segunda-feira, 26 de novembro de 2012

OS NOMES DOS FURACÕES

Recentemente um amigo postou no Facebook a seguinte notícia acerca da maneira como os metereologistas escolhem nomes para os tornados, tempestades e furacões que assolam o mundo:

Curiosidade: o serviço de meteorologia dos EUA tem duas listas de nomes femininos e masculinos para batizar furacões e tempestades, como o Sandy. Uma das listas é para eventos climáticos na costa Oeste, e outro para costa Leste. O nome oficial é homologado por uma organização mundial de meteorologia que fica em Genebra.Recebe o próximo nome da lista de A a Z o fenômeno que tiver ventos superiores a 60 milhas por hora, algo em torno de 100km/h. Daí a lista vai se repetindo no clico de nomes que compõem a lista.

Algumas tempestades que causam grande trauma ou dano na sociedade, como o Catrina, em 2005 (ou foi 2006, não tenho certeza), têm seus nomes retirados da lista; depois se põe outro nome com aquela letra descartada. A cada temporada de tormentas também são acrescentados novos antropônimos.
A maioria dos nomes, mais de 90%, das tempestades são femininos. Daí você pergunta: por quê? Eu respondo: não sei.
O que chama a atenção, principalmente em virtude da atual calamidade causada pelo poder dos ventos do furacão Sandy, é justamente o fato aparentemente insólito desses fenômenos naturais serem batizados quase sempre com nomes de mulheres. Esse fato, no mínimo curioso, me leva a refletir. Minha reflexão acerca dessa temática procura inicialmente entender a necessidade de nomear tais fenômenos, ou seja, de personificar esses eventos naturais e, em seguida, compreender a razão, ou razões, de a maioria dos nomes de tempestades serem femininos.

A princípio me vem à mente a possibilidade de interpretação dos mitos que já se inicia na própria antiguidade e que ficou conhecida como alegoria. Em primoroso artigo, a professora Loraine Oliveira discute o sentindo desse termo em Plutarco e explica seus significados mais correntes, nesse caso me interessa mais o segundo.  O substantivo alegoria (ἀλληγορία) é formado por ἄλλος “outro” e ἀγορεύω “falo”, no sentindo de que ao falar de uma coisa na realidade fala-se de outra. Na escola de Pérgamo já no século I a alegoria era utilizada como recurso exegético dos mitos inspirado na doutrina estoica, seu principal representante foi Crates de Malos que alcançou renome ao interpretar Homero. Crates interpretava em termos físicos as figuras divinas presentes na poesia Homérica, para ele Homero tinha a intenção de instruir sobre o cosmos através da alegoria. Nesse sentido, as figuras divinas não passavam de fenômenos astrológicos ou meteorológicos. Zeus era na verdade o raio e assim por diante.

Vemos um fenômeno algo similar aqui? Diante de grandes calamidades atmosféricas e climáticas como furacões e tempestades temos a invencível necessidade de nos referir a elas através dessa curiosa prosopopeia? A fúria da natureza precisa ser personificada e nomeada com um nome humano? Como o furacão mais recente, um dos mais poderosos jamais vistos, Sandy. Ao invés de termos deuses ou homens de estatura divina ou semidivina sendo representações semióticas de fenômenos físicos como o raio, a chuva, o sol, o trovão, temos fenômenos naturais que precisam ser nomeados como se fossem gente, ou, ao menos, imbuídos de algum espírito ou vontade, dito de outra maneira, personificados. Se é que existe alguma similaridade ela se pauta por ser um avesso especular, o que só torna a comparação ainda mais interessante.

Tolkien, em seu excelente ensaio On Fairy-stories, faz uma análise das mais interessantes sobre o fenômeno da alegoria. Segundo Tolkien, em algum ponto das interpretações dos mitos começou-se a pensar que os olímpicos eram personificações do sol, da aurora, da noite e assim por diante, todas as histórias sobre eles eram mitos (ou melhor alegorias) das grandes mudanças elementais e dos processos da natureza. Épicos, heróis, sagas, lendas e então essas histórias foram humanizadas ao se atribuir tais feitos e histórias a heróis ancestrais (poderosos, mas ainda homens) e tendo ocorrido em lugares reais. E finalmente, tendo essas histórias decaído e enfraquecido, se tornaram contos populares, contos de fadas, Märchen. Para o autor da trilogia The Lord of the Rings, a alegoria parece ser a verdade quase de cabeça para baixo. A inflexão proposta por Tolkien é das mais interessantes, imaginemos que por trás dos mitos, como a alegoria sugere, não há nada que realmente corresponda aos deuses da mitologia: nenhuma personalidade, apenas objetos astrológicos e metereológicos. Então, esses objetos naturais só poderiam ser revestidos com um significado pessoal e glória através de uma dádiva, a dádiva de uma personalidade, de um homem. Personalidade, afirma Tolkien, só pode ser derivada de uma pessoa. Os deuses derivam seu poder e beleza dos altos esplendores da natureza, mas foi o homem que obteve isso para eles, os abstraiu da lua, do sol, das nuvens, mas a sua personalidade eles conseguem diretamente dele, do homem. Sua centelha de divindade os deuses obtém através do homem.

Temos aqui uma necessidade quase invencível de nomear esses fenômenos tão grandiloquentes e poderosos, de personificá-los, de, como afirma Tolkien, conferir a eles essa fagulha de divindade, a dádiva de uma personalidade. Isso é um indicativo interessante para se perceber aquele pano de fundo psíquico inexpresso que se faz sempre presente, seja convidado ou não, em nossas ações. O inconsciente é um dado irracional existencial inalienável. Nossa era o nega veementemente, iludida pela quimera de uma preferência irracional (ironicamente inconsciente) de cunho sentimental pela matéria, aquilo que Jung denominava de maneira jocosa de “metafísica da matéria”. Ao virarmos as costas a esse aspecto de nossa natureza findamos colocando nomes em furacões, e mais, nomes de mulher, “o princípio básico do inconsciente é o Eterno Feminino”, afirmou certa vez Jung. Esse costume aparentemente ingênuo de nomear furacões e calamidades com nomes de mulher certamente revela uma ideologia insidiosa relacionada à mulher, ao feminino, mas ao invés de simplesmente apontar esse fato evidente, pretendo pensar, isso sim, o pano de fundo anímico que permite seu surgimento. Temos aqui um indício da relação conflituosa que temos com nossa alma, com o feminino que se manifesta não apenas em sonhos, visões e ideias, mas igualmente na natureza e no corpo físico da mulher (na matéria). Alguém poderia objetar, de uma maneira um tanto ingênua, que essa nomeação é um ato consciente, tal objeção se esquece de que, como dado existencial inalienável, o inconsciente é anterior, simultâneo e posterior a consciência.

Campbell faz uma discussão acerca do feminino que pode nos ser útil aqui – também creio que não seja ocioso recordar que feminino não se restringe apenas a mulher assim como masculino não igual a homem. No hinduísmo todo o poder, sakti, é feminino, e o feminino representa a totalidade do poder. Segundo Zimmer, o poder feminino no hinduísmo, a Deusa, Jaganmayi (que consiste de todos os mundos e seres), é a perfeita representação da alegria e da destruição da vida, dois polos dotados de maior tensão, mas em eterna fusão. Só ela conhece a energia secreta onimovente dos mundos, pois ela mesma é essa essência, sakti, ou brahman. Toda a dualidade, sejam os aspectos ameaçadores ou benfazejos, são facetas de sua essência, ela toma a forma em todas as coisas. Além disso, curiosamente, no hinduísmo o sol é feminino (Parvati) e a lua é masculina (Shiva). Na perspectiva hindu, personificada pela Deusa Kali, a Deusa dá luz às formas e mata as formas. Diferente do conhecido princípio chinês em que Yang é ativo, masculino, agressor, claro; e Yin é feminino, passivo, receptivo, escuro; na Índia temos o oposto (apesar de que convém lembrar que no Japão o sol é feminino e a lua masculina). A mulher é o princípio energético vital, ela é a ativadora. Nos sistemas míticos da Era do Bronze a mulher era a grande divindade e a fonte de todo o poder, no Egito o trono que conferia autoridade ao faraó era a deusa Ísis, temos algo similar na imagem do cristo menino sentado no joelho da virgem, ela é o seu poder.

O poder masculino surge com os semitas, pois onde a agricultura é o principal sustento há poderes terrenos e deusas, onde a caça predomina é a iniciativa masculina que justifica a matança dos animais. A tradição semita (judaico-cristã) há um medo do corpo feminino, que é o principal símbolo antropomórfico da atração do poder da natureza. Vemos nas tradições mais primitivas dos ritos de iniciação – prioritariamente masculinos – a imperiosa necessidade de libertar a psique masculina da influência feminina e de ter acesso à magia e ao poder feminino. Os homens são levados a sofrer e a suportar o sofrimento (uma característica feminina), e nos rituais dos aborígines australianos os jovens são alimentados exclusivamente com o sangue dos homens e, além de serem marcados com uma circuncisão, recebem uma subincisão no pênis, para que agora sangrem como as mulheres. Nas sociedades onde predomina a iniciativa masculina existe esse medo do corpo feminino e a necessidade de subjugá-lo, assim como na tradição judaico-cristã a natureza foi feita para ser usada e governada pelo homem.

Isso chegou a tal extremo no cristianismo que as freiras sequer tinham permissão para contemplarem seus próprios corpos. No islamismo, a mais masculina de todas as religiões modernas, a mulher não é mais do que um veículo para a produção de filhos e a função masculina é, em grande parte, a proteção das mulheres. (Campbell, 2003, p.222).

O masculino está relacionado à ordem social, enquanto o feminino a ordem natural. Spengler expressou certa vez que “O homem faz a história, a mulher é a história”. A mulher é a vida. Podemos perceber, pela amplificação objetiva fornecida pela cultura hindu que não é tão estranho assim que o aspecto destrutivo da natureza seja compreendido como feminino, isso não é novo, mas há uma singular inflexão que precisa ser reconhecida, pois certamente há um fenômeno psíquico basilar em ação no que concerne as majestosas imagens da Índia e as tormentas que nos assolam hodiernamente e seus nomes. Campbell afirmou que “Demônio é a palavra que usamos para designar os deuses de outras pessoas”, ainda baseado na filosofia hindu ele afirmava que os demônios são, em verdade, obstruções à expansão da consciência, um demônio é um poder interior que ainda não recebeu expressão plena, um deus reprimido e que ao não ser compreendido é visto como demônio. A percepção dos poderes femininos como a totalidade do existir, do ser, da natureza, tanto em seus aspectos horrendos quanto agradáveis nos mitos aqui apresentados é algo que se situa no campo de um saber consciente, representa um arcabouço simbólico, representações coletivas, para dar conta de um mistério. O símbolo, nesse sentido, funciona como transformador de energia, como promotor de cultura, operacionalizando o inconsciente na consciência e protegendo a consciência da experiência direta e arrasadora das potências inconscientes, diminuindo o campo das inconsciências parciais e tendo uma ação apotropáica.

No caso do nome dos furacões vemos em ação a mesma função psicológica básica, mas sem qualquer mediação simbólica, ou, se é que existe, é mínima. Manifesta-se mais como sintoma, como efeito mefistotélico, sintomático de nossa relação problemática com o psiquismo objetivo. Enxergamos, ou associamos, a fúria destruidora dos elementos, a natureza em seu aspecto indômito como feminina, ao mesmo tempo, ainda grassa em nossa sociedade (mesmo que em nossa sociedade a mulher já tenha se emancipado de maneira muito mais significativa do que em outras como as sociedades islâmicas) um profundo machismo que reprime e teme a mulher e seu corpo (representado muito bem pelas tendências cristãs de extrema direita), ou, seu avesso especular a exploração abusiva e desrespeitosa (dessacralizada) do corpo da mulher. O corpo exibido como mero pedaço de carne, como algo a ser tomado, explorado e usado, como nas rudes metáforas de um Francis Bacon sobre a natureza. Psicologicamente, nesse sentido, compartilhamos do destino de Acteon, que ao encarar a castíssima e terrível Artemis desnuda a viu não como deusa, mas como carne e foi transformado numa besta, um cervo, e foi impiedosamente despedaçado por seus próprios cães de caça.

Quando o lado sentimental da vida desaparece, o relacionamento se degenera em sexo puro como a única forma de interagir com o outro. (...) Do mesmo modo, sempre que a vida sentimental se degenera, em todas as civilizações decadentes, vemos essa evidente e rude exibição de sexualidade. Em civilizações vivas ela é mais oculta e se mistura ao sentimento. (Von Franz, 2010, p.33).

O fenômeno da nomeação dos furacões – que possui certo parentesco com a alegoria como exporei em maiores detalhes adiante – fundamenta-se em um funcionamento psíquico basilar que Jung chamou de identidade e projeção. A identidade significa uma igualdade psicológica e é sempre um fenômeno inconsciente, e que é o fundamento da participation mystique, resíduo da primitiva indiferenciação psíquica entre sujeito e objeto. Na medida em que se não tiver tornado um conteúdo da consciência permanece preso a um estado de identidade com o objeto. O estado de identidade arcaica possui alguns inconvenientes. A identificação com a psique coletiva leva o indivíduo a tentar impor aos outros as exigências de seu inconsciente, pois esse tipo de identificação acarreta um sentimento de validez geral (inatacável por meios racionais), como consequência ignorará por completo as diferenças da psique pessoal dos demais, com um menosprezo implacável pelas diferenças individuais que pode levar a asfixia do elemento de diferenciação da comunidade: o indivíduo. Essa atitude coletiva pressupõe a mesma psique coletiva nos outros. Como fica claro pela exposição do fenômeno da identidade, ela está relacionada fatalmente a projeção. Projeção é uma transferência inconsciente de um fato psíquico subjetivo para um objeto exterior.

O estado de identidade caracteriza a primeira infância, e o inconsciente do adulto civilizado, bem como aquilo que Von Franz certa feita chamou de “estado espiritual originalmente mítico”, no qual não se distinguia os acontecimentos naturais externos dos internos. Setores isolados da psique humana ainda eram em grande parte ignorados e encontravam-se fora, de maneira objetiva e “encontrá-los significava um evento mágico ou um impulso para o bem ou para o mal” (Franz, 1997). Um exemplo interessante de uma percepção intuitiva desse fato está em Monteiro Lobato, quando o li aos nove anos de idade, uma passagem da minha história favorita “Os Doze Trabalhos de Hércules” se marcou fortemente em minha memória. Pedrinho, Visconde e Emília foram a uma floresta para ver as ninfas e sílfides, os gregos do tempo dos heróis que os acompanhavam podiam se regozijar ao ver os espíritos da natureza, mas os heróis “modernos” não, e eles chegam a essa conclusão, que sendo de outra época já não podem mais enxergar a natureza dessa mesma maneira. A intuição genial de Monteiro Lobato (que uma vez mais me mostra o quanto a Psicologia Analítica vem sendo desperdiçada com os psicólogos) dá conta justamente desse estado “inconsciente primordial”. Para ser mais preciso, nesse caso das ninfas, sílfides e etc.; já se desenha o começo da segunda etapa do processo de retirada da projeção como descrita por von Franz, em que os objetos naturais já se distinguem em parte dos seres míticos que os animavam (esse é um processo constituído ao todo de cinco estágios sucessivos).

Para compreender meu argumento (na verdade, assim como a comparação do início, um reverso especular da abordagem histórica da projeção nas ideias religiosas de Von Franz), é preciso compreender minimamente o processo a que aludi anteriormente, para em seguida compreender como esse processo (de ampliação da consciência) se deu através do exemplo histórico, e por fim, chegar a nossa curiosa nomeação dos poderes elementais hodierna.Von Franz se utiliza de um exemplo interessante para ilustrar o processo de retirada de projeção – a rigor só se pode falar de projeção quando a identidade começa a se tornar problemática – o exemplo em seu livro Reflexos da Alma, é o de um soldado nigeriano que desertou por ter escutado uma árvore lhe chamando, ao se estudar o seu interrogatório fica claro que para ele a árvore a voz eram idênticas, a segunda etapa é a distinção entre a árvore e a voz, como a crença em que um espírito habita a árvore (uma dríade por exemplo), a terceira etapa é a necessidade de uma avaliação moral, na perspectiva de julgar se trata-se de um espírito bom ou mal, a quarta etapa vai mais longe rejeitando a vivência como uma ilusão, e na etapa posterior reconhecer o fenômeno como algo psiquicamente real, nesse caso, a avaliação moral torna-se de extrema importância.

Na quinta etapa ocorre a ampliação da consciência, pois o conteúdo subjetivo projetado pode ser integrado à consciência. A energia investida nos objetos exteriores retorna para a personalidade do eu. Esse processo não se restringe a experiência individual, mas pode ser percebido, igualmente, na história das ideias religiosas, como demonstra Von Franz. No mundo grego arcaico predominava o estado de identidade arcaica. Por volta do início das tradições históricas surgem imagens do começo da segunda etapa, o início da diferenciação, os deuses e espíritos podem se manifestar através da natureza, mas eles possuem uma existência própria. Já se vislumbrava também o início da terceira etapa, uma distinção moral, o homem julgava as ações dos deuses e se permitia julgá-las moralmente. Com o início da filosofia natural pré-socrática alterou-se a imagem do mundo mítico religioso dos helenos cultos, procurava-se o divino em um princípio do mundo (arché), e os deuses passaram a coexistir com essas ideias filosóficas ou a ter suas existências negadas. Essa postura iluminística caracteriza a quarta etapa e culminou com a doutrina de Euhemeros, para quem os deuses não passavam de personalidades históricas mortas e divinizadas. Em seguida vemos o esforço de um Teogenes de Region que tenta salvar a “antiga verdade” concebendo-a “alegoricamente” (simbolicamente na opinião de von Franz). Ele procurou traduzir os antigos mitos em uma linguagem filosófica nova, os deuses passaram a ser vistos como símbolos de objetos materiais, ou representariam características e estados psíquicos do homem (início da quinta etapa), Athena seria a sabedoria, Ares a paixão insensata, Afrodite o desejo, Hermes a razão e assim por diante. Esses estados que hoje veríamos como endopsiquicos eram percebidos ainda como “poderes externos”, como essas interpretações não estabelecem limites entre a substância psíquica e a substância material do mundo, elas recriam em parte, junto com a quinta etapa (da reflexão assimiladora), a primeira etapa da identidade arcaica.

Como se pode perceber, existe o processo de ampliação da consciência até o estabelecimento de um novo mito, uma nova identidade que passa a ser a nova verdade, mas a consciência resultante desse processo é mais ampla, todavia o processo aqui apresentado é uma via de duas mãos. A consciência assim como pode se ampliar, também pode, em termos coletivos, acontecer uma regressão. Nos contos de fadas essa regressão pode ser representada por conteúdos da psique que já teve forma humana e passa a possuir uma forma animal ou demoníaca. Von Franz cita como exemplo um conto Irlandês, ao perceber a aproximação dos cristãos, um chefe tribal jurou que eles jamais colocariam as mãos sobre suas filhas, por isso lançou uma rede mágica sobre elas e as transformou em sereias, que até hoje nadam pelos mares atraindo homens. Como se pode ver, essas sereias já foram humanas, mas em virtude de uma atitude errada da consciência foram aprisionadas em uma forma instintiva. De acordo com Von Franz, a vida erótica na antiguidade tardia era relativamente diferenciada, mas esse desenvolvimento foi bruscamente interrompido pela chegada do cristianismo. A chegada do cristianismo representou um enorme avanço da consciência, todavia no campo da Anima, do Eros, isso representou um completo isolamento. Na antiguidade existiu um nível de relacionamento consciente com a Anima muito mais diferenciado e elevado do que na Idade Média.

Eros, na Idade Média, regressou ao sexo puro, sem sentimento – apenas o ato animal. A implicação espiritual das relações sexuais não era vista; regressou ao inconsciente na forma de sereias, fantasias, bruxas etc. (von Franz, 2010, p.52).

E o que significa psicologicamente o fenômeno que foi o mote para esse escrito? Os nomes femininos dados aos furacões como Sandy e Catrina? Esse fenômeno é o reverso especular da alegoria, que representa em termos coletivos o início da quinta etapa do processo de retirada de projeção, a reflexão assimiladora, o que o seu oposto especular indica é o estado inicial de identidade, sintoma dessa regressão da consciência que remonta aos primórdios do Cristianismo e da qual somos herdeiros e, a mim me parece, encontra-se em estado ainda mais deplorável, como atestam dois fatores. As tentativas dos cristãos de extrema direita de “congelar” o mundo numa mentalidade, quando muito, medieval, negando o óbvio depauperamento simbólico das majestosas imagens do cristianismo. A tentativa deliberada de barrar e obstacular mudanças importantes e o discurso extemporâneo desse segmento que, por mais diversificado que pareça, falam em uníssono quando se trata de manter uma imagem do mundo avelhantada. Outro indício de que nossa civilização, em termos espirituais, está decadente e carente de Eros, é um tipo de relação que se estabelece com o sexo e o corpo feminino, vulgar, grosseira e desprovida de sentimento. Mesmo aquelas que se colocam a protestar contra isso, apelam para a vulgaridade da exibição do corpo como mero fenômeno biológico, exposto e sem Eros genuíno. Além é claro, o fato de o poder do dogma cristão estar cada vez mais combalido nos expõe ao retorno de Wotan, que nos espreita e que fez sentir seu poder na erupção psíquica catastrófica que foi o nazismo na Alemanha.

O conteúdo psíquico “projetado” nos furacões e na fúria indômita da natureza é a Anima. E isso é sintomático de nossa relação coletiva com nossa alma, com o sentimento e com o Eros, e a raiz psíquica do preconceito arraigado contra a mulher e o corpo feminino. Nossa relação coletiva com esse dado do psiquismo objetivo se dá de maneira indiferenciada, inconsciente e presa de atroz identidade. Nosso grau de liberdade empírica é proporcional à extensão da consciência. Quanto mais alguém é inconsciente, tanto mais se conforma aos cânones do comportamento psíquico, sendo amplamente inconscientes das diferenças reais entre ele e os demais. O inconsciente ao ser renegado reage de maneiras violentas, e o comportamento do inconsciente é compulsivo e autônomo, capaz de gerar terríveis catástrofes no funcionamento consciente cotidiano. Ao ser negado o inconsciente é sentido como algo de terrível, incontrolado, indômito e tenebroso, como um demônio ou uma tempestade.

A anima é o arquétipo da vida, no terreno humano as mulheres dão e preservam a vida. Os primitivos evitavam sempre que possível encarar o problema da anima/animus com complexos tabus relacionados ao casamento, e as tendências à endogamia e exogamia, dessa forma a anima/animus permanecia no reino dos deuses, não se misturando a vida cotidiana. Não existia entre os primitivos a escolha individual pelo parceiro do sexo oposto, essa escolha era coletiva, muitas vezes o jovem rapaz era apresentado a sua futura esposa logo após o término dos rituais de iniciação masculina, não existia espaço para a escolha individual. Nós, ao contrário, em nossa “queda livre em direção ao futuro”, para usar o termo de Campbell, nos defrontamos com esse problema constantemente, ao nos relacionarmos individualmente (ou tentarmos) com outro ser humano na tentativa de encontrarmos um parceiro amoroso. Para os primitivos isso sempre resultava em desastre em virtude de uma fraqueza do complexo do eu, por isso era evitado e prevenido através de rituais apotropáicos, em nosso caso, como o primitivo vive ainda em nós, o desastre nunca está assim tão longe.

Segundo Von Franz, nos contos de fadas a anima é constantemente representada como a “filha do diabo”, isso acontece em decorrência do princípio feminino estar ausente nos países protestantes. Entre os protestantes há a ausência da anima inteira, mas nos países católicos só falta o lado escuro, pois a Virgem Maria representa o lado luminoso. Como vimos pelas imagens da mitologia hindu, a anima é paradoxal, possuindo tanto aspectos positivos e benfazejos quanto aspectos negativos e destruidores.

No século XIII, a introdução do culto a Maria deu ao homem cristão uma figura feminina idealizada para a qual poderia projetar sua anima. Se por um lado isso foi bom, havia, no entanto, a desvantagem de que a escolha individual de uma projeção da anima já não mais existia – só havia a única anima idêntica para todos os homens. Nos tempos da cavalaria, cada cavaleiro escolhia servir a uma senhora em particular. Depois, quando o cristianismo e o culto a Maria se estabeleceram, a perseguição as bruxas aumentou, à medida que os homens viviam o fascínio por uma mulher específica. (Von Franz, 2010, p.78).

A imagem da Anima é uma entidade psicológica, mas existe igualmente uma experiência humana, quando a anima está ligada a um ser humano ela se torna um desafio na vida de um homem. Em carta destinada a um certo “senhor N.” um americano de 76 anos, datada de 1956, Jung afirmou que o arquétipo feminino que todo homem traz em seu inconsciente, a anima (fato já conhecido na idade média omnis vir feminam suam secum portat) atua na escolha do parceiro do sexo oposto de uma maneira muito peculiar, isso significa na prática que a mulher de sua escolha representa para o homem uma tarefa, justamente por se tornarem encarnações da anima. Esse arquétipo está ligado a forma como nos relacionamos também com a natureza e a matéria, e, idealmente, é uma estrutura psíquica que atua como função de relação entre a consciência do eu e o inconsciente, mediando essa relação que pode ser tão problemática, mas absolutamente vital! Precisamos nos recordar, nesta análise de um fato dos mais importantes, que os símbolos arquetípicos possuem uma enorme carga de energia, são fatores altamente explosivos. A vivência arquetípica não é sentida como apenas intelectual, mas também, e eu diria principalmente, como uma vivência sentimental, que mobiliza o ser humano todo.

Vemos no caso que está em questão aqui que a relação de nossa consciência coletiva com o inconsciente é turbulenta e “intempestiva”, e isso encerra graves consequências, principalmente ao percebermos que nossa relação com essa imagem tão poderosa se encontra em estado de identidade arcaica, e representa uma fraqueza da parte da consciência, por isso encaramos essa parte de nossa vida anímica como algo que causa terror e destruição. Tal reflexão deve nos alertar para esse estado de coisas, mas, infelizmente ou felizmente, a única fonte de progresso moral da sociedade é o indivíduo e não creio que existam meios coletivos de lidar com esse problema, senão o vivermos de maneira genuína e completa em nossas vidas e lutarmos com sinceridade e coragem para termos mais consciência e podermos ser mais livres.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

O Cinema e as Máscaras: Batman e V de Vingança

Dois filmes em particular me chamaram a atenção para essa temática peculiar que abordarei aqui – mas não me limitarei a eles – V de vingança e Batman. Na realidade, há algo de insidioso na ideia da máscara nessas duas películas e que talvez passe despercebido a um olhar menos atento. Os dois filmes são produções Hollywoodianas, ambos baseados em quadrinhos. Batman não se baseia em alguma história particular, mas no “mito” do morcego como foi trabalhado por décadas de roteiristas e desenhistas, mas que encontrou seu tom sombrio e seu renascimento com o magistral Batman: The Dark Knight Returns de Frank Miller, não é mera coincidência que o segundo filme da trilogia dirigida por Christopher Nolan se chamou The Dark Knight Rises. V de Vingança (V for Vendetta) se baseia na obra homônima do gigante dos quadrinhos Alan Moore, uma série de 10 edições de Graphic Novels. Além dessas similaridades, há uma ideia que permeia os dois filmes que tem a ver com as máscaras utilizadas por seus personagens, pois as tais máscaras não servem apenas para esconder suas identidades, ou mesmo para criar um efeito de terror ou outro qualquer, não, não se trata disso. Nesses casos, as máscaras são mais importantes do que os rostos por trás delas, no caso do personagem principal de V for Vendetta, ele nem mesmo possui um rosto, seu rosto foi destruído e desfigurado, consumido pelo fogo.

Batman foi inspirado no Zorro: a máscara, roupa preta e o nome de animal (zorro é raposa em espanhol), diferente de outros heróis que utilizam a máscara prioritariamente como uma forma de resguardar suas identidades secretas, há na máscara do Batman, uma finalidade que vai além de ocultar a face simplesmente. A máscara de Batman serve para alimentar o sentimento de medo em seus oponentes, há uma teatralidade que serve ao propósito de combater o crime, o medo e a escuridão são armas no vasto arsenal do morcego. Mas há uma ideia que foi explorada no filme que me chama a atenção. Na película, Ra’s Al Gul sugere ao confuso e desorientado Bruce Wayne que ele precisa se tornar mais do que um homem, precisa se tornar um símbolo, do contrário sua luta estaria fadada ao fracasso, esse tema é explorado e levado ao seu limite, de uma forma que me parece profundamente inadequada, e que revela uma ideologia insidiosa, Batman é muito maior como símbolo que Wayne, e como símbolo, como dado coletivo, qualquer um pode ser Batman.

Façamos uma análise rápida dessa afirmação que vai sendo construída no decorrer dos três filmes até culminar com a “morte” de Wayne, mas não de Batman. Bruce Wayne realmente não importa como personalidade? Sem o trauma de ver seus pais serem brutalmente assassinados, sem ter crescido num ambiente protegido e privilegiado, sem ter vivido na violenta e decadente Gotham, sem sua fortuna e vastos recursos, sem seu incidente com morcegos na infância, seria possível um Batman? A resposta é simples, não, não seria. Todos esses fatores que correspondem à biografia de Bruce Wayne são cruciais para o surgimento do cavaleiro das trevas. A morte violenta de seus pais e o choque de ter presenciado tal ato o marcaram de maneira profunda e surge nesse momento o desejo de não ser mais um espectador impotente, o desejo de vingança. É uma memória, ligado ao seu medo mais íntimo, associada a imagem de seu pai – poucas imagens são tão poderosas quanto a das figuras parentais – que o leva escolher o morcego, Wayne teme os morcegos, e, como o xamã primitivo, ele veste a máscara do seu animal totem e se confunde com ele, se torna mais do que simples homem, mas homem e fera ao mesmo tempo. Mas sem a intimidade de Wayne, sua biografia e história a máscara seria supérflua.

Passemos a V for Vendetta, o personagem principal “V” (a letra v ou o numeral romano V, número da cela onde esteve encarcerado) é o que se pode chamar em quadrinhos de um “science hero” (conceito explorado por Moore em outras séries como Tom Strong, por exemplo) é um ser humano alterado pela ciência (nesse caso não através de manipulação genética direta, mas através de uma substância chamada Batch 5, que lhe altera grotescamente o corpo, mas lhe dá capacidades sobre-humanas. V é um anarquista que luta contra um governo fascista na Inglaterra após uma guerra nuclear que trouxe fome e miséria, esse governo fascista chegou ao poder com a missão de restaurar a ordem em meio ao caos resultante da guerra e ao se instalar no poder implacavelmente destrói todo o tipo de “minorias” (esquerdistas, gays, imigrantes, etc). V, que abdica de seu nome e mesmo de seu rosto, utiliza sempre uma máscara de Guy Fawkes (que inspirou o grupo anonymous), e uma fantasia que consiste de capa, botas, uma peruca e um chapéu cônico. Os poderes e a fantasia mantém V como um super-herói, assim como sua máscara, mas V, num certo sentido, foi privado de sua identidade e de sua essência pelas ações do regime fascista.

Guy Fawkes foi um soldado católico que participou de uma tentativa de assassinato do rei protestante da Inglaterra em 1605 através de uma tentativa de explodir o parlamento, ao ser capturado após a tentativa de explodir o parlamento ter falhado, Fawkes foi torturado e enforcado por traição. V ao utilizar a máscara de Fawkes assume simbolicamente seu papel de destruir um sistema que considera corrupto e injusto, Fawkes é transformado em um mártir e símbolo, o que já deixa antever o final trágico de V, que assim como o homem de quem toma o rosto emprestado, se converte em mártir. A máscara substitui o homem, quando V morre, sua “discípula” Evey assume o seu lugar. Todavia, a insignificância individual também não se sustenta aqui, V é uma personalidade das mais fortes, assim como Fawkes fora outrora, é um especialista em explosivos, um homem com conhecimento de filosofia e política, capaz de refletir criticamente sobre suas ações e um apaixonado por filmes de “capa e espada” o que, assim como Batman, o influenciou na escolha de sua “fantasia”. Sem a personalidade do anônimo V, sem sua biografia que inclui os cruéis experimentos a que foi submetido e suas perdas, a máscara não teria sentido. O apelo de esquerda é bem mais forte em V do que em Batman: sua sucessora é uma mulher, ele é um anarquista, sua máscara é referência a um terrorista católico, ao invés de meros vilões ele combate um sistema opressivo, todavia há algo de ideologicamente insidioso aqui, como explicitarei adiante.

Os extremos opostos a essa postura são O Homem de Ferro e o Super-Homem. Super-Homem, que é extraordinário em tudo, tem como disfarce o homem médio, o homem comum, o insignificante Clarke Kent. Ele não precisa de máscara, o homem médio jamais poderia ser o Super-Homem, ninguém suspeitaria de Clarke, ele sim, o repórter do Planeta Diário, usa uma “máscara”, óculos. Mas não é isso que o esconde, mas o fato de que o homem médio jamais poderia ser o Super-Homem. O verdadeiro rosto do Kriptoniano aparece apenas quando está com seu uniforme azul, Kent de “pequenópolis” é apenas mais um na multidão, uma recorrência estatística, um “Zé-ninguém”. Há uma inversão aqui se pensarmos nos dois exemplos anteriores. Diferente do Super-Homem, o bilionário, gênio, playboy, filantropo Tony Starke é uma personalidade que se impõe a máscara. Sua máscara é sua criação, uma armadura que reflete seu gênio, uma arma que se molda ao seu corpo e a sua face, mas que o revela mais do que o esconde. Em certa medida, qualquer um poderia ser o Homem de Ferro, pois qualquer um poderia vestir uma das armaduras de Tony (como Rodney faz), mas a armadura importa pouco, o gênio, o narcisismo, em outras palavras a personalidade de Stark é o importante aqui. Na película ele imediatamente revela sua “identidade secreta”, passa a agir como um astro de rock, e suas idiossincrasias dão o tom do filme. A máscara em Stark é um detalhe.

A máscara é um elemento crucial nas histórias de super-heróis, é quase um traço que define o gênero. Zorro torna-se assim, retrospectivamente, um tipo de super-herói. Espadachim, cavaleiro, acrobata extraordinário, ele usa a máscara para poder agir com mais liberdade e ludibriar seus inimigos, nela sua verdadeira personalidade aparece, ela revela mais do que esconde. O dandy afetado, Diego de La Veja é apenas uma fração da personalidade, pois Zorro realmente é culto e refinado, mas é, ao mesmo tempo, um homem de ação. O que acontece com Batman e V, é que há um extrapolamento da máscara para além de sua função corriqueira nas histórias de super-heróis, aqui elas são hipostasiadas, passam a importar mais do que quem as veste. Qual o problema disso, em o homem importar menos do que a máscara? O símbolo coletivo ter maior importância do que Bruce Wayne. Qualquer um pode ser Batman é uma falácia, no último filme, seu pretenso sucessor, Robin, era alguém com traços de personalidade e história extremamente similares aos de Wayne, mas há algo mais profundo.

Nesse ponto a perspectiva de Jung vem a calhar. V, ao se reduzir a uma máscara, torna-se justamente aquilo que uma sociedade fascista, um estado totalitário espera transformar os seus cidadãos. Fundamentalmente, V e seus esforços, se confundem com o fascismo que ele combate, eis o perigo de encarar o abismo, como salientou certa vez Nietzsche. A máscara iguala a todos, massifica, paradoxalmente (e aí está a mensagem insidiosa) tanto V quanto Wayne são homens extraordinários e extremamente talentosos. O gênio é algo raríssimo, mas o talento possui uma recorrência estatística, e o indivíduo talentoso tem a possibilidade de se tornar uma personalidade diferenciada o que é da máxima importância para felicidade de um povo. Quando se tenta nivelar a massa do povo como se este fosse um rebanho, suprimindo o talento, isso leva à catástrofe, pois se o que se destaca é nivelado, perdem-se todos os pontos de orientação e aparece o desejo de ser conduzido. Eis a mensagem fascista insidiosa nos dois filmes, o talento pouco importa, importa um dado coletivo impessoal e que a todos nivela: a máscara. Em Homem de Ferro, o talento é mostrado na figura de Starke como sua caricatura: narcisismo, hedonismo e individualismo no sentido liberal burguês. Em Super-Homem, o homem médio, de tão massificado sequer consegue enxergar a sua face no extraordinário kriptoniano, ele é um outro, uma alteridade absoluta, literalmente um alien. Como aponta Jung, o homem médio desconfia e suspeita de tudo o que a sua inteligência não pode atingir. Mesmo sem máscara, o homem de aço é irreconhecível quando se afasta do rebanho, da igualdade, da massa.

O individuo (na perspectiva psicológica que não se confunde com a noção liberal burguesa) é o verdadeiro portador da realidade, em oposição ao homem “normal” irreal. Os fatos reais se evidenciam em sua individualidade, a realidade absoluta se caracteriza por sua irregularidade. O indivíduo é a exceção e a irregularidade relativa, todavia a imagem estatística do mundo tem o poder, segundo Jung, de reprimir o fator individual em favor de unidades anônimas que formam uma massa, e o ápice desse processo é o conceito abstrato do Estado, entendido como princípio da realidade política, o que conduz, fatalmente, a que a responsabilidade moral do indivíduo seja substituída pela razão do Estado. A única vida real, a vida individual, perde todo o seu sentido e finalidade, ficam barrados a diferenciação moral e intelectual. A decisão moral é retirada do indivíduo, sua responsabilidade moral é substituída pela razão de estado.


O grau de liberdade em empírica é proporcional à extensão da consciência. Sem a diferenciação consciente, se, para usar a metáfora do filme, qualquer um realmente pode ser o Batman, estamos diante da igualdade num sentido pernicioso de nivelamento e massificação. Os indivíduos são iguais apenas na medida em que são amplamente inconscientes. Quanto mais inconsciente mais alguém é capaz de se adaptar a conformidade. Para Jung, quanto mais consciente de sua individualidade, mais acentuada se torna a sua diferença em relação aos outros e menos corresponderá à expectativa comum, ao mesmo tempo, sendo capaz de perceber conscientemente essas diferenças (a igualdade inconsciente significa também a inconsciência justamente dessas diferenças) será capaz de estabelecer relações com outros indivíduos aceitando a existência de diferenças. A consciência individual é sempre mais diferenciada e ampla, assim pode perceber as diferenças e se emancipar das normas coletivas. O homem médio, inconsciente de suas diferenças reais, é incapaz de ver a diferença personificada no Super-Homem, por isso ele não precisa de máscara. O importante aqui é perceber que à medida que aumenta a diferenciação individual da consciência, diminui a validade objetiva de suas concepções, surge espaço para a aceitação da diferença. Para o homem médio, em larga medida inconsciente, verdadeiro e válido é aquilo em que a maioria crê, pois confirma a igualdade de todos (igualdade que se baseia na inconsciência, na identidade inconsciente entre sujeito e objeto, logo, não passível de ação moral).

Sem a consciência as coisas vão menos bem, para que exista a consciência do eu, o indivíduo no sentido Junguiano, é preciso que o eu se diferencie dos outros e apenas onde ocorre essa distinção é possível haver relacionamento pessoal, do contrário nos tornamos vítimas do automatismo inconsciente, o que abre um campo fértil para todo o tipo de contágio psíquico, e não nos permite ter um esteio interior para não sucumbirmos às pressões externas. Muitos compreendem mal a noção liberal de isonomia, somos todos iguais perante a lei, justamente essa igualdade se funda na existência da diferença e visa a manutenção da diferença. os diferentes são, diante da lei iguais, mas há um equívoco comum de que "sermos iguais no estado de direito" significa a supressão da individualidade, daquilo que foge ao cânone psíquico coletivo, a norma, quando na verdade isso caracteriza o fascismo. Infelizmente, como afirma Zizek, vemos cada vez menos "individualismo" no capitalismo e mais e mais massificação, e talvez a sociedade fascista do futuro seja mais próxima da Itália de Berlusconi do que do mundo do romance 1984. Campbell denominava essa situação, em que o indivíduo desaparece em favor do coletivo de "terra devastada", segundo ele.

E o que caracteriza a terra devastada? É a terra em que todos vivem uma vida inautêntica, fazendo o que os outros fazem, fazendo o que são mandados fazer, desprovidos de coragem para uma vida própria. Esquecem-se que são seres únicos, cada indivíduo sendo uma pessoa diferente das demais.  A beleza de uma terra rica está exatamente na convivência dos diferentes, não na mistura deles. Se temos um lugar ou uma era em que todos se alienam e fazem a mesma coisa, temos a terra devastada (...)

O anonimato da máscara, a despersonalização e o nivelamento a que ela convida são as bodas com o abismo. São o abandono da possibilidade de diferenciação psicológica, moral e espiritual, da possibilidade de uma psicologia individual, consciente, capaz de uma ação moral mais livre e desembaraçada, para a psicologia da massa. Na massa não há relação individual, e tão pouco respeito pelo indivíduo, pela diferença, mas apenas a suposição de que seu próprio psiquismo possui validade geral e que necessariamente se encontra em todos os demais, agindo-se sempre com preconceito e desprezo pela diferença. Nesse tipo de psicologia vive-se num ambiente de profunda inconsciência e ao invés de relações genuínas entre sujeitos, entre indivíduos, há apenas identidade e projeção. O talento, justamente aquele que aponta para a diferenciação, pois todo progresso genuíno se inicia pelo indivíduo, não importa perante a máscara, eis a mensagem ideológica insidiosa por trás das máscaras desses filmes.