sábado, 21 de janeiro de 2012

Mais uma Parábola Zen

Venho estudando e praticando o Budismo desde os meus quinze anos, já se vão um bom par de anos, começo a ficar velho e somente depois de todos esses anos de prática e reflexão começo a ter algum vislumbre sobre o significado de algumas das historietas zen que tanto me fascinaram em minha juventude. Essa que vou tentar esclarecer, em particular, sempre me pareceu um enigma insondável e apenas no mês de Dezembro do ano passado, alguns fatos da minha vida me levaram a ter um lampejo de compreensão. Não é ocioso afirmar uma vez mais, como sempre faço ao tratar dessas singelas parábolas, que eu não possuo qualquer mérito espiritual, ou passei pelos rigores do treinamento a que os mestres do Dharma normalmente são submetidos, no máximo, posso argumentar ao meu favor minha sincera dedicação a esse tema por longos anos e o estudo com muitos mestres realizados. Mesmo assim, meu ponto de vista deve ser encarado com desconfiança e, uma interpretação criativa e única deve ser o objetivo daqueles que se aproximam dessas histórias, ou ao menos, um coração aberto para ser genuinamente tocado por sua simplicidade e beleza. Passo a história propriamente dita e depois a sua interpretação.

Uma velha construiu uma cabana e por vinte anos ajudou um monge em seu aperfeiçoamento pessoal. Todos os dias, uma bela jovem lhe levava as suas refeições. Um dia, a velha senhora resolveu testar o resultado dos esforços encetados pelo monge e ordenou a jovem que levava a comida “quando você for lá, vamos ver como anda seu aperfeiçoamento pessoal. Abrace-o e veja como ele reage”. A bela jovem deixou a comida para o monge e, em seguida, o abraçou ternamente e perguntou “como se sente?”, “Como uma árvore seca num penhasco; de um dia gelado de inverno...” foi a resposta que obteve. Ao ouvir o que o monge dissera, a velha ficou furiosa e ateou fogo a cabana. “Vinte anos perdidos com um idiota!” Vociferou a velha ao ver a cabana arder.

Essa curta parábola versa sobre aquilo que é o coração do budismo Mahayana, do qual o Zen é uma das muitas vertentes: a Compaixão. O budismo Mahayana se caracteriza pelo voto do Bodhisattva, alguém que não busca a iluminação para si próprio, mas em benefício de todos os seres, pois é capaz de enxergar claramente através da ilusão da separatividade e da dualidade, e com essa visão clara e precisa, percebe que não há diferença entre ele mesmo e todos os demais seres, que toda a diferença faz parte do véu de Maya. Campbell refletiu longamente sobre a venerável sabedoria do dito sânscrito Tat Tvam Asi, “tu és isto”. O budismo Mahayana baseia-se nessa premissa, e, o Bodhisattva, é aquele que escolheu viver em júbilo em meio às tristezas do mundo. Ele não o abandona em definitivo ao entrar no Nirvana, ao invés disso, ele faz o voto de renascer em incontáveis vidas para beneficiar todos os seres “até que o último talo de grama alcance o estado de bem aventurança”. Podemos perceber essa verdade singela na bela prece dita pelos budistas tibetanos ao dedicar os méritos espirituais de suas práticas:

“Ao longo de minhas muitas vidas e até este momento, todas as virtudes que tenha alcançado, inclusive o mérito gerado por essa prática, ofereço para o bem-estar dos seres sencientes.
Possam a doença, a fome, guerra e sofrimento diminuir para todos os seres, enquanto sua sabedoria e compaixão aumentam nesta e em vidas futuras.
Possa eu claramente perceber todas as experiências como sendo tão insubstanciais quanto o tecido do sonho durante a noite e imediatamente despertar para perceber a manifestação de sabedoria pura ao surgir de cada fenômeno.
Possa eu rapidamente alcançar iluminação para trabalhar sem cessar pela liberação de todos os seres”.

Todos os méritos, toda a busca, todo o caminho espiritual é dedicado a toda forma de vida senciente. A prática da compaixão é o coração do Mahayana, em virtude disso é que se pode perceber que a atitude seca e distante do monge de nossa história é profundamente equivocada, ainda presa a ilusão da dualidade. Certa feita, após um longo e cansativo dia de estudos e ensinamentos, em que atuei como tradutor, minha professora se reuniu com alguns alunos mais antigos para lhes transmitir alguns ensinamentos de Tara Verde. Outra pessoa estava atuando como tradutor e eu permaneci por perto por apenas alguns instantes e entreouvi uma pergunta interessante sobre a prece acima “mas se eu dedicar todos os méritos da minha prática a todos os seres sencientes, como é que eu fico?” a resposta de minha mestra foi bastante inspiradora e um tanto engraçada “todos” disse ela “inclui você também”.

Não me espanta que eu tenha levado tanto tempo para ter esse pequeno vislumbre sobre essa historieta, pois, a despeito de meu esforço e sinceridade no caminho budista, a compaixão é algo que costumeiramente me escapa. A compaixão está intimamente associada a Ahimsa, a não violência, e, talvez, minha disposição excessivamente combativa me leve a ter dificuldades com esses temas tão importantes. Eu também tinha grande dificuldade para compreender a diferença que normalmente se faz no budismo entre “compreender o ensinamento e realizar o ensinamento”. Paradoxalmente, a minha grande dificuldade em compreender a compaixão me levou a entender melhor essa sutil diferenciação. Para compreender um ensinamento tudo o que se precisa é de inteligência mediana, ter prestado atenção e ser capaz de se recordar dele. Quase qualquer pessoa que conheça o Prajna Paramita, o sutra do coração da sabedoria, é capaz de recitar de cor seu conceito de vacuidade “vazio é forma, forma é vazio”. Realizar o ensinamento, todavia, significa algo bem diferente, significa que esse ensinamento foi capaz de alterar a sua visão e, em decorrência disso, alterou para sempre suas ações e passa a orientar a forma como você passa a reagir a certos estímulos internos e externos. Significa igualmente, que algum véu de ignorância, algum obscurecimento, foi removido de seus olhos, que sua consciência se expandiu. Tal expansão de consciência significa igualmente uma responsabilidade, um fardo. “ignorance is bliss” dizem os ingleses, quando deixamos para trás algum grau de ignorância, somos igualmente obrigados a nos confrontarmos conosco mesmos. Não é mais o vizinho que é um sovina, ou a colega de trabalho que é chata e fofoqueira, o foco se desloca para nós mesmos, pois nos tornarmos responsáveis por coisas que não encarávamos como pesos a carregar devido ao fato de os vermos apenas nos outros. A realização do ensinamento demanda um posicionamento moral diante da vida e de nossas próprias atitudes, do contrário, ele permanece apenas no reino das idéias abstratas, sem carne nem sangue, sem vida. Apenas algo com o qual entretemos o nosso intelecto e que, muitas vezes, o samsara se apropria dessas idéias e nos enreda ainda mais em nossa infantilidade e irresponsabilidade, nos tornando ainda mais obstinadamente ignorantes, mas inflados com uma falsa sabedoria que dificulta ainda mais a verdadeira realização. Supomos termos descoberto as chaves da sabedoria, mas elas permanecem empoeirando em um canto de nosso intelecto e as portas da realização permanecem fechadas como sempre.

A atitude de usar essas chaves, realizar o ensinamento, demanda coragem e esforço, e um empenho em mudar a nós mesmos, um esforço em enxergar com clareza e precisão, o que significa abandonar muitos comportamentos e atitudes habituais, e deixar de lado a preguiça e a estase espirituais. Decorar palavras bonitas, vestir roupas rituais coloridas, raspar a cabeça, ou conversar frivolamente sobre os ensinamentos, não adianta de nada se nosso coração não participar desse processo, Campbell gostava de citar um dito espirituoso de um renomado mestre indiano “não procure a iluminação a menos que a procure como um homem que tem os cabelos em chamas procura por uma lagoa”. O valor dos ensinamentos deve nos levar a ação, ou ao menos a reflexão sincera, deve existir um sentido de urgência e necessidade, do contrário, são um passatempo que podem, até mesmo, nos desviar de nossa verdadeira natureza. Sem atribuirmos a eles esse valor, se não vemos essa premente necessidade, pois estamos todos enredados em emoções aflitivas e hábitos mentais que nos levam a ver de maneira distorcida e que criam as causas e condições de nosso próprio sofrimento, nada nunca muda. Sempre será culpa de alguém, sou infeliz por que não tenho muito dinheiro, ou meu chefe torna a minha existência miserável, minha esposa me chateia, numa lista interminável de mentiras piedosas que estão sempre envolvidas com o desejo e a aversão.

No meu caso, me debato até hoje para ser alguém mais compassivo, ou, ao menos, para compreender melhor o que seja a compaixão. Algo que suspeito, deve me tomar ainda muitos anos de reflexão e dedicação, antes que possa me considerar alguém genuinamente compassivo. Espero sinceramente, pelo bem de todos os seres sencientes, conseguir isso ainda nesta vida.

domingo, 8 de janeiro de 2012

Psicólogos e o Facebook

Estive meditando sobre uma mensagem passada por psicólogos em seus murais no Facebook, que basicamente versa sobre preconceitos filosóficos e pseudocientíficos-racionais, lugares comuns e chavões que estão associados na mentalidade dita “mediana” acerca do psicólogo e de seu ofício, estultices e platitudes do tipo “psicólogos não são telepatas”, ou “psicólogos também sofrem por amor”. Convém salientar que, apesar de estudioso de psicologia, não sou psicólogo, o que não me impede de trazer um ponto de vista psicológico a essa temática – visto ser um estudioso de psicologia e devido ao fato dos psicólogos estarem mais preocupados em repassar essa mensagem (tenho a impressão que isso não vai ajudar a minha popularidade...). Essa empreitada é temerária, visto que é igualmente uma estultice opor ao chavão e ao slogan qualquer tipo de argumento, mesmo que seja pouco mais do que bom senso, e, não estivesse eu sofrendo da mais atroz insônia, nem me atreveria a iniciar tal empreitada inútil, mas... Estou com insônia. Contra o slogan e os desejos quiméricos, a razão só possui força até certo ponto, e claudica dependendo da temperatura dos afetos, quando estes ultrapassam certo ponto crítico a razão perde sua eficácia. Além disso, a disseminação desse tipo de chavão só demonstra que estamos lidando com a psicologia de massa, e Jung afirmou certa vez que cem cabeças brilhantes juntas formam uma só cabeça de bagre. Logo, não é à toa que tais chavões se disseminem com tal rapidez e de maneira acrítica. Não que, in totum, sejam falsos, na realidade são banalidades tão simples que, como disse certa vez Von Franz, até um carneiro poderia tê-las proferido, algo do tipo “psicólogos também são seres humanos”, ora seria de se espantar é se não fossem, isso não passa de uma obviedade e a crítica não visa negar a verdade simplória desses argumentos (a bem pensar, em qualquer profissão, são seres humanos que atuam), mas tentar discernir o que subjaz a elas, esse é o ponto.

Certa feita, Jung afirmou que “O homem reconhece que toda grande verdade é simples. Aquele cujo instinto está atrofiado, imagina, por isso, que ela se encontre em simplificações baratas e trivialidades, ou, por outro lado, em razão de seu desapontamento, incorre no erro oposto de imaginar a verdade como algo infinitamente complicado e obscuro”. Convém indagar a razão de justamente os psicólogos se deixarem enredar por simplificações baratas (não todos, é claro, mas a tal mensagem se dirige a eles e através deles se espalha). Que necessidade há de lembrar que psicólogos são humanos? Ou de que eles não são “psicólogos” em festinhas e batizados? Se pensarmos com Jung, e levarmos em conta sua teoria mais basilar acerca do psiquismo e sua relação paradoxal entre consciente/inconsciente que se dá de maneira compensatória e/ou complementar, convém nos perguntarmos a quem realmente se dirige a mensagem óbvia de que psicólogos são seres humanos.

A essa altura, é importante nos lembrarmos em que tipo de sociedade vivemos, ou seja, que tipo de sociedade gera os psicólogos (uma sociedade apinhada de imposições coletivas, slogans, idéias, filosofias e informações, que possuem uma tendência, ou sempre podem conter o perigo de esmagar o sujeito), vivemos numa sociedade em que nossos grandes símbolos, nossa herança mais preciosa, encontra-se num lamentável estado de esvaziamento, como mera curiosidades históricas, ou abertamente aviltados, quando não, fanaticamente defendidos, e todo fanatismo é compensação de secreta dúvida interior. Esses grandes sistemas simbólicos – nossos mitos e religiões – indicaram para a humanidade o caminho do espírito e de nós mesmos por milênios, mas estamos todos, como gostava de afirmar Campbell, “em queda livre em direção ao futuro”, os grandes mitos perderam a força. O que isso diz respeito aos nossos psicólogos? Você pode estar se perguntando, se é que ainda continua lendo e não simplesmente relegou, aborrecido, esse curto ensaio e voltou a divulgar slogans pela rede mundial de computadores... Pois bem, Jung possuía uma teoria das mais interessantes para explicar o surgimento da psicologia científica no último quartel do século dezenove, esse surgimento estaria intimamente ligado a perda de eficácia, especialmente naquela pretensiosa península do continente asiático chamada Europa, do descrédito coletivo dos dogmas e religiões instituídas, especialmente a Igreja católica, Jung costumava adjetivar de “catástrofe espiritual” o advento do protestantismo, que despedaçou o dogma católico e sua unidade. O ocaso desses grandes e majestosos símbolos coincide com o surgimento da psicologia.

Ora, o psicólogo, e a psicologia assumem assim um papel destacado. Von Franz, com sua grande lucidez, afirmou certa feita que, no fundo, nossa psicologia científica não passa de “mitologemas explicativos” para as realidades inconscientes, e que para nossa era, são adequados devido a nossa mentalidade “científica”. O psicólogo, esse, desculpem-me a obviedade, “ser humano”, torna-se mutatis mutandis, esquálido sucedâneo para o clérigo e o Xamã. Acontece que esse lugar, pode ser facilmente confundido com a idéia arquetípica do salvador, aquele que tem as chaves para as portas do inconsciente. Certa vez, de maneira jocosa Jung proferiu conselho aos analistas “se é que existe um deus, lembre-se sempre, que ele não é você”. O lugar que ocupa o analista o torna presa fácil de inflação psíquica. Há ainda outro fator a ser levado em conta, para ser um analista, é preciso não apenas estudo (não me entendam mal, estudo é essencial e indispensável) é necessário igualmente um larga dose de coragem, compaixão, e, ter passado pelo processo de desenvolvimento da personalidade ele mesmo, ter queimado nas chamas dos afetos e do sofrimento que levam a mudança genuína, pois o analista só leva o paciente até onde ele mesmo foi. E existem casos, infelizmente não são raros, daquilo que Jung chamava de “neurose de identificação com a persona”, ao invés de uma personalidade madura, bem desenvolvida e relativamente estável, há apenas uma máscara, atrás da qual existe apenas sujeitos mesquinhos e pusilânimes, que são apenas “psicólogos”, ou seja, crêem ser portadores da dignidade que na verdade é algo coletivo.

O sol já raiou e estou aqui ainda acordado pensando sobre essa mensagem de facebook, bem mais curta, concisa e fácil do que esse modesto ensaio, que apesar de modesto, dificilmente terá o mesmo efeito que teve a tal mensagem, nem espero que tenha, do contrário terei fracassado em meu intento. Finalizo com a passagem que me animou a escrever, de M. L. Von Franz, e que, creio eu, os psicólogos deveriam ter em mente: “Quase sempre encontramos nas pessoas de hoje uma coleção de preconceitos filosóficos e pseudocientíficos-racionais oriundos do século XIX que, na verdade, já foram desacreditados pelos principais cientistas da nossa época. Elas assimilaram essas idéias na época do colégio e lendo relatos jornalísticos baratos: os sonhos não têm significado, ou são expressões do desejo sexual ; não existem fantasmas; já se ouviu falar no inconsciente, mas não é realmente verdadeiro; não existe nenhum efeito sem causa racional e palpável; basta que a pessoa seja razoável e tudo ficará bem; se a sociedade fosse concertada , tudo seria corrigido etc. Depois dessa variedade de preconceitos, o pior  e o mais difuso  é o pensamento estatístico aberto ou implícito: “O que eu faço não faz a menor diferença; sou apenas um grão de areia entre milhões de pessoas; minha existência é um acidente insignificante”. Essa estrutura mental é um veneno direto e mortal para a alma.

Se, os psicólogos sofrem tanto as imposições coletivas a ponto de se esquecerem dos fatos citados por Von Franz, e de não possuírem a força interior para resistirem subjetivamente a esse tipo de imposição, fortaleza essa que só vem do contato com o numinoso e do elemento religioso da alma, sem o qual realmente sucumbimos a massa ao sermos dominados pelos afetos, todos os que sofrem e precisam de psicólogos estão com sérios problemas...