domingo, 13 de dezembro de 2015

Ciro Gomes, O golpe e a eleição




Ciro Ferreira Gomes é um velho conhecido de nós cearenses, já foi governador do nosso estado e prefeito de sua capital e, ultimamente, tem feito pronunciamentos sistemáticos contra a tentativa de golpe branco que vem sendo levado à cabo pelo congresso nacional. Seu discurso e os possíveis desdobramentos de sua movimentação midiática e política são o que me levam a deitar a pena ao papel e pensar sobre o que se passa.

Ciro é, indubitavelmente, um homem inteligente e de visão (especialmente fora do governo), mais de uma vez escrevi que, quando ele não está fazendo o triste papel de caricatura de si mesmo, é bom prestar atenção ao que ele fala. Ciro tem uma tendência a rompantes agressivos, a fazer cenas ao ser irritado ou questionado – mesmo diante das câmeras – e uma verve autoritária muito acentuada que o leva a desatinos que não condizem com sua inteligência e aguda percepção do cenário político. Parece que nos últimos tempos ele foi capaz de fazer uma autocrítica e tem agido de maneira mais ajuizada, transformando sua proverbial língua de trapo em um traço charmoso de sua personalidade, conferindo a ele um colorido de coragem e franqueza que parece faltar no mundo de meias palavras, conchavos e mentiras deslavadas da nossa política.

Ciro é um macaco velho, antes da nomeação do famigerado Eduardo Cunha para a presidência da câmara dos deputados, fez uma previsão quase profética do que estava por vir no programa Política com K, de circulação local, mas que ganhou capilaridade pelos compartilhamentos nas redes sociais. Nessa entrevista ele recitou de cor a vida pregressa de maracutaias de Cunha e o chamou, com propriedade, de “picareta mor da república”. Esse foi um passo importante no que parece ser sua estratégia. Pouco tempo depois, seu irmão Cid, então ministro, chamou o já todo poderoso Cunha de achacador em pleno congresso presidido por ele. Como consequência foi sumariamente demitido da pasta da educação. Gosto de lembrar de um ato falho de Cid, em sua primeira entrevista como ministro, em que se referiu a si mesmo não como ministro, mas como presidente. Freud teria muito a dizer sobre esse lapsus linguae.

Quando a possibilidade de golpe se desenhou com clareza, capitaneado por diversos setores da oposição que cortejavam o “picareta mor da república”, Ciro deu diversas entrevistas a programas locais, de menor audiência, mas com uma posição clara e inequívoca de defesa da democracia e dos ritos republicanos. Creio que nenhum político foi tão claro e contundente quanto ele, pois, quando não está fazendo o triste papel de caricatura de si mesmo, Ciro é um grande orador e político carismático, possuidor de uma retórica de rara agudeza e lógica, de uma velocidade de pensamento realmente invejáveis. Ele tem se posicionado com clareza e de maneira didática contra o golpe, mas também contra a política econômica de Dilma, e se tornou também o porta voz das queixas daqueles que apoiaram Dilma e viram serem empossadas as propostas de Aécio Neves.

Nessas primeiras entrevistas sua estratégia se mostrou com clareza. Não estava pessoalmente interessado na presidência, mas colocava seu nome a disposição como um dever republicano. Em caso de necessidade, ou não sendo possível evitar (veja que sutilmente ele se coloca como uma última saída possível) ele seria candidato. Além disso, Ciro se posicionava ao lado de todas as grandes reformas: fora ministro de Itamar quando da criação do real, estava ao lado de Lula quando da criação dos seus exitosos programas sociais etc. Em sua mais recente entrevista, a Marina Godoy, de maneira contundente ele chamou Michel Temer de “capitão do golpe”, dando nome aos bois. Lacan disse, certa feita, que quando há uma situação em que não se diz o que é preciso dizer se instaura a loucura, mas quando alguém finalmente diz ela é afastada e se instaura um problema, uma briga, mas essa se pode resolver, quando algo é finalmente nomeado. Ciro tem feito esse difícil papel, mas ele não é nada ingênuo.

Recentemente, já se declarou candidato pelo PDT. O que me parece simbólico, pois o grande nome do PDT, o finado Leonel Brizola, era um caudilho, personalista e autoritário que vivia as turras com os barões da mídia. Ciro, com sua sagacidade e audácia, usa sutilmente alguns dos piores aspectos do nosso presidencialismo para encantar seus possíveis eleitores. O presidencialismo possui um viés messiânico e autoritário muito acentuado, é personalista. Ciro não o diz abertamente, mas, utiliza de maneira insidiosa o mito da “vontade política” ao seu favor. Ele se mostra independente, corajoso e voluntarioso, justamente quando Aécio, Marina e Dilma titubeiam. Ele tem propostas claras e simples, e uma capacidade de expressá-las de maneira direta e didática que falta a Dilma. Diferente de Aécio, que precisa medir e pesar o tom de suas falas com cuidado, pois têm diversos conchavos numa teia tenebrosa de aliados que carregam toneladas de pó em aeronaves, Ciro se posiciona como franco atirador não poupando nem mesmo seus antigos aliados. Ataca sem dó os chavões vazios e a ambiguidade de Marina Silva e sua “nova política”. Quanto a Dilma, Ciro defende seu mandato, sua honra pessoal, mas é impiedoso quanto ao seu governo, que ele já qualificou de ruinoso.

Além de tudo isso, para utilizar a expressão de Deleuze, Ciro é um representante da “maioria”, ou seja, não a maior quantidade de algo, mas a existência de um padrão. No ocidente o padrão de qualquer maioria é: homem, adulto, macho, cidadão. Ciro se enquadra perfeitamente nesse padrão majoritário. Pela lógica de Deleuze, irá obter a maioria aquele que, em determinado momento, realizar esse padrão. A imagem sensata do homem adulto, macho e cidadão. É exatamente essa a imagem que Ciro personifica a perfeição. A maioria nunca é ninguém, é um padrão vazio, enquanto a minoria somos todos nós, mas muitas pessoas se reconhecem nesse padrão vazio. Ciro fomenta com maestria essa identificação, tem feito um uso inteligente de seu lugar de fala, da contundência de seu discurso e das redes sociais. Se há algo que seu clã sabe fazer muito bem, isso é ganhar eleições! Nossa política passa por um momento de autismo, em que seus principais atores estão tão ocupados com seus próprios problemas que não se comunicam mais de maneira eficiente com a sociedade e, nesse vácuo surge Ciro. Como gostava de dizer Jung, citando os medievais, “a natureza possui um horror vacui”, a política também não tolera o vácuo. Ciro é um perigo, em meio a uma cena política tão volátil, um “incendiário” como ele está muito a vontade, mas somos nós que sairemos queimados...

sábado, 14 de novembro de 2015

A bandeira da França e o Facebook

Depois do atentado que ocorreu na França, o Facebook nos dá a oportunidade de nos solidarizarmos com as pessoas, vitimadas pela intolerância e o terrorismo, colocando a bandeira tricolor na nossa foto de perfil. Nenhuma novidade, fizemos isso com a bandeira do arco-íris e outros símbolos de movimentos sociais e políticos em tempos de vitórias ou de catástrofe como essa.

Dessa vez, há uma sutil diferença que me põe a matutar. Nos permitem colocar a bandeira de um estado nacional em nosso perfil. Por certo, o atentado aconteceu na França, mas essa demonstração de “nacionalismo” global em favor da terra dos gauleses não nos passa uma mensagem insidiosa? Somos nós contra eles, numa guerra em que a nossa nação, o nosso lado está ameaçado? Não estamos em guerra contra o Islã, nem a França está. O islã é algo heterogêneo e imenso, variado e em construção, reagindo sempre às guerras causadas pelo óleo e a destruição que vem do ocidente. E a França? Com o que estou me solidarizando?

Só conheço esse país pelo seu idioma e por livros, jamais estive lá. É a terra que produziu, ao mesmo tempo, Rousseau e Napoleão, a mesma que gerou o grande historiador judeu Marc Bloch e Robespierre, líder revolucionário no período do terror da revolução francesa. A mesma França que foi derrotada pelos Nazistas e que, simultaneamente, resistiu bravamente e capitulou de maneira vergonhosa com o governo de Vichy, fantoche dos nazistas. Qual França? A mesma de Foucault e Sartre, e que, por essa mesma época estava dividida e tensionada por diversas convulsões sociais? Ou o país do conservador e nacionalista De Gaulle? Quem estou apoiando? O governo francês? A população? Essa mesma constituída também de inúmeros islâmicos, e de descendentes de suas ex-colônias? É preciso decidir, ao menos para mim, o que essa bandeira representa.

A França, ao menos a minha França, é povoada por grandes psiquiatras como Pinel, Esquirol, Janet, Charcot, o famoso Hospital de Salpêtriére onde tanto Freud quanto Jung estudaram. O nascedouro de grandes filosofias como as de Descartes, Montaigne e tantas outras. O lugar onde a grande revolução da historiografia surgiu com os Annales, onde despontaram nomes de vulto para a Historia, como Jacques Le Goff e Braudel. Ao mesmo tempo é o lar dos três mosqueteiros, de poetas tal qual Baudelaire e pintores, Gustave Moreau, por exemplo, cujas obras me encantam. Essa França é à prova de balas, não precisa da minha solidariedade. Temo, entretanto, que se queira crer que é essa a nação que está ameaçada, que um vasto território da minha pátria espiritual está em perigo. Se assim for, colocar essa bandeira no meu rosto significa a admissão de uma guerra entre culturas, uma defesa dos ideais iluministas e humanistas contra a barbárie. Esse não é o caso, os bárbaros não estão batendo à porta da Europa, basta lembrar-se de Auschwitz para saber que a barbárie já dilacera, de dentro, esse continente desde há muito tempo.

Tenho profunda solidariedade para com todas as vítimas desse ato inominável. Admiro as muitas Franças que existem hoje, com seu glorioso (e, ao mesmo tempo, não tão glorioso) passado, incluindo a nação que habita apenas o meu espírito (pois ajudou a formá-lo), mas eu passo a oportunidade de expressar isso com a bandeira tricolor, que carrega tanto da simbologia da revolução. Detesto impor regras ou normas, e não acho errado exprimir essa indignação por meio da bandeira. Só penso que uma boa parte da França hoje, que também é representada por essa bandeira, que carrega tanta história, também é islâmica, e pode ser que essa atitude os exclua. Pode ser que meu ato signifique defender uma França “verdadeira”, ou “pura” que nunca existiu, pois da mistura de gauleses, celtas, romanos e tantos outros povos e culturas surgiu essa que agora abraça tantas outras.

Perdoe-me esse mau hábito de refletir sobre detalhes tão bobos, pode ser que eu esteja simplesmente exagerando, mas, ao menos, essa é a justificativa para o meu ato de não aderir a esse gesto. Acredito que muitos estejam imbuídos dos mais nobres sentimentos ao fazê-lo, mas meus mais nobres sentimentos estão em minhas reflexões. Creio que esses detalhes nos ajudam a ver melhor a nossa cultura. Nenhum gesto é inocente, ou desprovido de significado, seja ele consciente ou inconsciente.

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Feliciano e Beauvoir: a Mediocridade nossa de Cada Dia

Marcos Feliciano, o famigerado deputado e pastor, escreveu uma justificativa para sua indignação diante do texto de Simone Beauvoir, baseada em uma visão bastante reducionista de sua biografia e a acusando de ter problemas emocionais por ser, em resumo, pobre e rejeitada pelo pai. Então, uma vez mais, escrevo um texto reativo, no intuito de rebater uma mera estupidez, todavia, como ele se coloca no papel de intelectual à moda de Tom Wolfe (um idiota indignado que opina sobre o que desconhece), volto a fazer meu papel de intelectual público, talvez por falta de alguém melhor do que eu para fazê-lo.

Sem maiores delongas, em termos lógicos o que Feliciano faz é uma falácia conhecida pelo termo latino de Ad Hominem. Isso significa um recurso meramente retórico, que na falta de possibilidades de refutar o argumento, refuta-se a credibilidade da pessoa que produziu o argumento. No nosso caso, o argumento da filósofa existencialista que precisa ser refutado pelo pastor é a de que “mulher” é uma construção social e não uma realidade biológica trans-histórica e irredutível ao tempo, espaço ou cultura. Para isso, ao invés de atacar o argumento ou apresentar provas de que esse aspecto de construção não existe, ou, ao menos mostrar evidências de que seu ponto de vista (essa unilateralidade biológica) possui consistência, faz-se uso da estratégia canalha de atacar o interlocutor minando a sua credibilidade. Esse é um recurso extremamente eficaz e seduz muitas pessoas, por isso, além de simplesmente apontar o aspecto falacioso do discurso do nosso farisaico e homofóbico pastor, vou explorar a psicologia dessa falácia e refutá-la justamente em termos psicológicos.


Jung, ao pensar na interpretação psicológica da literatura, apontava para um limite metodológico dos mais importantes, que o colocava em uma posição diametralmente oposta a de Freud. Esse limite é o de que ao se interpelar psicologicamente uma obra literária, e tentar desvelar seus aspectos simbólicos, não é possível fazer, como queria Freud, por meio da obra uma psicobiografia ou diagnóstico de seu autor. Essa é uma impossibilidade, além disso, tal expediente não ajuda em nada a interpretar a obra. É preciso termos em conta que Jung possuía uma veia pragmática muito forte, e, como gosto de recordar, para ele, o único critério de validez de uma hipótese é o seu valor heurístico, isto é explicativo.

Uma obra de valor estético, intelectual ou emocional, por certo, tem em seu autor o solo nutritivo de onde se originou, mas ela é um objeto, no sentido de existir objetivamente para além da personalidade do autor. Pensar na personalidade do autor, ou seja, encarar a obra pelo viés do método redutivo causal (pois o autor é causa eficiente da obra) não deixa de ser importante, mas é cientificamente insuficiente. Além disso, como já afirmava William James, os aspectos redutivos ou causais, que ele denominava de “juízos existenciais” não podem me elucidar o valor da obra. No que diz respeito ao valor de uma obra, não posso me fiar, baseado tanto em James quanto em Jung, em Juízos existenciais como os utilizados por Feliciano (a obra se origina de uma mulher emocionalmente instável e com problemas de aceitação), é preciso que me pergunte sobre o que James chamava de “juízo de valor”, ou seja, bem agora que a obra está aqui, qual seu sentido? E qual seu valor? Para isso eu já preciso ter um juízo de valor ou espiritual pré-existente (no caso do pastor esse juízo espiritual são seus preconceitos ou sua leitura literal e farisaica da bíblia), em outros casos esse juízo espiritual será uma filosofia, uma teoria da história, ou uma teoria psicológica.

No caso de Jung, seu método sintético, ou o critério heurístico da finalidade, faz com que o valor de uma obra não possa ser haurido exclusivamente de suas causas ou origens. Até mesmo pelo motivo de que, todos nós, e isso Jung já apontava, somos frutos de nosso tempo, ele afirmava em seu Psicologia e Alquimia, que cada uma de nossas opiniões e sentimentos é, em seus mínimos detalhes, condicionada historicamente. Ele apontava como o paradoxo inescapável da Psicologia a antinomia entre o geral (genérico) e o particular (individual), dizia ela “individual não importa perante o genérico e o genérico não importa perante o individual”. Não bastasse isso, ao pensarmos na existência de um fator irracional existencial inalienável, um inconsciente, percebemos que uma produção literária depende da consciência (que é condicionada cultural e historicamente) apenas em certa medida, seu aspecto simbólico provém do diálogo dessa consciência com o que denominava de complexo criativo, ou seja, da participação do inconsciente e de sua influência nesse processo, o que garante o status objetivo da obra.

Afirmar que Simone tinha problemas emocionais é simplesmente afirmar a sua humanidade, não passa de uma platitude, todos nós possuímos problemas emocionais, ou ódio e inveja, esse é o humano demasiado humano. Nietzsche terminou sua vida louco, Heidegger foi um membro ativo do partido nazista, Jung teve diversas amantes, Foucault era sadomasoquista e nada disso diminui o valor objetivo de suas obras. Veja, eu poderia (como o fiz ironicamente) simplesmente refutar a estupidez de Feliciano afirmando que ele é um vendilhão da fé, um político venal, e um reacionário com ideias medievais, mas não o fiz. Eu ataquei o seu argumento e mais, é preciso notar que o homem comum tem um enorme prazer em ver os grandes caírem, pois o homem médio parece não perceber que tudo o que é real, tudo o que é tridimensional projeta uma sombra, isso é inevitável. Para o homem médio, com seu entendimento bidimensional, se você apontar uma falha em um grande homem isso basta para destituí-lo de sua aura de grandeza. Esquecem-se de que o alto só pode se apoiar no baixo, que para que os galhos de uma árvore toquem os céus suas raízes devem descer até as profundezas do inferno. O homem médio precisa destronar os grandes ao simplesmente lhes conferir humanidade, pois ele não pode imaginar que eles não sejam titãs infalíveis, se eles forem meramente humanos como ele o é, o homem médio perde a desculpa para a sua mediocridade.

Todos os grandes homens, além de grandes foram homens. Tinham suas mesquinharias, ódios, egoísmos, invejas, instabilidades, e é provável que sem isso, sem essas peculiaridades que lhes garantiam os mesmos problemas e vicissitudes que o resto da humanidade, suas obras não pudessem calar tão fundo em todos nós. Apontar a humanidade de Beauvoir para diminuir sua obra é tolo, e somente ressalta a mediocridade de seus agressores, realça seus preconceitos afetivos. Todos nós somos homens e mulheres de carne e osso, nascidos em uma cultura, com uma história, recebidos em uma linguagem, com um ponto de partida biológico, todos, mesmo aqueles de nós que são grandes, talvez, esses especialmente. Talvez, por terem feito o que o homem médio não faz, encarar suas sombras, essas pessoas puderam ver o mundo por uma ótica inovadora, pois para aqueles que não são capazes disso o mundo é uma construção subjetiva porém desconhecida, o mundo  é visto pelas lentes turvas de uma fantasia mórbida e de validade geral que impede o reconhecimento da própria individualidade e, por conseguinte, a individualidade dos seus semelhantes. Não sejamos medíocres, como dizia o fundador do protestantismo, imbuído de profunda sabedoria “sê pecador e peca fortemente, mas crê ainda mais fortemente”.

domingo, 25 de outubro de 2015

Não nascemos preconceituosos, nos tornamos preconceituosos

A frase de Simone de Beauvoir que caiu no ENEM tem causado espécie e celeuma, e, uma vez mais, vemos a terrível polarização que impede o diálogo em nossa sociedade. As respostas indignadas à frase “não se nasce mulher, tornar-se mulher”, são imensamente reveladoras. Para além do velho macartismo, e da “doutrinação marxista” (nesse pensamento simplificador todo pensamento de esquerda é marxista), surgiram ataques reveladores, pautados por um determinismo biológico que está na moda no espírito do ocidente, o velho materialismo médico que William James já atacava no início do século passado. 

Gostaria de oferecer uma reflexão histórico psicológica dessa reação tão exacerbada. Temos uma longa história de determinismos, desde Gustave Le Bon, Galton, Lombroso, em que o peso recai sobre a matéria, o físico e o biológico. Psiquiatras como Jeanne Pierre Falret, Xavier Bichat e Augustin Morel, que defendia a tese da “degeneração mental” que imprimia um caráter hereditário as condições psicológicas, passando por Wilhelm Griesinger, A. Zeller, e o professor de neuropsiquiatria de Freud Theodor Meynert que acreditavam piamente que a psiquiatria deveria ser reduzida a anatomia patológica. Toda a explicação para a loucura e, por tabela, para diversos outros comportamentos estava no cérebro e em suas localizações, numa determinação biológica, anatômica. Lombroso falava de um criminoso nato, o comportamento criminoso era definido ao nascer, novamente o biológico, Le Bon, que é citado no Mein Kampf de Hittler, também desdenhava da vontade individual. Desde o último quartel do século XIX que tentam fazer a biologia nos definir. Mas existiram homens como James, Freud, Jung, Janet, Charcot que se levantaram contra isso, se colocaram contra o fisicalismo, o materialismo médico, e, é claro, temos os filósofos como Simone.

Aqueles que parecem tomar o partido de Lombroso nos ataques a filósofa, esquecem que “mulher” é igualmente uma construção histórica e social. Ser mulher hoje não é, culturalmente falando, o mesmo que ser mulher no tempo de nossos avós. Noções que parecem naturais como: homem, mulher, família, criança, não o são. Todas elas são, por certo, influenciadas pela biologia, mas são históricas, culturais. Entre os povos tribais, o jovem precisava passar por um cruento ritual para se tornar cultural e psicologicamente homem, ele não nascia homem, mas se tornava homem. Há um segundo nascimento, simbolizado nas metáforas dos diversos rituais, como os monges que raspam as cabeças e se tornam “quase modo genitus”, como recém-nascidos. Nossa sociedade parece ter perdido seus ritos, parece que estamos aprisionados, mesmerizados pelo saber médico, pelo tacanho materialismo médico de um Meynert, ou pior, de um Lombroso. 

Cada um de nós é um ser inacabado, nosso biologia é um ponto de partida e não de chegada. Temos sempre uma criança em nossa alma, para sempre passível de crescimento, desenvolvimento, mudança, o puer aeterno dos mitos gregos e latinos. O pedaço de nossa alma que transcende a história e mesmo o aparente determinismo biológico, somos seres em construção, cultural e psicologicamente. Se alguma mulher já nascesse mulher ela teria que se conformar com a sua sina biológica, seu papel social estaria pré-estabelecido, determinado pelos seu duplo gene X. Todos nós nascemos mudos e somos recebidos na cultura, na linguagem que nos cria e nos recria e nos transforma e, pasmem, nós a transformamos também! Nós nos tornamos homens e mulheres de nosso tempo, de nossa cultura, de nossa sociedade e podemos transcender isso até certo ponto e mudar e nos transformarmos. Antes da grande guerra as mulheres não votavam, há 30 anos uma mulher “desquitada” era uma puta, há 50 anos garotas de 13 anos já se casavam grávidas, os exemplos podem se multiplicar ad infinitum. 

Eu fico feliz que Simone cause incômodo, a filosofia deve incomodar! Mas para além do mero xingamento, da mera polarização, a filosofia nos convida a pensar. Mesmo para discordar precisamos pensar. Aqueles que revivem em seus preconceitos afetivos e desejos quiméricos o que de pior o materialismo médico produziu, perdem a oportunidade de pensar, de refletir sobre a frase de Simone, a discordância, meus amigos, é fundamental a filosofia, discordem, mas antes aceitem o outro e a diferença e pensem ao invés de serem meros marionetes de preconceitos de toda espécie. Esse tipo de discurso que tenho visto é estéril, pois é taxativo e faz parar de pensar. Abram mão, nem que seja por um mero instante de suas certezas e, talvez, vocês escapem do determinismo do preconceito, esse mais poderoso do que o determinismo biológico.

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Reflexão sobre a Crise Brasileira

Estamos em meio a uma crise institucional, política e econômica, mas me ocorre pensar não a crise, mas numa análise simultaneamente histórica e psicológica, para refletir sobre como a crise é imaginada. O material de que se faz a história é a memória, a nossa argamassa, ao mesmo tempo tão sólida e tão diáfana, evanescente. Nossa memória é influenciada pelos monumentos que erigimos, sejam eles feitos de pedras ou de palavras. A memória coletiva atual é a negação da histeria como proposta por Freud em seus primeiros anos, dizia ele que as histéricas sofriam de reminiscências, nós padecemos pela ausência delas, somos histéricos ao avesso. Ao debatermos essa crise, implicitamente e de maneira insidiosa a debatemos como se fosse a primeira e a última das crises. Quando evocamos a história, o fazemos apenas para ratificar como um efeito retórico a nossa falta de historia em frases grandiloquentes e vazias como “o maior escândalo da história”. Frases como esta são reveladoras mais de uma tentativa de erigir um monumento fúnebre a história do que a de realmente qualificar o que se passa em nosso tempo, são um monumento à estupidez e que se coloca ativamente numa posição impossível de costas para aquilo mesmo que parece evocar para justificar nossa amnésia.

Historiadores não são, como dizia Marc Bloch, Juízes dos mortos, não somos Osíris. Tampouco somos juízes dos vivos, pois ao julgar perdemos a oportunidade de compreender, e devemos ao menos perceber que nossa capacidade hermenêutica, como sociedade, é baixa, quase nula. A frase a que aludi antes, que representa um gesto de má fé de quem a produz e de estultice de quem nela crê, é uma negação fundamental da história, lembremos-nos do que disse Le Goff ao tratar daquilo que reivindicam os historiadores, eles pretendem que todo fenômeno da atividade humana seja estudado tendo em conta as condições históricas em que existiram, não é o caso de explicar o fenômeno por meio dessas condições históricas, estabelecendo uma relação de causalidade pura, mas recusar a validade de toda explicação que negligencie as condições históricas. As narrativas sobre a crise fazem justamente isso de maneira acintosa, evocando a história apenas para melhor negá-la, numa atitude que, na melhor das hipóteses é perversa. O perverso na psicanálise é aquele que recusa (Verneinung), ele conhece a lei, mas a nega. Se formos parcimoniosos com os que criam essas narrativas, ou seja, considerarmos que compreendem minimamente sobre história, sua atitude é marcada por esse traço perverso. Tal narrativa, ou a maneira como a crise é imaginada, é uma narrativa perversa, ou marcada por uma perversidade que é o avesso do anacronismo, ao invés de ver o passado sempre com as lentes do presente, enxerga o presente abandonando propositalmente o passado.

A nossa mídia, aludindo uma vez mais a Le Goff, criam um novo acontecimento e um novo estatuto do acontecimento histórico, impingindo a história um regresso do acontecimento. Ainda mais perigoso, a mídia homogeneíza o imaginário social, tal pasteurização compromete o sentido histórico de nossa sociedade e a validade de uma verdade histórica. A verdade nos é informada todos os dias pela televisão e nos cremos, tolamente, testemunhas oculares desses fatos como acontecem e assim que acontecem, voltamos ao ideal impossível de Rank de uma história “was eigletlich gewesen”. As escolhas que são feitas nessas narrativas, para se privilegiar alguns pontos e sonegar outros, mesmo o cuidado com as palavras usadas, as ênfases e eloquentes silêncios são sutilezas que a ilusão de testemunha encobrem, pois está tudo ali e eu estou vendo, presenciando. Esse é um tipo curioso de cegueira, em que é justamente a possibilidade de ver e a imagem que cegam, ou talvez fosse melhor dizer, a ilusão de naturalidade dessas imagens. Essa ilusão de naturalidade desfaz em nosso espírito o desejo de interpretar, pois não há nada a ser interpretado, está tudo simplesmente lá, tudo às claras. Justamente essa falsidade luminosa é o que nos cega e compromete o nosso julgamento, nossa capacidade de compreender. Num deserto espiritual caminhamos em direção a uma miragem, sem nos percebermos que deserto e miragem se retroalimentam, que o deserto é fruto da miragem e vice versa. A metáfora da terra devastada (Waste Land) de Eliot nos mostra seu poder fecundo ao descrever com perfeição o que significa a maneira como essa crise é imaginada, pois a terra devastada é aquela onde as pessoas vivem vidas inautênticas. Ao perseguirmos coletivamente essa miragem que é posta diante dos nossos olhos, sem questionar, sem interpretar, apenas repetindo, dizendo e fazendo o que outros determinaram para nós, nossa nação se converte nessa terra inóspita, devastada onde nada cresce.