segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Minha Despedida das Salas de Aula


Quando Norberto Bobbio se despediu de sua longa e prolífica carreira acadêmica, ele citou Max Webar, “A cátedra universitária não é nem para os demagogos, nem para os profetas.”. Webar estava correto, um demagogo não é capaz de ensinar, mas simplesmente de convencer, não tem compromisso com a verdade, mas apenas com seus interesses ou sua vaidade. O profeta, por seu lado, deseja seguidores que creiam em suas visões e se acomodem a sua sombra, no otium indignitatis daqueles que subsistem na proximidade de um mestre que lhes mantém numa cômoda infância espiritual, sem responsabilidades e nem preocupações.

Esses pensamentos me ocorrem justamente por estar a me despedir do meu papel de professor universitário, que venho desempenhando desde que me graduei em história em 2004. Não se trata necessariamente de uma aposentadoria, mas de seguir novos rumos, que me levam ao meu velho objetivo. Nesse momento de despedida, poderia certamente me deixar levar por certo saudosismo carregado de sentimentalidade, mas prefiro me despedir como professor e deixar registrado o que meus alunos me ensinaram nesses anos de docência. Os romanos já sabiam que “dicendo dices”, e eu aprendi muito com esse ofício tão peculiar e, como bem o sabia o velho Freud, impossível.

Há muitas similaridades entre o papel do analista e o do professor, e alguns dos conselhos que valem para um analista podem igualmente ser dirigidos aos mestres. Parafraseando Jung, tudo o que você pensa saber sobre os seus alunos é um preconceito ou uma projeção. Ao atravessar os umbrais de uma sala de aula, estamos numa miniatura curiosa de nossa sociedade, com suas mazelas e preconceitos, mas igualmente com tudo aquilo que nela viceja e vive, com a sutil diferença que ali se espera que as pessoas coloquem em questão as suas certezas e aprendam coisas novas. Por mais que ali possamos achar tudo aquilo a que estamos acostumados, a sala de aula é um lugar de transformação, que só vem depois da cuidadosa análise, da dissolução. Supor algo acerca dos seus alunos e agir a partir desses preconceitos pode ter o resultado de tornar os dois lados cristalizados, se o professor os trata como alunos eles o tratarão como professor, e isso só leva a estagnação. Assim como o analista, o professor precisa renunciar ao manto do saber, o que precisa ser cultivado em uma sala de aula é a dúvida, mas não qualquer dúvida, mas sim a dúvida metódica. Já existem certezas demais, e elas apenas nos paralisam. Gosto sempre de lembrar do mote formidável do racionalismo crítico de Popper “pode ser que eu esteja errado e pode ser que você esteja certo”, o primeiro a assumir essa postura racional deve ser o professor, e para ensiná-la ele deve primeiro vivê-la.

Assim como o analista, ao professor é direcionada toda sorte de projeções, e seus alunos irão lhe emprestar uma parte de suas almas. Isso lhe confere um poder sobre eles, mas lhe coloca aos ombros um fardo, pois agora pode influenciar, mas deve renunciar a toda pretensão consciente a isso. Influenciar e ensinar são coisas diversas, ensinar não é o mesmo que convencer. Heimrich Zimmer nos legou uma máxima fundamental dos upanishades, “há coisas dignas de serem aprendidas, mas que não são dignas de serem ensinadas”. As coisas mais importantes não são dignas de serem ensinadas, e assim como no caso do analista, a vontade de influenciar só priva o estudante de suas capacidades vitais, de suas potencialidades e do prazer da descoberta. Há verdades fundamentais as quais seus pupilos devem chegar sozinhos, outras podem ser transmitidas, e um bom professor deve ter a sabedoria de saber diferenciá-las. Jung disse, certa feita, ao homenagear seu grande amigo Richard Wilhelm, que “O homem reconhece instintivamente que toda grande verdade é simples. Aquele cujo instinto está atrofiado, imagina, por isso, que ela se encontra em simplificações baratas e trivialidades, ou, por outro lado, em razão de seu desapontamento, incorre no erro oposto de imaginar a verdade como algo infinitamente complicado e obscuro.” . Um professor cioso de seu ofício, jamais deve cair em simplificações baratas, ou mostrar-se obscuro para esconder sua falta de profundidade ou impressionar seus estudantes.

Uma das coisas mais importantes que um professor precisa estar ciente é justamente daquilo que ele não sabe. Por insegurança, puerilidade ou mesquinhez, alguns professores gostam de afetar um saber absoluto, sem dúvida e repleto de certezas. Toda e qualquer contrafação em sala de aula é um erro, mas esse é um dos piores. Fazer ciência é a arte de perguntar, e, como nos ensina Popper, toda ciência, para ser ciência precisa ser uma conjectura. Uma das mais valiosas lições que aprendi com Bachelard é a de que o cientista não tem direito a opinião, logo, caso eu nunca tenha estudado, ou pesquisado sobre algo, nunca me furtei de dizer “não sei”. Essa é uma frase libertadora, e que remove dos alunos os grilhões da certeza. Um professor precisa desconhecer muito mais do que aquilo que ele conhece, seu bem mais preciso é a sua ignorância, e deve se orgulhar dela e jamais tentar ocultá-la sob um véu pedante de autoridade. Um professor é antes de tudo um aluno, um estudante que jamais cessou de aprender, quando o aluno morre no peito do professor, este também fenece.

Um dos maiores historiadores do século XX, em sua derradeira obra, afirmou “[..] Não imagino, para um escritor, elogio mais belo do que saber falar, no mesmo tom, aos doutos e aos escolares. Mas simplicidade tão apurada é o privilégio de raros eleitos”. O mesmo Marc Bloch, afirma ainda nessa obra, que se a história falhar em divertir, certamente falhará em ensinar. Tal simplicidade deve ser almejada com afinco, pois diferente da simplificação barata de que falava Jung, ela consegue traduzir a verdade em sua simplicidade, com esforço podemos ser um desses eleitos, especialmente se compreendermos que esse esforço não serve a mim ou a necessidade de prestígio do eu, mas sim a meus alunos. Uma sala de aula precisa ser um lugar agradável, nossa sociedade nos obriga a passar anos a fio dentro delas e por muitas horas seguidas, tornar todo esse tempo algo fastidioso e chato é algo tolo de se fazer. Mas existem muitos obstáculo que impedem um professor de ser divertido, ou, ao menos agradável.

Alguns professores partem da premissa equivocada de que eles e seus alunos estão em lados opostos, são rivais. Professores e alunos estão do mesmo lado, seu objetivo é o mesmo, mas quando essa crença se instala, tudo o que se consegue é criar um clima insuportável de animosidade. Outros professores, em virtude de sua mediocridade, projetam em seus alunos a sua própria pequenez, e a usam para justificar seu fracasso em ensinar, ou seu descaso. Já escrevi certa feita, sobre um dos poucos ensinamentos que tive de meu pai, pois um de seus colegas chamava suas alunas de burras ao que ele retrucou “camarada, chamar as alunas de burras é fácil, o difícil é elevá-las ao seu nível”. O mínimo que se pode fazer por um aluno é tratá-lo com dignidade e respeito, e nunca deixar de ter esperança de que ele possa aprender, pois no fundo não sabemos realmente se ele pode ou não, sem esperança é impossível ensinar.

Fundamentalmente, como asseverou Jung, o que nós ensinamos é aquilo que somos. Assim como o analista, a principal ferramenta do professor é a sua personalidade, e ele deve velar por ela. Muito além do que se diz, o que mais impacta os alunos é quem nós somos. Somente alguém que é um indivíduo, que não está identificado com o próprio saber, o pensamento, a instituição, ou o papel de professor, é capaz de suportar a individualidade de seus alunos e ajudá-la a florescer. O papel de professor deve ser abandonado rapidamente, os generais vitoriosos de Roma tinham um escravo que lhes segurava acima da cabeça durante a parada da vitória uma coroa de louro e repetia incessantemente “tu és mortal”, e mesmo a modesta profissão de professor, pode levar a uma tal inflação. Fora da sala de aula, por mais que seus alunos o chamem de professor, você é apenas um sujeito que passeia com o cachorro e leva o lixo pra fora.

No mais, em todos esses anos, eu me diverti imensamente, tive alguns dissabores, aprendi muito mais do que ensinei e não tenho arrependimentos. Não deixarei de ser professor, tenho um compromisso moral com a Psicologia de Jung que me impele a ensiná-la, e certamente todo esse tempo como professor deixa marcas profundas. Certa feita, fui a um restaurante onde jamais estivera e, quando terminei de fazer o pedido, o garçom me perguntou “você é professor, não é?”, encabulado eu respondi afirmativamente. Tenho muito que agradecer a todos os meus alunos, especialmente aos que me causaram dissabores, pois eles foram meus maiores mestres e diante deles tive que desenvolver minha paciência e compaixão mais do que com os outros. Por sorte ou azar, os que me ensinaram compaixão e paciência foram poucos. Em sua maioria, eles me deram alegrias e bons momentos. Em geral não sou alguém que sente saudades ou se mantém preso ao passado, mas sentirei falta de todos vocês.

domingo, 4 de agosto de 2019

Encruzilhada


Como pensador eu habito uma encruzilhada, perpetuamente encarando dois caminhos, duas vias. De um lado a História e a Filosofia, empreendimentos pautados pela racionalidade ocidental, de outro a obra de Jung que convida sempre a ouvir a voz romântica do irracional com seus abismos e florestas selvagens. Jung sempre nos convidou uma tarefa racionalmente impossível, a de sustentar em nosso peito os opostos sem contradição, a dar igual espaço a racionalidade consciente e ao caos do inconsciente, porque ambos têm o direito a existir e da junção de ambas as fontes, das águas claras e das águas turvas é que brota a vida. Assim como todos ou, ao menos, uma grande quantidade de pessoas sensíveis, me sinto profundamente afetado pela onda de barbárie e irracionalidade demoníaca, associada a uma racionalidade perversa e mecânica que procura a tudo e a todos arrasar e destruir, converter nossos corações em algo feito de engrenagens de metal. Não é possível passar incólume por esse tempo de profunda escuridão, tampouco é possível compreendê-lo apenas pelo viés da consciência, muito menos tratá-lo como uma pura aparição do caos inconsciente a luz do dia, como se os monstros de nossos pesadelos subitamente deixassem as sombras e passassem a se mostrar em plena luz com todo o seu horror. É preciso entender o que se passa por um olhar de quem se encontra em uma encruzilhada.

Jung, certa feita afirmou que nenhum de nós pode enunciar a Verdade, com letra maiúscula, mas ao ser travessado por um problema contemporâneo, se pudermos identificar como ele nos afeta, podemos enunciar uma verdade, mas uma que reverbera. Estamos numa encruzilhada, e é preciso reconhecer essa posição, pois estamos navegando entre Sila e Caribidis, em meio as Simplégades, estamos coletivamente em nosso estreito de Bósforo, ou, para usar uma metáfora ainda mais antiga, mas que muito me apetece, caminhamos ao lado de Gilgamesh em nossas 12 léguas de escuridão. Falei a princípio em pessoas sensíveis, pois é preciso reconhecer que muitos de nós não percebem a escuridão a nossa volta e, diferente de nós, dão boas vindas e se regozijam nas trevas. Seja por sempre terem vivido na escuridão, na noite primordial do inconsciente, por viverem sob a influência de conteúdos nefastos do inconsciente desde sempre, estarem à vontade no caos. Outros, talvez, por viverem vidas insípidas e estagnadas, sentem-se finalmente vivos diante da destruição e da loucura. Alguns, talvez, apenas caminhem como leminges seguindo a multidão em direção ao abismo, muitos estão simplesmente enganados, mas uma boa parte é apenas perversa.

Para entender os tempos em que nos encontramos, uma das categorias racionais possíveis, como bem me recordou meu filho Ícaro de apenas 14 anos, se encontra no sétimo capítulo da obra máxima de Maquiavel. Nesse capítulo, ele discorre sobre principados novos conquistados com as armas dos outros ou pela sorte. Principados conseguidos devido à fortuna são fáceis de conseguir, mas difíceis de manter, pois a fortuna, ou a concessão do poder por outrem são duas coisas instáveis. “Eles também não têm a sabedoria necessária para manter a posição, pois, ao menos que sejam homens de grande valor e habilidade, não é razoável esperar que deveriam saber como comandar, tendo sempre vivido fora do governo; além disso, eles não podem manter o poder, pois não têm forças que possam manter fieis e amigáveis”. Maquiavel parece descrever o nosso atual presidente, e seus aliados que já o abandonaram e o acusaram de ser aquilo que ele sempre demonstrou ser, um tolo grosseirão, como: João Doria, Lobão, MBL, Alexandre Frota, Raquel Sherazade, Reinaldo Azevedo et caterva. Bolsonaro não deitou os alicerces de seu governo, e precisaria ter a habilidade para fazê-lo agora, sob grande risco, mas não possui habilidade ou sabedoria para tanto. Concordo com Zizek que a comparação com a década de trinta não nos leva muito longe, mas nesse ponto se faz necessária, pois assim como os nazistas, seu discurso não é simples propaganda, mas um delírio real. Assim como o manco Joseph Goebbels de fato nutria ódio irracional contar o meu povo, os judeus, e nisso era ombreado por quase todos no círculo íntimo de Hitler, que de fato, acreditavam nas mais estapafúrdias teorias conspiratórias, Bolsonaro e sua família realmente acreditam em suas rocambolescas teorias conspiratórias.

Felizmente o nosso Goebbels tupiniquim, Carluxo, não tem sequer uma fração do gênio maligno do original. O primeiro fez uso extremamente inovador do rádio e do cinema, praticamente inventou o que hoje chamamos de fake news. A novidade do nosso caso, que extrapola a comparação com a década de trinta, é o uso inovador e quase diabólico das redes sociais para disseminar mentiras, e a absoluta falta de qualquer controle republicano sobre isso, além da incapacidade dos políticos mais tradicionais de compreender e agir, nem que fosse para tentar barrar essa estratégia. Sua única resposta, a torto e a direita, foi a estupefação e incredulidade, este escritor incluso. No capítulo dezenove, Maquiavel alerta sobre a necessidade de evitar ser desprezado ou odiado, “[...] ele deve evitar ser ladrão e usurpador dos bens e das mulheres dos súditos, pois isso o tornará odiado [...] Ser considerado volúvel, leviano, efeminado, miserável e irresoluto o tornam desprezível [...] ele deve procurar mostrar, em suas ações, grandeza, coragem, gravidade e fortaleza [...] pois aquele que conspira contra o príncipe sempre espera agradar com a remoção dele, mas, quando o conspirador só pode avançar ofendendo o povo, ele não terá coragem de seguir adiante”.  A todos os que estudaram História e Ciência Política, fica evidente que Bolsonaro faz justamente o oposto do que é preconizado por Maquiavel, e ainda assim vem se sustentando no poder, e aqui encontramos os limites das categorias racionais.

Bolsonaro certamente não possui uma estratégia, ele é um tonto e um boçal, mas há algo aqui a ser percebido, se não como estratégia consciente, como algo de inconsciente que reverbera sem ser percebido em todos nós, desde seus opositores a seus mais aguerridos apoiadores, o ódio e o desprezo não são empecilhos, mas ferramentas de seu governo. Zimmer traduziu um texto da tradição hindu em que dois irmãos ofenderam Shiva, e pediram uma penitência. O grande deus lhe deu duas opções: passar 20 encarnações como seus mais fieis devotos ou apenas 10 como seus piores e mais virulentos inimigos, pois quem odeia dedica mais tempo e atenção ao objeto de ódio do que quem ama e admira. Nosso ódio e desprezo é o alimento que tem engordado o poder macabro do presidente, nossos ataques a ele são tão descoordenados quanto seus atos, dedicamos nossa libido ao aspecto odioso, desprezível e irracional de seu governo como a tresloucada Damares, o desprezível Weintraub, seus filhos que sempre surpreendem pela infantilidade e grosseria. Estamos hipnotizados pelo ódio, e esquecemos da racionalidade perversa que está nos bastidores e que destrói tudo o que toca, arrasando a Amazônia, matando índios, aprovando venenos variados para a nossa comida e queimando sem pudor as garantias constitucionais. Estamos todos dançando ao som da música insana que Bolsonaro rege. A mesma que ele mesmo dança há décadas sem nem mesmo saber.

O que eu sinto diante dos ataques mais óbvios aos nossos preciosos marcos civilizatórios é ódio e raiva, misturados a um nojo indizível. Eu não sei como lidar com esse horror que faz do meu peito pesado, e que sinto nas minhas entranhas como se uma bílis corrosiva estivesse aos poucos em devorando por dentro. Nós estamos sendo atacados de dentro pra fora e nem percebemos, há um mal indizível em nós que reage ao mal que grassa lá fora e nos consome por dentro, e nos paralisa. Diante dessa maré de insanidade, de alguma maneira, precisamos lidar com esse ódio em nós, para estarmos inteiros e impor o nosso ritmo e a nossa razão as ações que devemos e podemos tomar. Estamos paralisado, pois o ataque de Bolsonaro desperta o pior em nós, e coloca em xeque a imagem de superioridade moral que a esquerda sempre nutriu acerca de si mesma. Se eu pudesse, certamente mataria Bolsonaro com requintes de crueldade, mas é justamente isso o que me consume, pois me torna não mais do que um espelho para o horror que ele representa. Temos de aprender a lidar com o poço de piche de irracionalidade que é esse desgoverno, para podermos enfrentar a racionalidade perversa que ameaça a todos nós, pois assim como os nazistas usaram da razão técnica europeia para massacrar meu povo com extrema eficiência, tudo aquilo pelo qual lutamos duramente vem sendo destruído sistematicamente sem que haja qualquer reação organizada. Depois de tantos anos discutindo coisas tão bobas quantos adereços de cabelo, ou palavras adequadas ou indequadas, o verdadeiro horror nos paralisou. Há um cano de fuzil apontado para as nossas cabeças, e não o vemos por estarmos nos afogando em ódio. O ódio é uma taça de veneno que eu bebo esperando que o outro morra, a cada dia que eu bebo um pouco mais dessa taça, nossos inimigos se fortalecem, e urge que os derrotemos.

sábado, 20 de abril de 2019

Coaching, Psicologia e tudo o mais...



O eleitor sergipano William Menezes utilizou a plataforma digital do senado E-Cidadania, para propor uma ideia acerca de uma lei que criminaliza o coach, com o intuito de coibir o charlatanismo praticado por esses profissionais, em resumo suas justificativas são: eles não possuem um diploma válido, seu trabalho é um desrespeito ao cientificamente orientado de outros profissionais, e a utilização de propaganda enganosa. Seus argumentos são convincentes, e creio que poucas pessoas diriam que são equivocados, eu, porém, creio que merecem uma análise mais cautelosa, assim como a referida proposta.

Pra começo de conversa, minha posição pública em relação ao coaching sempre foi crítica, nunca me furtei de tecer considerações duras com relação a essa prática e as suas evidentes fragilidades tanto práticas quanto teóricas, porém, no que concerne a uma lei proibindo a sua prática, eu tenho que levantar sérios questionamentos antes de pensar em concordar com essa ideia, então me permitam fazer o papel de advogado do diabo aqui.

Primeiro uma discussão de princípios, em que pese que minha visão do coaching não difere muito da de William, apesar de eu também ser bastante crítico quanto a Psicologia... O primeiro ponto é que o proibicionismo não é exatamente um método dos mais eficazes para se impedir uma prática como essa, a rigor, a atuação do estado no sentido de proibir ou coibir determinadas práticas me soa tanto pouco prática quanto problemática. Apesar de não ser um pensador liberal, e acreditar na importância de marcos regulatórios de cunho estatal, eu partilho da crença liberal de que o estado não deve intervir nos costumes, mas creio nisso por motivos diversos. Jung, em um livro importante, porém pouco lido, Presente e Futuro, advoga que a substituição da razão de estado pela razão individual resulta apenas em coletivismo, na impossibilidade da diferenciação moral individual, o que resulta em estagnação coletiva, pois é da diferenciação do individuo que vem o progresso coletivo. No caso de uma lei que simplesmente proíba o coaching, eu me pergunto se não estaríamos justamente substituindo a razão individual pela coletiva. No que concerne ao charlatanismo e propaganda enganosa, não sou exatamente um expert, mas acredito que já existem leis que são suficientes para coibir tais práticas. Obviamente o projeto ainda é embrionário, mas perguntas práticas devem ser feitas: quem fiscalizaria? Quais as penas? Que tipificação legal teria de ser criada para que essa prática seja um crime?

Jung certa feita asseverou que o efeito psicológico não é exclusivo da Psicologia, e há algo que parece que os psicólogos ainda não se deram conta, a de que a psicologia é apenas mais um discurso sobre a alma humana, e não creio que seja sequer um discurso privilegiado. A psiquiatria constitui também um discurso sobre a alma, bem como a literatura, a poesia, o cinema, a filosofia, o teatro, a psicanálise e mesmo religiões como o budismo ou o hinduísmo possuem sofisticadas reflexões sobre a alma, só para citar alguns exemplos. Desses todos que eu citei, apenas a Psiquiatria é um discurso científico, e nem de longe é o mais potente e fecundo deles, de longe, creio que o mais poderoso dos discursos sobre a alma venha da arte. Não que eu acredite que o coaching possua algo como um discurso sobre a alma humana, senão uma colcha de retalhos de elementos disparatados tomados de empréstimo de diversos campos, em especial das psicologias de viés mais ortopédico. Ainda assim, em termos de princípios, uma lei como essa toma como justificativa um noção vaga de ciência e cientificidade que me parece almejar um estatuto de “verdade” que a ciência já abandonou desde Popper.

No que concerne ao diploma, talvez julguem que o meu olhar seja enviesado pelo fato de ser professor universitário, de um curso de Psicologia ainda por cima, e, não fosse isso suficiente, ter fundado e lecionar e coordenar uma pós-graduação em Psicologia Junguiana. Com essas credenciais obviamente sou a favor do diploma. Como bom junguiano minha resposta é um sim e um não simultâneo. Foucault estava correto ao afirmar que o diploma serve apenas para constituir uma espécie de valor mercantil do saber, ele prossegue afirmando com precisão cirúrgica que todos que adquirem um diploma sabem que ele nada lhes serve, não tem conteúdo, é vazio. O diploma me garante apenas que alguém possui um diploma, qualquer um que tenha passado pelos bancos de uma universidade sabe muito bem que é perfeitamente possível sair de uma universidade sem nem mesmo um mínimo de conhecimentos acerca de sua área, especialmente nos cursos de Psicologia. Como na piada dos professores de engenharia que convidados a andar de avião, quando foram avisados que a nave fora projetada e construída por seus alunos fugiram em disparada, menos um, que nem se moveu e disse “conhecendo os meus alunos, essa porcaria nem levanta voo”. Mas estou sendo cínico, não sou exatamente a favor do diploma, mas sou a favor daquilo que as pessoas subentendem no diploma e que ele não garante: um rigoroso treinamento para se tornar terapeuta. Coachs não são terapeutas, nem se dizem terapeutas, mas se comportam cinicamente como se fossem, aliás, todo o discurso deles é pautado pelo cinismo, é quase perverso em sentido lacaniano, pois se colocam na posição de gozo do outro, são capazes de, sem pestanejar, lhe prometer o céu a lua e as estrelas – perdoem-me o uso da Psicanálise, ela se presta melhor do que a ciência de Jung a enxovalhar.

Antes de proibir o coaching, também teríamos de nos perguntar, como tantas pessoas gastam tanto dinheiro com gente que possui um discurso tão claramente perverso, e que em geral adquirem seu treinamento em cursos de fim de semana e livros tontos de autoajuda? Creio ser evidente que nossa sociedade padece de enormes problemas, alguns deles estruturais em virtude de nosso sistema político e econômico, problemas estes que não têm solução de curto prazo, alguns até parecem insolúveis. O coaching surge, junto de diversos outros discursos pautados pelo individualismo burguês, propor saídas fáceis e individuais, que são obviamente impossíveis, mas que estão em linha com as narrativas mais corriqueiras no capitalismo que sempre exigem pressa, sucesso e felicidade agora e com base apenas em si mesmo. Como Jung assevera, o individualismo não passa de uma acrobacia da vontade, e como o velho Freud já sabia, não somos senhores em nossa própria casa, logo esse otimismo é bobo e, em si enganoso. Além desses elementos, vivemos um momento de profundo reacionarismo e anti-intelectualismo, momento esse que vem se construindo na última década e parece ter atingido seu auge, e poucas respostas são mais anti-intelectuais do que o coaching. Não é de espantar, igualmente, que aquilo que os coachings digam, soe tão similar à doutrina neo-pentecostal da prosperidade, mas embalada em papel de presente laico.

Outro aspecto da ascensão do coaching, que não mudará em nada com sua proibição, é o do fracasso da Psicologia em se firmar como uma via possível do debate público. Não temos grandes intelectuais psicólogos, como temos grandes intelectuais psicanalistas, isso se dá porque no geral os psicólogos se rendem epistemologicamente de maneira muito fácil e rápida a qualquer outro saber que eles possam macaquear de maneira imprecisa e fácil, seja a Filosofia, as Ciências Sociais, as Neurociências, a Psiquiatria, a Administração etc. O local mais improvável de se encontrar um discurso propriamente psicológico é justamente um curso de Psicologia. Proponho um exame simples e fácil, procurem a ementa de psicopatologia de algum curso de Psicologia, e verão que não há ali um debate psicológico, mas sim estritamente psiquiátrico e, no geral, sem sequer pensar nas críticas que mesmo os psiquiatras se fazem. Como diziam os medievais “a natureza possui um horror vacui”, esse vácuo deixado pela psicologia é preenchido por toda sorte de coisas, desde discussões muito estranhas sobre “física quântica” até o coaching.

Do que tenho visto até agora, esse projeto me parece ter chamado a atenção de algumas pessoas mais lúcidas que percebem que o coach pode ser pouco mais do que um pensamento mágico que custa caríssimo – em que pese que eu acredito que devam existir pessoas sérias nesse meio em número não negligenciável, que se prejudicam do charlatanismo e certamente também são contra esse estado de coisas – e de psicólogos que veem nele uma oportunidade de revanchismo. Tenho sempre muitas reservas contra qualquer coisa que me soe como reserva de mercado e corporativismo, e a mim me parece que, no fundo algo que pesa para os psicólogos no que concerne a essa proposta tem a ver com essas duas coisas. Pouca coisa de realmente importante mudaria com essa proibição, e como Jung asseverava, as pessoas esquecem que existe uma inteligência para o mal, como o coaching pode ser qualquer coisa, seria complicado cerceá-lo, ainda por cima, como não há qualquer rigor, basta mudar de nome e voilà! Penso que seria mais útil e produtivo tentar pensar nas falhas da psicologia, da psiquiatria e discutir com seriedade as grandes questões do nosso tempo que a prática do coaching tenta responder com pensamento positivo: o individualismo, a falta de empatia, o significado de sucesso, o materialismo, a pressa, o ocaso das grandes saídas espirituais, as agruras do capitalismo etc. A lista é longa, e urge que criemos alternativas reais ao coaching, ou que ao menos, em nosso desespero existencial, sejamos um pouco mais exigentes, que ao menos as pessoas que vendem “sucesso” sejam realmente bem sucedidas e não gente que fracassou em outra profissão qualquer e virou coach, que possuam de fato algum expertise, com ou sem diploma, e que possam comprovar esse conhecimento ao invés de acreditarmos em qualquer promessa perversa, será pedir demais que pessoas desamparadas pensem duas vezes antes de agarrar a primeira mão que surge para lhes arrebatar das águas em que se afogam? Talvez seja, talvez seja demasiado, mas não vejo saídas simples para problemas complexos, afinal não sou coach.

domingo, 7 de abril de 2019

Sérgio Moro



O ministro Sérgio Moro é um fenômeno peculiar a ser analisado, especialmente sua ascensão e queda, que acompanha o surgimento e ocaso do “governo” que ele desavergonhadamente ajudou a eleger.
Visto em retrospecto, quando ele sai da seara jurídica, onde de fato ele tinha super-poderes, devido a uma incapacidade do judiciário seguir suas próprias regras e se auto-regular, em virtude de suas ligações intestinas com os poderes políticos e econômicos, bem como com suas ligações íntimas com a religião, especialmente as neo-pentecostais ou com o catolicismo mais tacanho, justo em sua atuação política, seus limites tornam-se auto-evidentes.
Moro é politicamente incapaz, tacanho, sem a menor compreensão de como funcionam os meandros de nossa república, ele é um perfeito representante de sua classe social, o funcionalismo público de classe média alta: um sujeito incapaz de fazer uma leitura precisa da sociedade onde vive, que desconhece a história da nossa nação, sem qualquer traquejo político, e que se julga o parâmetro real da sociedade em termos de ideias e comportamentos. Ele é alguém para quem seus privilégios se convertem em uma venda, que o impedem de aceitar, admitir ou compreender a diversidade e desigualdade de nossa nação. É sempre bom lembrar, somos uma nação marcada pela violência, exclusão, pela mancha indelével de nossos 300 anos de escravidão, e pelo nosso lamentável racismo estrutural. Moro é uma amálgama de tudo isso. Basicamente ele é um medíocre com delírios de grandeza.  Ele é um homem médio, e Jung definia psicologicamente o homem médio como alguém que tem apenas uma coisa na cabeça. Talvez Moro entenda de direito, se ele realmente entender terá sido profundamente desonesto e venal como juiz, mas talvez nem disso ele realmente entenda.
Moro é medíocre, mas assim como muitos iguais a ele, se aproveitou da nossa pretensa meritocracia, pois passar no concurso para juiz federal exige uma dedicação exclusiva, vários anos estudando em cursinhos especializados em dar dicas certeiras sobre os tipos de prova e que mais cai, que é algo possível apenas em que pode se dar ao luxo de passar de 3 a 5 anos sem trabalhar e estudando não para ser juiz, reparem, mas para passar no concurso, coisas distintas. Moro é o resultado de um acúmulo de privilégios e profundas desigualdades sociais, e foi preparado para ter autoridade e não a sabedoria para exercê-la. Além de tudo, ele tinha uma certeza quase paranoica de sua própria grandeza, ele almejava não simplesmente acabar com a corrupção, mas fundar uma nova república, estava quase numa missão divina, embriagado pela própria vaidade e orgulho. Essa mesma miopia parece ser um traço comum em seus pares, uma cegueira que os faz observar o mundo como um construto subjetivo, porém desconhecido, suas ações e discurso mostram que ele lidava com suas fantasias sobre o Brasil e sobre si-mesmo, e não com a maneira como as coisas se comportam, mas a realidade objetiva está aí para nos cobrar um preço inelutável.
Como ministro de um governo pífio e pusilânime ele deparou com a complexidade kafkiana de nosso presidencialismo de coalisão, onde sua vontade não impera soberana, teve de lidar com o humor mercurial das massas, que já não o vê como herói salvador da pátria, e com o humor perverso dos brasileiros que rapidamente ao notar suas óbvias falhas as transformou em piada. Moro não passa de um exemplo do “senso comum ilustrado”, ele é um tolo diplomado, algo que grassa em um país tão desigual como o nosso, um técnico sem qualquer visão de mundo para além dos preconceitos tacanhos de sua classe, mas com delírios de grandeza. Moro esperava ser obedecido, mas acabou sendo apenas escarnecido. Ao se tornar ministro ele uniu a sua pusilanimidade ao ridículo desse governo, ele é apenas mais um piada de mal gosto. Mas Moro é legião, milhares de jovens de classe média alta, racistas, tacanhos, burros e limitados estão viajando para fazer concursos, e sendo adestrados como cães para passar em algum deles e depois desfrutar de sua ignorância numa posição de poder e prestígio, que apenas confirma seus preconceitos afetivos e quimeras. Moro só mostra o resultado nefasto da nossa proverbial desigualdade, um tolo togado, sem o menor traquejo político, sem erudição, nem mesmo erudição jurídica, sem a menor compreensão sociológica da nossa realidade, e inflado pela sua persona de Juiz. Moro se identifica com o cargo que ocupa, mas sabe ele que sua personalidade tacanha e ignóbil foi apenas engolida pelo manto de autoridade de juiz, que não depende de sua personalidade, mas da sociedade que o cerca. Jung chamava essa condição de neurose de identificação com  a persona, ele não é uma pessoa tridimensional, mas um juiz apenas, em geral que se identifica com sua posição social o faz justamente por ser pusilânime e isso o leva a crer que o poder e a majestade da toga não sejam da sociedade, coletivos, mas uma aquisição individual, ele é poderoso e majestoso.
Seu cargo de ministro desvelou para todos a pequenez de sua alma, e são esses homens pequenos e ridículos que nos governa, são esses micróbios morais e intelectuais que passam nos concursos para juiz, devido aos privilégios atávicos e horrendos que os 300 anos de escravidão nos legaram, quase como uma maldição a pairar sobre nossas cabeças, o sangue dos escravos que está até hoje em nossas mãos nos amaldiçoa a sermos para sempre atrasados e provincianos, pois até hoje matamos a criatividade e o talento daqueles que não têm a cor ou o sotaque correto, precisamos urgentemente entender que Moro é a cara do Brasil que não queremos: uma nação escravocrata, desigual, violenta, machista e elitista. A permanência dessa maldição interessa a muito poucos, é preciso lembrar Deleuze ao dizer que a minoria somos todos e a maioria não é ninguém, mas apenas um forma vazia que vez ou outra é preenchida por alguém: homem, macho e cidadão. Moro por algum tempo foi essa maioria, mas só se pode ser maioria ao se abdicar de si mesmo, e isso tem um preço elevado que ele agora paga com sua própria carne.

sábado, 30 de março de 2019

O Futuro do governo Bolsonaro


Hoj em dia, tenho muito receio de fazer análises e previsões acerca do governo Bolsonaro, porque errei em quase todas as que fiz, eu e todos os demais analistas políticos. Todos nós subestimamos o poder das redes sociais e de fake news absurdas, do anti-petismo, dos movimentos neo-pentecostais pautados por um irracionalismo surreal, e, principalmente, o subestimamos o espírito reacionário de uma parte considerável de nossa gente. Para piorar super-estimamnos o poder da mídia tradicional, a influência econômica nas campanhas (sempre tão caras) e, pior de tudo, super-estimamos a realidade... Mesmo diante de todos esses erros, cometemos ainda outros equívocos acerca da atuação de Bolsonaro no poder, nós acreditávamos que ele seria um novo Hitler, que seria fascista e autoritário, que teríamos uma segunda republica de Weimar, mas o que vemos é simplesmente um novo Jânio Quadros, ainda mais patético, nós subestimamos grosseiramente a incompetência de Jair e seu clã.
O destino do governo Bolsonaro parece incerto, mas me arrisco a novas previsões, ao menos compreendo que os velhos modelos nos servem pouco para entender o que se passa. A primeira coisa a se compreender é que Bolsonaro não é um governante autoritário. Ele é um grosseirão, que gosta de exaltar a ditadura e vocaliza os mais horrendos preconceitos atávicos de nossa avelhantada república escravocrata, mas fora isso, ele sequer consegue controlar os filhos, não é capaz de unir seus aliados, seu governo não possui nem o menor traço de coesão e coerência, ao invés disso, seus aliados vivem uma constante guerra por território e prestígio o que denota justamente uma ausência de comando. Algo básico, quando não há uma hierarquia clara, ela vai se estabelecer por conflito, e é isso o que vemos. Alguém realmente autoritário já teria sido, bem, autoritário, e colocado ordem na casa. Pelo contrário, Bolsonaro é fraco, vacilante, incapaz, para além de incompetente, ele é incapaz, diria até que preguiçoso. Talvez as três palavras que melhor o definam sejam burro, incapaz e preguiçoso.
Para piorar ainda mais, ele não faz nem ideia do que significa ser presidente, e herdou uma presidência fraturada, ferida de morte pelo impeachment, e com sua eficácia simbólica duramente abalada, quase destruída. Nós achávamos que ele seria um Trump, que iria usar a tática do Fire Housing para nos confundir e passar as reformas, mas creio que ele nem sabe o que significa tática. Jair permanece o mesmo, como parlamentar ele foi ineficaz, como candidato suas “qualidades”, de ser tão estúpido que dizia coisas indizíveis bem ao gosto do espírito escravocrata e assassino do nosso povo, o elegeram, mas agora essas qualidades o destroem. Quem esperava uma metanóia, que de súbito ele se tornasse um presidente, esperava por um milagre, que, obviamente, não aconteceu.
O mercado, o verdadeiro deus do Messias de araque que se sente na cadeira da presidência, está insatisfeito. Guedes, o Chicago boy, é um incompetente e um lunático. Moro é o que sempre foi, um homem de elite, acostumado aos seus privilégios de nascença, que super-estimou suas próprias qualidades e agora deve estar percebendo que não passa de um amador, sem a menor pista, o menor laivo de compreensão de como a nossa complexa república funciona, e junto do governo que ele descaradamente ajudou a eleger, seu mito e sua imagem desmoronam. Em três meses sobram escândalos e constrangimentos, há uma paralisia causada pela incompetência generalizada de todos os membros importantes do governo. Caçar comunistas inexistentes pode ser bom para dar votos, mas não serve de nada quando se está no poder, Olavo pode xingar e berrar o quanto quiser, mas não se governa sem um mínimo de habilidade.
Ciro Gomes acredita que Jair será de fato um Jânio Quadros, que diante da impossibilidade de governar irá renunciar. Os militares não parecem tão interessados em um golpe, e Jair é um fraco, não tem culhões pra isso. Um impeachment parece improvável, pois o PSDB ao destruir Dilma se consumiu no processo, e, ao contrário dos Bolsonaro, os nossos parlamentares são raposas velhas e aprendem com os erros. A cada dia um aliado se afasta, a lista já está longa: Feliciano, Pondé, Lobão, Frota, Rodrigo Maia... O fato é que um governo tão comprometido com os rentistas e o “mercado”, é melhor mesmo que não funcione, ao mesmo tempo, aqueles que mais precisam do governo, os mais pobres, ficarão à míngua por quatro longos anos. De qualquer sorte, o mais provável é que aconteça algo muito improvável, só o tempo dirá.

sábado, 26 de janeiro de 2019

Jean Willys e os canalhas que comemoram sua partida


Há canalhas de todo o tipo e espécie, mas existe um lugar especial no inferno para aqueles que estão celebrando a partida de Jean Willys e seu infortúnio. Nunca excluí ninguém por pensar diferente de mim, preciso que a minha visão de mundo seja questionada, porém isso às vezes tem um preço. Deparei com uma postagem, de um sujeitinho pusilânime que compartilhou a notícia da renúncia do deputado do Psol com a legenda “coloque aqui sua risada opressora”. É indescritível a raiva, misturada à tristeza e o embrulho no estômago de nojo que isso me causou, minha primeira reação foi a de ter ganas de torcer o pescoço do sujeitinho, mas simplesmente ceder a nossa sanguinolência atávica apenas me faria pior do que ele, não, é preciso refletir, pois ele é legião.
O “homem de bem” é em geral um legalista, que deseja leias draconianas, pena de morte, e nutre um desejo perverso pela destruição do outro, desejo sintetizado na frase “bandido bom é bandido morto”, ele anseia com todo o ardor o retorno da Lex Taliones, todavia, celebra o infortúnio de Jean. O que ele está a celebrar? Em primeiro lugar ele comemora o resultado de muitos crimes: calúnia, difamação, injúria e ameaça, esta última com pena de detenção de um a seis meses ou multa. Jean é vítima há anos de uma enxurrada de calúnias e ataques de ódio apenas pelo fato de defender as suas ideias. Ele é o único homossexual assumido no congresso. É evidente que ele não é o único gay do congresso, há gays à esquerda e a direita entre nossos congressistas, mas eles preferem permanecer no armário, justamente para não passar pelo que Jean sofre, quem pode culpá-los? O espírito do “homem de bem”, jamais abandonou o período colonial, por essa época a lei era decidida por uma assembleia de homens de bem, todos brancos e senhores de engenho, que decidiam assuntos de vida e morte. Por mais de trezentos anos a tortura foi algo normal e cotidiano, negros escravos eram cruelmente torturados e assassinados ao bel prazer desses gentishomens. O homem de bem atual sente em seu íntimo uma saudade inconfessável dessa realidade, pois se fossem realmente legalistas, compreenderiam que o império da lei implica isonomia, igualdade e que mesmo seus oponentes estão amparados pela lei, ela é cega.
O “homem de bem” também não é um democrata, pois se tivesse um pingo de republicanismo saberia que é um golpe duríssimo a nossa democracia um representante eleito do povo não se sentir seguro para debater suas ideias. Jean tem toda razão em termer, Marielle foi morta, brutalmente assassinada, Freixo escapou por muito pouco, e a família do nosso presidente tem ligações intestinas com os milicianos que provavelmente estão implicados nesses crimes. Se não somos capazes de garantir a integridade de um representante eleito do povo, imagine uma pessoa comum? A própria liberdade de expressão sofre um duro golpe, mas o “homem de bem” não quer direitos, a liberdade de expressão conquistada pelas revoluções burguesas soa para ele como um exagero, o direito a voz e a integridade física deve ser um privilégio de uns poucos, e esses poucos devem deter o poder de calar e matar os demais: negros, judeus, gays, esquerdistas... A lista é longa.
O “homem de bem” é uma abominação moral, pois Jean é um homem de carne e sangue, que sofre diariamente calúnias e ameaças por defender um grupo que sofre há décadas sob o jugo desses senhores de engenho redivivos, nem posso começar a imaginar os danos psicológicos que uma dieta diária de ameaças causaram e causam a ele, é preciso ter uma perversidade monstruosa para não lamentar que um outro homem, como eu, que pensa, sente e sofre, seja submetido a tal tortura. Meu primeiro ímpeto, como já lhes disse, foi esganar o sujeitinho, mas não é isso que caracteriza o que nos torna humanos, essa violência está inscrita nos genes de todos os primatas, o que nos faz humanos é a nossa “loucura”, como disse Zizek, a literatura, a arte, poesia, filosofia. A capacidade que temos de amar, de imaginar, de ponderar e enxergar para além de nossa mesquinharia patética e de sentir que o infortúnio de Jean é um mal que nos assola a todos. Jean, você lutou uma luta desigual, sangrou todos os dias, fez mais do que qualquer um de nós faria, vá em paz, e viva, viva bem, essa é a nossa vingança, essa é a nossa resposta: a vida. Viva Jean!