quarta-feira, 16 de abril de 2014

Resposta a: “Terapia: Duas coisas que você deveria saber” de Rafael Hide



O texto que segue é uma tentativa fraterna de resposta ao vídeo abaixo



https://www.youtube.com/watch?v=POXvyB2QQxc

A psique não pode ser apreendida numa teoria; tampouco o mundo. As teorias não são artigos de fé; quando muito, são instrumentos a serviço do conhecimento e da terapia; ou então não servem para coisa alguma. Jung.

Caro Rafael,

Seu vídeo me suscitou o desejo de lhe escrever uma resposta, não nos conhecemos, mas essa possibilidade de comunicação é uma das mágicas de nosso tempo e espero que, assim como a sua opinião chegou a mim, a minha resposta possa, de alguma maneira chegar até você. Vou tentar responder ponto a ponto seus questionamentos, sinceramente não sei se conseguirei fazê-lo, um de meus autores preferidos, o historiador Marc Bloch, inicia sua última obra afirmando “(...) não imagino, para um escritor, elogio mais belo do que saber falar no mesmo tom aos doutos e aos escolares. Mas simplicidade tão apurada é privilégio de alguns raros eleitos”. Certamente não me incluo entre esses eleitos, mas vou me esforçar para ser claro, o mais claro possível.

Começo por aplaudir a sua iniciativa, seu depoimento é sincero e honesto, também corajoso. A maioria de suas críticas acerta o alvo, eu mesmo acrescentaria diversas outras e lhe remeto a um de meus textos sobre o tema (O Lugar da psicologia). Você também está correto ao advertir para a falácia do argumento de autoridade, por isso, não perderei tempo com tolices como títulos e diplomas, mas quero salientar a ausência de um, não sou psicólogo. Você, caro Rafael, inicia suas considerações advertindo para um ponto crucial, a ausência de um paradigma unificado em Psicologia. Um importante epistemologo da psicologia, Antonio Gomes Penna, afirma a mesmíssima coisa: não existe uma, mas várias psicologias. Basta um exame mais atento para perceber tal fato, chega mesmo a ser algo obvio, mas ao leigo parece sim existir algo como uma “psicologia”, o que você está correto em apontar como uma quimera e, principalmente, como algo problemático.

Diante desse fato a que você aludiu, não posso responder pela miríade de psicologias que existem por aí, espero que compreenda as minhas limitações, mas irei responder as suas indagações a partir da Psicologia Complexa fundada por Carl Gustav Jung. De início, gostaria de deixar claro que poucos autores foram tão mal entendidos e desvirtuados quanto Jung e que, eu mesmo, sou um ferrenho crítico do que passa hoje em dia por Psicologia Junguiana, mas abusus non tollit usum. Assim como você, eu tenho grande apreço pelo método científico, e também pela epistemologia. Se estiver interessado em saber que resposta a ciência fundada por Jung tem as suas perguntas, basta continuar lendo. Como última palavra de introdução, esse também é um tema que me traz profunda irritação e afetos muito pouco positivos, mas tentarei ao máximo me afastar desses afetos, pois eles trazem uma terrível restrição da consciência e fazem brotar em nós aspectos muito primitivos de nossa alma.

Comecemos pela sua primeira indagação dirigida ao terapeuta, devo salientar que é uma pergunta difícil, “O que você entende como Psicologia”. Bom, para Jung a psicologia não é nem uma ciência da natureza, apesar de utilizar o método das ciências da natureza, o método empírico descritivo e nem tão pouco uma da ciências humanas, mas ocupa uma posição sui generis. É importante afirmar que a Psicologia não é e nem pode ser filosofia, para ele a filosofia não passava de “fichas de contar do intelecto movidas para frente e para trás a milhares de anos”, menos ainda a psicologia pode se arvorar a ser metafísica, pois não podemos subir em nossos próprios ombros para ver mais longe, não podemos nos colocar em um estado suprapsíquico e falar das coisas como elas realmente são, a psicologia não pode falar da essência das coisas, mas, exclusivamente, da maneira como elas são imaginadas. Voltando ao método empírico, em psicologia a pergunta “por quê?” é inconveniente, pois não sabemos por que as coisas são como são, responder a essa pergunta é trabalho do teólogo e do filósofo (metafísico), mas o método empírico tem a vantagem de nos dizer “como” as coisas funcionam e, para Jung, não se deve jamais se afastar do campo dos fenômenos e tampouco, se perder em especulações vãs. Para Jung a psicologia é uma ciência, mas uma com sérias complicações. Como você bem apontou, não dispomos de uma matemática, e isso é um problema epistemológico sério! O psíquico não é matematizável, por isso, o primeiro passo, de uma psicologia que deseje ser uma ciência é definir seus conceitos da maneira mais precisa possível e que esses conceitos sejam retirados da linguagem comum sempre que possível. Além disso eles servem unicamente para descrever grupos fenomenológicos, assim como o conceito de artrópodes, que descreve os invertebrados com patas articuladas. Além disso, Jung considerava que o único critério de validez de uma hipótese é o seu valor explicativo. Como eu disse antes, não se deve perder tempo com divagações ociosas.

Uma das complicações da Psicologia é o fato de que se trata não de uma ciência sobre o psíquico, mas no psíquico! Todas as hipóteses psicológicas são, elas mesmas, fenômenos psíquicos, não há ponto arquimediano externo, daí a proposição por Jung de uma conceito fundamental chamado de realidade psíquica, mas que pode ser resumido ao se dizer que tudo aquilo que age, que atua, é real. Como uma última palavra, Jung advertia que a psicologia não poderia jamais se converter em uma visão de mundo, mas que era indispensável que o terapeuta possua uma visão de mundo, mas que esteja aberta a mudança em virtude do diálogo com o paciente. Para ele o papel do terapeuta é o de espelho dialético, e o método clínico o método dialético.

Continuando com a sua primeira pergunta, que se subdivide em várias, passo a “qual a estrutura e a interpretação que você dá para como as pessoas funcionam”. Bom, você não pega nada leve com os pobres terapeutas, espero que perceba o terrível grau de complexidade que essa pergunta exige, mas vou tentar responder. Basicamente, a visão de homem na psicologia de Jung pode ser resumida pela famosa frase de Freud “não somos senhores em nossa própria casa”, advirto que junto da resposta a essa questão virá também à resposta, não menos difícil, de “por que você acredita nisso”.  Jung postula a existência de um inconsciente psíquico, mas o que isso significa? E por que ele precisa postular isso? Bom, inconsciente é um conceito limítrofe e negativo e que possui a grande vantagem de não afirmar nada, diz apenas que existem fatores que não são conscientes e que eu os desconheço completamente e isso evita um preconceito. Fundamentalmente o inconsciente é aquilo que eu não sei, minha definição preferida é a de que é um fator irracional existencial inalienável. Repare no termo inalienável. Jung também postula, como hipótese basilar, que existe uma relação entre a consciência, que é um processo momentâneo de adaptação, e o inconsciente que é compensatório e/ou complementar, mas que nos casos de neurose, pode ser de oposição. Além disso, a consciência é intermitente e momentânea, sendo o inconsciente anterior, simultâneo e posterior à consciência do eu. Na realidade, o inconsciente só complica e bagunça as coisas, mas, para nosso azar e sorte paradoxalmente, ele é um fato empírico. Diga-me Rafael, quantas vezes você já não sonhou com coisas tão estranhas ou indecentes que você jamais teria coragem até mesmo de pensá-las conscientemente? Ou quantas vezes, tomado por um afeto, você não disse ou fez coisas que jamais faria se pensasse um pouco melhor? Ou quantas vezes, diante de uma pessoa que você sabe perfeitamente o nome, você esqueceu o nome justamente no momento crucial? Ou, diante de uma prova importante, para a qual você estudou muito, contra todo o bom senso, diante da tensão você esqueceu tudo? Esses são apenas alguns exemplos cotidianos de como nossa adaptação consciente pode ser afetada por um fator desconhecido e que parece dotado de uma natureza maquiavélica.

Sua segunda pergunta trata do diagnóstico/prognóstico/tratamento, bem, eu terei de lhe dar uma resposta embaraçosa, pois fundamentalmente, o terapeuta não pode fazer nada, ou no máximo, muito pouco pelo paciente, mas deixe-me lhe explicar porque antes que você pense que nossa ciência é inútil, longe disso. Jung, em um de seus livros mais complicados, sincronicidade, cita o caso de uma paciência que já passara por 3 médicos (ele era o terceiro), sem nenhum sucesso em conseguir ajudá-la. Ela estava, junto com ele, a um bom tempo empacada, mas tivera um sonho com um escaravelho e, ao relatar esse sonho um inseto parecido com um escaravelho começou a se chocar contra a janela, sobre esse insólito evento Jung asseverou que para tirá-la de sua condição de estase “para isto, evidentemente, seria necessário um acontecimento de natureza irracional, que eu, naturalmente, não teria condições de produzir”. Jung afirmava ser crucial a irracionalização dos objetivos da terapia. Veja Rafael, quando eu creio por motivos empíricos, que existe um fator existencial, irracional, inalienável, isso complica um pouco as coisas. Tomemos o sofrimento neurótico, ele é um logro, não possui valor moral. Uma pessoa problemática sofre, mas sabe o motivo de seu padecer (o vizinho, a namorada, a matemática etc), um neurótico sofre, mas não tem ideia dos motivos de seu sofrer. Em psicologia complexa não se procura um diagnóstico clínico, algumas vezes ele só é possível ao final do tratamento, procura-se um diagnóstico psicológico, isto é, um diagnóstico dos complexos e ele só se revela no decorrer do tratamento, pois é inconsciente. Na realidade em uma anamnese aquilo que o paciente diz normalmente encobre o verdadeiro problema, pois nem o paciente e nem o analista sabem de antemão do que se trata. O paciente só sabe que tem um problema, mas nem faz ideia do que seja esse problema, parece familiar?

Eu gosto de recordar sempre algo narrado por Franz, principal discípula de Jung, certa feita ela estava sendo supervisionada por Jung e falava de como estava se esforçando ao máximo para que uma de suas pacientes não surtasse, ao que Jung retrucou “como você sabe que ela não deve surtar? Como você sabe que depois do surto ela não pode melhorar? Fundamentalmente não sabemos o que deus quer das pessoas”. Embaraçoso não? A sua pergunta, uma pergunta que se deve levar a sério, um terapeuta realmente comprometido com o método deveria responder “não sei”. Em psicologia complexa se considera que a empatia não nos leva muito longe, em análise importa a simpatia, no sentido de sofrer junto, o analista e o paciente sofrem juntos as agruras do processo e uma parte considerável desse processo é Deo concedente, ou seja, depende da natureza, depende do inconsciente e da manifestação espontânea de um acontecimento de natureza irracional. Para Jung irracional significa simplesmente extra-racional, se você já conheceu alguém com depressão, deve ter notado que muitas pessoas lhe dão conselhos bem intencionados e muito sensatos, mas que não adiantam de nada, pois o aspecto irracional da vida é impermeável à racionalidade. Se fôssemos senhores em nossa morada, jamais faríamos algo tão insensato quanto ficarmos deprimidos. Sobre o diagnóstico, Jung também dizia algo embaraçoso, mas verdadeiro, de que dizer que alguém é um filhinho de papai é muito mais preciso psicologicamente do que dizer que é histérico.

O tratamento consiste um diálogo em que todas as técnicas são abandonadas, e em que o papel de sujeito cabe ao paciente. Procura-se prestar muita atenção aos sonhos, pois eles são a “via régia de acesso ao inconsciente”, mas basicamente o terapeuta vai ouvir o que o paciente tem a falar, até que ele tenha realizado uma confissão mais ou menos completa, pois ali ele pode falar, desde que deseje, de coisas inconfessáveis, e isso, por si só, já possui algum efeito sobre a sua alma.

Você, caro Rafael, está correto ao afirmar que alguns psicólogos se escondem por trás de suas teorias, Jung afirmava a mesma coisa, isso se chama persona medici, e você acerta o alvo ao apontar que isso é uma fraude, mas, paradoxalmente, pode ser contraproducente gastar tempo falando ou explicando a teoria. Jung escreveu muitos livros e possui realmente uma teoria bastante complexa, veja a minha dificuldade aqui na tentativa de ser claro, todavia, se o paciente insistir nisso, deve-se aquiescer ao menos em parte. Jung considerava essa postura que você aponta como sendo extremamente daninha e um obstáculo ao tratamento e que, a principal ferramenta que o terapeuta tem a sua disposição é a sua própria personalidade, por isso ele mesmo deve passar pelas agruras do processo de análise.

Como eu lhe disse, é provável que as minhas resposta apenas ratifiquem para você que a psicologia é uma grande fraude, já que não é possível fornecer um diagnóstico preciso e um prognóstico, pois estamos a mercê do inconsciente, mas é exatamente dessa maneira que as coisas são. Seria mais fácil se não fosse assim, mas os fatos mostram isso, e quem se dispõe a ser um analista deve abdicar do desejo de curar, certamente ele deve se esforçar para ajudar, mas, paradoxalmente, o desejo de curar barra o processo, pois ele é algo espontâneo. No mesmo livro que lhe citei antes Jung diz algo interessante sobre o papel do analista e eu finalizo com isso. Disse ele

A paciente do escaravelho se encontrava em uma situação “impossível”, porque seu tratamento estacionara e parecia não haver saída para o impasse. Em tais situações, quando bastante sérias, costumam ocorrer sonhos arquetípicos que revelam alguma possibilidade de progresso no qual não se teria pensado. É esta espécie de situações que constela o arquétipo com grande regularidade. Em determinados casos, o psicoterapeuta, portanto, se vê obrigado a descobrir o problema racionalmente insolúvel à luz do qual o inconsciente do paciente dirige o seu curso. Uma vez descoberto este problema, as camadas mais profundas do inconsciente, as imagens primordiais são ativadas, e o processo de transformação da personalidade entra em andamento. (Jung, 2000, p.18, grifo meu)

Espero ter podido, de alguma maneira, lhe dar alguma resposta, é preciso que eu diga que compartilho de sua irritação e preocupação, mas também é preciso que você compreenda que há uma incomensurabilidade entre medicina e psicologia, por isso suas comparações entre uma e outra acabam sendo descabidas. Mesmo assim, isso não retira o valor de sua crítica e de seus questionamentos, se mais pessoas se questionassem certamente haveria menos charlatões, e, com pesar, devo admitir que entre os “junguianos” existem muitos charlatões. Outras teorias ou abordagens lhe darão outras respostas, talvez até mesmo respostas mais convincentes, tentei ser tão honesto e sincero quanto você foi e, espero, não ter usado das falácias que apontou.


Ab Imo Pectore

Heráclito Aragão Pinheiro, Fortaleza, 16/04/2014

terça-feira, 1 de abril de 2014

A psicologia do “bandido”

O facebook tem sido uma fonte de inspiração para muitos de meus escritos, mas, igualmente, tem se revelado uma fonte de preocupação. O advento da internet e das redes sociais permitiu que um grande número de pessoas pudessem compartilhar, em tempo real, suas ideias, opiniões, e tudo aquilo que lhes vai a alma. O lado negativo dessa possibilidade, até então inaudita, de se comunicar de maneira tão ampla, é que possibilitou uma maior e mais massificada capacidade de compartilhar nossos preconceitos afetivos, ressentimentos fanáticos e ódio. Pessoas que antes destilavam seu ódio de maneira mais ou menos velada e mais ou menos solitária, ou apenas nos seus círculos mais íntimos, passaram a perceber que não estavam sozinhas, e que seus preconceitos afetivos eram solidários com os de várias outras. Essa percepção levou a muitos desses internautas a proclamarem a plenos pulmões todo o ódio que medrava em seus corações e, mais grave, a receber aplauso e empatia de muitos outros. Tornou-se viral, para usar o termo corrente, certos lugares comuns e platitudes acerca de nossa sociedade que, mesmo não sendo tão disseminados como as postagens no facebook fazem parecer, ainda assim são preocupantes. Recentemente, em nosso país, certos grupos organizaram, por meio das redes sociais, uma reedição da infame “marcha da família com Deus pela liberdade”, que pedia o retorno da cruel ditadura militar que vigorou em nossa nação até os anos oitenta do século passado. Por mais pífia e pusilânime que tenha sido tal iniciativa – a tal marcha em recife contou com 7 participantes e 400 em São Paulo – ainda assim é um fenômeno que merece ser melhor compreendido.
Desses lugares comuns que são diariamente propagados no meio virtual, me interessa um em particular, o do “bandido”. Recentemente, circulou nas redes sociais um vídeo de um brutal espancamento de um suposto ladrão na Tailândia e que, rapidamente, foi compartilhado e, principalmente, comentado por muitas pessoas. Os comentários eram basicamente os mesmos: “bandido tem mais é que apanhar”, “se eu pegasse faria a mesma coisa”, “acho até que ele apanhou pouco” e o velho e sempre presente “bandido bom é bandido morto”. Me interessa a psicologia desse “bandido”, ou seja, como se dá essa percepção da realidade em que aparece de maneira tão forte e coletiva essa imagem do “bandido”. Como se pode perceber pela uniformidade dos comentários o “bandido” é uma figura extremamente caricata, ele não possui uma biografia, uma historicidade, um contexto social ou cultural, ele não possui qualquer tipo de nuance. Em certo sentido, o “bandido” lembra muito os personagens de contos de fadas, como descritos por M. L. von Franz, que são meramente esquemáticos e não representam pessoas reais, pois, nos contos de fadas, o tolo será tolo do começo ao fim, o esperto resolverá tudo sempre com a esperteza e por aí vai. Esse caráter esquemático e caricatural nos dá uma importante pista para entendermos do que tantas pessoas estão a falar quando dizem “bandido”, pois, resta evidente, que não se trata de nenhuma pessoal de carne e sangue, e, paradoxalmente, qualquer um pode se prestar a ser identificado com o “bandido”. Tanto faz um pobre coitado da Tailândia ou um menor negro espancado e amarrado a um poste no Rio de Janeiro. O aspecto individual pouco importa diante do apelo coletivo e universalizante dessa imagem.
Jung, certa feita, asseverou que se é aquilo que se combate. Perceba, estimado leitor, que aqueles que bradam indignados contra os “bandidos” agem, ou ao menos, discursam, como facínoras. Tudo o que desejam é que alguém seja: espancado, torturado e morto. Pior do que isso, ao louvarem essas condutas, mesmo que não as pratiquem, essas pessoas se tornam, elas mesmas, sem o perceberem, bandidos. Pelo código penal brasileiro isso se enquadra em incitação ao crime ou apologia de crime ou criminoso, ironicamente, ao adotarem essas posturas e esse discurso, tornam-se eles mesmos “banidos” e, pela sua própria lógica, deveriam ser espancados ou mortos.

TÍTULO IX DOS CRIMES CONTRA A PAZ PÚBLICA
Incitação ao crime
Art. 286 - Incitar, publicamente, a prática de crime:
Pena - detenção, de três a seis meses, ou multa.
Apologia de crime ou criminoso
Art. 287 - Fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime:
Pena - detenção, de três a seis meses, ou multa.
A ironia é, psicologicamente, muito reveladora. Em primeiro lugar, devemos nos lembrar do que disse certa feita o criador da clínica e da interpretação dos sonhos, Sigmund Freud, asseverou ele que quando Pedro fala de João, sei mais sobre Pedro do que sobre João. Ao fazerem afirmações de cunho tão genérico sobre todos e ninguém, falam de uma imagem coletiva de grande numinosidade que os fascina e que confere a sua psicologia esse tom tão desagradável. O caráter de preconceito afetivo e ressentimento fanático é evidente, salvo raras e honrosas exceções, nenhum desses que vociferam em nome da truculência conhecem a Declaração Universal dos Direitos do Homem, ou a lei brasileira do ECA. Seu modelo explicativo para a nossa sociedade, se é que se pode chamar assim, é tão simplista e maniqueísta que não resiste a menor prova da realidade. Parecem se basear nas caducas ideias de Lombroso da existência de um “criminoso nato” e ignoram completamente qualquer avanço na teoria forense ou nas ciências sociais, até mesmo desconfiam delas! Seu ódio encontra respaldo em ampla e atroz inconsciência. Desejam ardentemente contrapor violência a violência, combater fogo com fogo, até que restem apenas cinzas de nossa sociedade.
Gosto sempre de lembrar o que Jung afirmou em seu Tipos Psicológicos, na realidade uma variação do “se é aquilo que se combate”, mas um tanto mais precisa em termos psicológicos. Disse ele que sem o cisco em nosso olho não podemos perceber a trave no olho do outro, mas, sem autoconhecimento, corremos o risco de teorizar que todas as traves são ciscos. É exatamente isso que presenciamos nessa medonha psicologia do “bandido”, como o próprio fenômeno o demonstra de maneira cabal (seja pelo discurso violento e facinoroso, seja pelo efetivo crime de apologia de crime). O que essas pessoas são incapazes de perceber é que, isso Jung já dizia, qualquer um está sujeito a cometer um crime. O “bandido” no sentido de um criminoso nato, ou de alguém que em nada tem a ver conosco, não passa de uma quimera. O caráter de fascínio e autonomia dessa imagem me parece bastante evidente, e, tal autonomia reforça a hipótese de se tratar de um fenômeno inconsciente e, na medida em que for inconsciente será projetado, pois todo inconsciente é projetado. A projeção, de acordo com a Psicologia Complexa, é um fenômeno inconsciente e automático em que um conteúdo que é inconsciente para o sujeito é projetado em um objeto e, por meio da projeção, o conteúdo parece realmente pertencer ao objeto. Nesse ponto não é ocioso sublinhar que no entendimento de Jung o inconsciente – e isso parece ser extremamente difícil de digerir –não é algo que precise ser escavado para ser encontrado, mas que a toda hora perturba e se intromete na ação consciente.
Na realidade o termo projeção não é o mais adequado, pois para a pessoa envolvida não há projeção. Jung é claro nesse ponto, só se pode falar em projeção quando surge uma dúvida, enquanto isso não existir não é legítimo falar em projeção, se trata de identidade arcaica. A projeção implica que já não estou inteiramente convencido, já estou, ao menos um pouco, fora da identidade arcaica, até que isso ocorra não existe projeção. Como se trata de um fenômeno inconsciente, ele se apresenta como realidade, e mais, como a experiência total da realidade. Naturalmente, o espectador que não está envolvido duvida da veracidade da identidade arcaica e por isso, para ele se trata de projeção. O que torna o debate sobre o tema extremamente difícil e, quase sempre, fadado ao fracasso, pois só se pode mudar aquilo que é consciente. O desenvolvimento da personalidade exige a diferenciação da psique coletiva, essa confusão entre a psique individual é coletiva acarreta consequências nocivas, tanto para o próprio sujeito quanto para seus semelhantes no caso dele exercer qualquer influência sobre o meio em que vive.

Em sua identificação com a psique coletiva, ele tentará impor aos outros as exigências do seu inconsciente, uma vez que esse tipo de identificação provoca um sentimento de validez geral (“semelhança a Deus”). Em tal eventualidade, ignorará por completo as diferenças da psique pessoal dos demais. (o sentimento de validez geral provém, naturalmente, da universalidade da psique coletiva). Uma atitude coletiva pressupõe, obviamente, esta mesma psique coletiva nos outros. Isto significa, porém, um menosprezo implacável frente às diferenças individuais (...) Tal desprezo pela individualidade significa a asfixia do ser individual, em consequência da qual o elemento de diferenciação é suprimido na comunidade. (Jung, 1997, p.27).
Percebemos com clareza que o discurso do “bandido” é o cisco que enxergamos em toda a parte, menos onde seria mais útil enxergá-lo: em nós mesmos. Sem o autoconhecimento, nosso conhecimento da realidade torna-se muito limitado, como afirmou Jung, e isso se mostra com rara nitidez no fenômeno em questão. O autoconhecimento frequentemente esbarra no preconceito de que tal fato não acontece “conosco”, “com nossa família”, e se defronta com pretensões ilusórias sobre a presença de certas qualidades que apenas servem para encobrir os fatos. Ao bradar que os outros são “bandidos”, ou como se deve tratar os “bandidos” (normalmente com notável crueldade) se expressa claramente o preconceito de que somente os outros e nunca nós mesmos ou nosso meio mais ou menos imediato, podem praticar crimes. Quando, é um fato da realidade, que qualquer pessoa está sujeita a isso, e que, não passa de um desejo quimérico, a existência desse “bandido”, desse outro absoluto que nada tem a ver comigo e que não passa de uma imagem da fantasia inconsciente projetada. Mas quem ou o quê é esse “bandido”?
Primeiro analisemos o fenômeno do “bandido”. Em geral, para o preconceito corrente, o “bandido” é identificado com o negro e o pobre. Isso desde a época de Lombroso, que a partir do exame das prisões de sua época em que a maioria dos encarcerados eram negros ou mestiços, que esses seriam mais propensos ao crime, e passou a realizar até mesmo medições para uma anatomia do criminoso. Lombroso, assim como muitas pessoas de nossos dias, desconsiderou o contexto social em que os crimes ocorriam e simplificou de maneira grosseira a realidade com que se deparou. Em sua época ele estava respaldado por diversas teorias racistas que consideravam negros e mestiços naturalmente inferiores. Essa ideia, de uma superioridade de um povo em relação a outro não existiu apenas no contexto do contato entre o europeu e o negro africano. Os chineses, por séculos, se consideraram superiores a todos os demais povos; os japoneses desprezavam os coreanos a quem chamavam depreciativamente de “comedores de alho”, os judeus do início do império romano, como está registrado nas escrituras, desprezavam os samaritanos. Os gregos consideravam bárbaros todos aqueles que não falassem grego, assim como os romanos também alcunhavam de bárbaros todos os que não falavam latim. Mesmo entre os africanos, os ódios intertribais persistem mesmo em nossos dias, de uma maneira extremamente sangrenta, como a história recente dá eloquente testemunho. Em nosso contexto, em virtude de nossa história escravocrata, essa projeção recai sobre o negro e/ou pobre, assim como na Alemanha, no período nazista, recaiu sobre o povo judeu. Trata-se da reatualização diacrônica de um funcionamento da psique que é transhistórico.
Esse fenômeno depende em larga medida do preconceito de que tal fato não acontece “conosco”, e da pretensão ilusória da presença de certas qualidades, todavia, “cada um tem em si algo do criminoso, do gênio, e do santo”, e apenas pela repressão desse algo do criminoso é que o torna inconsciente e, consequentemente projetado – mesmo no mito bíblico a sociedade se inicia primeiro com uma desobediência e depois com um assassínio. É um fenômeno que pode ocorrer na análise, que ao trazer o inconsciente pessoal à consciência o indivíduo se torne consciente de coisas que já conhecia nos outros, mas não em si mesmo. Assim, quem brada contra os “bandidos” não percebe que eles são símbolos de sua própria alma e do criminoso que leva uma vida inconsciente em seu coração. O “bandido” encarna as qualidades negativas seja a violência, o desrespeito a lei (ambas presentes na reação dos “homens de bem” aos “bandidos”), assim como o medo e a insegurança. No fundo, o “bandido” é uma metáfora para o mal e o desejo de que ele seja morto, pode ser compreendido psicologicamente, como uma forma concreta de repressão. Não se deseja conhecê-lo, confrontar-se moralmente com ele, mas simplesmente destruí-lo, concretamente no outro. Mas, como afirmou Zimmer, o Dragão não pode jamais ser derrotado apenas pela força das armas, se assim for vencido ele sempre ressurge, apenas a autodissolução do herói o derrota, quando ele vence em si mesmo as qualidades negativas que existem na fera.
Todavia, em termos psicológicos, o que significa o “bandido”? Na mitologia grega – as figuras míticas correspondem a vivências interiores – temos alguns exemplos de bandidos, especialmente no mito de Teseu. Depois de descobrir a identidade de seu pai e reaver suas sandálias e espada, rumou para Atenas e, no caminho, se defrontou com seis perigosos bandidos: o primeiro foi Periphetes, que enterrava as pessoas no solo a golpes de tacape. Perseu o derrotou e tomou-lhe o tacape. O segundo foi o bandido Sinis que amarrava suas vítimas a pinheiros e os envergava até o solo e depois os soltava despedaçando suas vítimas. Teseu o matou usando o mesmo método empregado por este para assassinar suas vítimas. O quarto foi uma besta, um porco selvagem que, segundo algumas fontes, era filho de Typhon e Echidna. O quinto Cercyon, que desafiava os viajantes para uma competição de luta Greco-romana e depois de vencê-los os matava. Teseu o derrotou e depois matou, como Cercyon fazia a seus oponentes. O último e mais famoso era Procrustes, que possuía duas camas de ferro e as oferecia aos viajantes que nunca cabiam perfeitamente. Se alguém era maior ele lhes cortava as extremidades e, se era menor, os esticava até a morte. Teseu o derrotou e o matou usando o mesmo método de tortura.
Perceba que, na imaginação mítica, que é uma fantasia muito similar aquela que estamos analisando, Teseu puniu os bandidos aplicando neles os mesmos tipos de maldades que eles utilizavam em suas vítimas, e, ainda mais importante, cada um desses facínoras guardava uma entrada para o submundo, o mundo dos mortos. Cada um deles era uma figura esquemática, que sempre praticavam o mal e sempre da mesma maneira, um deles nem mesmo era humano, mas um porco. Teseu se confronta com eles e, para puni-los, age exatamente como eles, e por meio dessas peripécias consegue chegar ao seu destino, para ser reconhecido pelo seu pai, o rei. Como podem perceber, essa fantasia mítica nada tem de patológica, pelo contrário ela leva a realização da imagem do Si-mesmo.
O “bandido” que estamos analisando aqui é a contraparte do “homem de bem”, e funciona para este de maneira compensatória e complementar, ergo podemos afirmar que o “bandido” é uma forma de sombra coletiva. Creio que aqueles que acompanham os meus escritos já devem ter percebido que com frequência critico as interpretações “junguianas” mais comuns que simplesmente e de maneira apressada, abandonam o fenômeno e logo colocam sobre ele um conceito, na forma de uma colagem conceitual que pouco ou nada explica. Sempre retorno a esse ponto, de que o único critério de validez de uma hipótese em Psicologia Complexa é o seu valor heurístico, isto é, explicativo. Pois bem, abusus non tollit usum, entretanto o que significa falar em uma projeção de sombra nesse caso em particular? E qual o valor heurístico dessa hipótese?
Jung dava uma especial importância à sombra, pois juntamente com a anima e o animus, é empiricamente um dos arquétipos que mais frequentemente perturbam o eu. Um arquétipo, como a análise do “bandido” demonstra, é uma categoria da fantasia, bem como uma intensa experiência emocional (nosso objeto empírico de estudo dá prova eloquente disso). Dessas 3, a sombra é a mais facilmente acessível a experiência. A sombra representa um problema moral que desafia a personalidade como um todo, trata-se do trabalho árduo de reconhecer os traços obscuros da personalidade. A dificuldade reside no fato de que os traços obscuros do caráter possuem uma natureza emocional e autonomia e propensos a possessão. Quando se é vitimado pelas emoções se revela uma considerável incapacidade de julgamento moral. Esses traços obscuros, inconscientes e autônomos, como tudo o que é inconsciente, são projetados, sendo assim, ao invés de individualidade só encontraremos uma atitude coletiva, isto é identidade arcaica. Essa atitude coletiva impede o reconhecimento de uma psicologia diferente, pois estando o sujeito orientando coletivamente é completamente incapaz de pensar e sentir de outra forma que não seja a projeção. O efeito emocional e sugestivo desses traços obscuros de caráter parece provir, sem dúvida, de outra pessoa! Essa certeza se apresenta como experiência total da realidade, por isso a compreensão e vontade claudicam e esse reconhecimento implica um esforço moral que ultrapassa as forças do indivíduo.
Ao observador externo o caráter projetivo salta aos olhos, o “bandido”, paradoxalmente pode ser qualquer um e parece não ser ninguém em especial. A forte emoção associada a essa imagem de caráter arquetípico pode ser constatada na característica inflamável e incendiária que esse debate suscita. Rapidamente se eleva a temperatura dos afetos e toda possibilidade de discussão racional se perde. É fácil perceber como a lógica dos argumentos se deteriora, resvalando rapidamente me slogans e desejos quiméricos, deixando claro o caráter de possessão que essa imagem, a projeção desses traços obscuros do caráter de natureza emocional e autônoma possuem, mas sente-se isso como provindo de fora e não de dentro. Sugiro que discutam esse tema no facebook para uma oportunidade de observação empírica...
A consequência trágica da projeção é o isolamento em relação ao mundo exterior, que se torna uma concepção própria, porém desconhecida.  Sobre isso Jung nos ensina,

(...) as projeções levam a um estado de autoerotismo ou autismo, em que se sonha com um mundo cuja realidade é inatingível. O “sentiment d’incomplétude” que daí resulta, bem como, a sensação mais incômoda ainda de esterilidade são explicados de novo, como maldade do mundo ambiente e, com este círculo vicioso, se acentua ainda mais o isolamento. Quanto mais projeções se interpõem entre o sujeito e o mundo exterior, tanto mais difícil se torna para o eu perceber suas ilusões. (1988, pp. 7 e 8).
A fantasia, que é sentida como experiência total da realidade, pois é inconsciente, autônoma e se encontra projetada, logo sentida como algo externo, isola o sujeito e traz um sentimento de insatisfação intenso, sentido como maldade do mundo exterior, o que acentua o círculo vicioso. Acontece que essa fantasia, o “bandido”, em si mesma, nada tem de patológico, como o mito de Teseu nos mostra. Pelo contrário, ela possui todo o direito de existir. Como vemos em Teseu, o confronto com os bandidos fez parte de sua jornada de encontro com seu pai o rei e posteriormente, com a renovação da figura do rei, com o próprio Teseu subindo ao trono. O confronto com a sombra é indispensável para o autoconhecimento, mesmo que árduo, perigoso e inglório. Essa fantasia é uma ideia religiosa, e é inteiramente legítima, mas se projetada na vida exterior e aí desejada é impossível. O problema não é a fantasia, mas o modo como esses indivíduos querem realizar a fantasia é infantil, para utilizar a fecunda expressão de Campbell, ela perde seu valor de metáfora. Mas justamente nessa fantasia desvairada, que se deseja realizar na realidade externa e, com isso, leva a uma sensação de esterilidade explicada como maldade do mundo, é o caminho que leva ao grande segredo escondido no labirinto do inconsciente, guardado pelo monstro que se deve abater (em nós), e que traz em si a possibilidade de renovação de vida.
 O que se deve fazer em termos práticos? Já que isso suscita um debate político dos mais importantes e envolve o drama humano de inúmeras pessoas? Se sabemos que se trata de algo irracional, que todo argumento racional é debalde nessa situação? Eu sinceramente não sei, mas, em minha vida, me pauto por aquilo que Jung nos legou, esse texto que você tem em mãos é prova viva disso,

Por toda parte do mundo ocidental, já existem minorias subversivas e incendiárias prontas para entrar em ação, que gozam da proteção de nossa humanidade e de nossa consciência jurídica. Face à disseminação de suas ideias, nada podemos contrapor a não ser a razão crítica de uma certa camada da população, espiritualmente estável e consciente. (2011, p.11).