de dragões: aqueles que protegem os deuses e os imperadores (muitos imperadores chineses alegavam ser descendentes diretos de dragões), aqueles que controlam o vento e a chuva, os guardiões de tesouros escondidos, e muitos outros.

Algo muito peculiar e interessante na mitologia dos dragões diz respeito as suas escamas. Como foi dito acima as escamas do dragão são escamas de carpa, isso ocorre devido à crença de que as carpas ao subirem os rios lutando desesperadamente contra a correnteza, apesar de serem fracas conseguem reunir toda a sua vontade e realizar magníficos saltos, os chineses acreditam que nesse momento elas se transformam em dragões, mas preservavam suas escamas para jamais se esquecerem de suas origens e do lugar de onde vieram.

No filme algumas das mais belas imagens são de Hako, um garoto capaz de se transformar em um dragão. É justamente ele o guia de Chihiro, a protagonista do filme, ele a salva e orienta em vários momentos.

Outro aspecto importante do filme diz respeito aos nomes, Chihiro tem seu nome roubado e se transforma em Sen (千), o motivo é a retirada de várias letras chinesas do seu nome restando somente a letra chinesa que em japonês se pronuncia sen e significa mil, esse encanto permite que ela seja controlada.

Neste momento do filme me recordei das histórias de John Constantine, que Neil Gaimam escrevia para a revista Vertigo, da DC Comics, Constantine, que enfrentava demônios, não se cansava de repetir sobre os seus adversários “o poder está em nomear”.

Na china era comum que as pessoas tivessem vários nomes. No prefácio da tradução dos Analectos de Confúcio em uma nota Simon Leys nos diz: “Quanto aos nomes próprios, tradicionalmente os chineses eram chamados por diferentes nomes: um nome pessoal que apenas podia ser utilizado pelos pais e superiores, nomes de cortesia para uso geral, nomes de fantasia, títulos, etc”.

No Japão era muito comum que as pessoas mudassem de nome no decorrer da vida, além disso, havia um costume bastante peculiar, quando criança se recebia um nome, mas esse não era um nome definitivo, quando alguém se tornava adulto era escolhido um novo nome. Por exemplo, o famoso espadachim Miaymoto Musashi, na infância era chamado de Takezo.

Outro aspecto que pode parecer estranho ao espectador ocidental diz respeito a peculiar casa de banhos onde se passa a maior parte do filme. No Japão tradicionalmente o banho era um ato público. Várias pessoas, homens e mulheres podiam tomar banho juntas, e além do banho quente comum, era e ainda é muito popular o banho em fontes termais naturais e a busca por sofisticadas casas de banhos que oferecem banhos especiais, com infusões de ervas raras e caras, alguns até medicinais.

Muitos outros detalhes podem escapar ao olhar mais desatento, por exemplo, em determinado momento do filme, a protagonista toma um trem, neste trem há uma placa com dois caracteres chineses, um que significa meio e outro caminho, ou seja, caminho do meio, que é uma das designações do caminho do Buda ou Budadharma.

Deixando um pouco de lado as referências culturais, e partindo para aquilo de universal que o filme possui, poderíamos falar das inúmeras alusões míticas contidas no filme. O filme narra uma jornada, ele se inicia com a partida de Chihiro e seus pais de seu antigo lar, na verdade esta parte está subentendida, pois o filme começa com a chegada deles a sua nova cidade, neste momento Chihiro ainda está apegada a sua antiga vida e não aceita muito bem à mudança, ela vai a viagem inteira agarrada a um buquê de despedida que contêm um cartão de despedida que será crucial mais adiante. No momento em que eles entram na cidade a protagonista se dá conta de que as flores estão mortas, e junto com elas sua antiga vida.

As mudanças são uma parte importantíssima na cultura oriental, não se deve ter apego excessivo a nada, pois intrinsecamente nada existe, tudo está em perpetua mutação. Um dos livros mais importantes para china, e todos os outros países que beberam da fonte da sabedoria do reino do meio, é o I Ching, o clássico das mutações. Estes conceitos se encontram fortemente representados no filme. Nesse sentido o título em português, “A viagem de Chihiro” é bem adequado.

O filme nos remete aquilo que Joseph Campbell denominou “a jornada do herói”, que pode ser entendido como um aforismo para a nossa própria jornada interior de crescimento. No filme somos representados pela jovem Chihiro, uma garotinha quase indefesa que se vê separada dos pais e ainda com a pesada responsabilidade de salvá-los, para isso ela precisa crescer, enfrentar sozinha os obstáculos, separar-se de sua infância e de suas projeções infantis e tornar-se uma pessoa adulta, no sentido pleno da palavra. O oposto de Chihiro é um imenso bebê, que vive enclausurado e protegido por sua mãe, a vilã do filme uma bruxa, essa criança gigante é mimada e superprotegida, a ela não foi dada à chance de crescer, esse bebezão representa a grande maioria de nós, que virou as costas a grande aventura de crescer, de tornar-se uma pessoa plena, de romper os horizontes mesquinhos que nós cercam e que comodamente aceitamos. Mas no filme, mesmo este bebezão é forçado a aceitar novos horizontes, a se deparar sozinho com a crueldade do mundo que nos cerca.

Apesar da ênfase nas mudanças, como foi exposto, o passado não é desprezado simplesmente, ele tem seu lugar, de certa forma ele nos define, como na doutrina Budista do Karma, de certa forma o passado de Chihiro é que a salva da maldição da perda do nome, e são as ações passadas de Hako a chave da sua redenção, quando Chihiro aceita sua condição presente, seu passado pode se manifestar de forma benéfica, e não mais como uma amarra que a impedia de desfrutar plenamente o momento presente, que em última instância é tudo o que temos, como reza a máxima budista: “o passado não existe e o futuro é uma ilusão”.

Há ainda muito a ser dito, mas creio que o melhor é deixar esta lacuna, como os antigos construtores egípcios que ao escavar uma tumba deixavam sempre uma parte da construção terminando na rocha nua, intocada. Este filme é uma grande oportunidade de crescimento, de pararmos de olhar para o nosso próprio umbigo e olharmos com reverência para uma cultura tão antiga quanto à do oriente, gostaria de terminar este artigo com uma frase de Confúcio, que acredito que representa um pouco o espírito desse filme e da obra de Miayzaki: “Quando a natureza prevalece sobre a cultura, obténs um selvagem; quando a cultura prevalece sobre a natureza, obténs um pedante. Quando natureza e cultura estão em equilíbrio, obténs um cavalheiro”.