sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

TRINTA E TRÊS

Esse mês completo trinta e três anos, nasci no ano de nosso senhor de 1978 no mês de dezembro às oito horas da manhã, ou no ano de 5739 no dia 17 de Kisvet, pelo calendário judaico, ou ainda no ano do cavalo de madeira, no mês do rato e na hora do dragão, pelo calendário chinês. Em todos os casos, faz trinta e três anos que por algum motivo, ou motivo nenhum, eu nasci.

Resolvi, por já estar vivo há um tempinho, escrever um balanço da minha vida, o que fiz de bom e ruim, e o que mudou e permaneceu desde o fatídico dia em que uma série quase infinita de causas e condições me colocou nesse mundo. Nada ambicioso como uma autobiografia, não, longe disso, no máximo uma “autocrônica”, se é que isso existe, se não, considerem o neologismo criado.

Talvez seja interessante falar primeiro um pouco do presente, afinal, eu me recordo bem melhor dele... Pois bem, fui casado – a rigor não fui casado, mas “amancebado” ou “junto” como minha ex sempre me lembrava com desgosto – foram, ao todo 14 anos de relacionamento, dos 16 aos 30, até ela me dar um “pé na bunda”, justo por sinal. Tive um filho, a melhor coisa que já me aconteceu, ele nasceu no mês seguinte ao que eu nasci, janeiro e se parece comigo fisicamente, quase um clone, e também psicologicamente, é um moleque inteligente e que gosta de livros. Seu nome é Ícaro, um nome grego, como o meu. Fazia questão que seu nome fosse grego, e, das duas listas que fizemos de nomes esse era a única coincidência. Muitos acreditam que meu nome, Heráclito, se deve ao fato de meu pai ser um historiador, ledo engano. Se dependesse dele me chamaria Domingos sina terrível que coube ao meu meio irmão Iago Domingos.

A história do meu nome é deverás interessante, é o nome do meu bisavô. Um dia eu estava sentado à mesa lendo enquanto almoçava e minha avó se dirigiu a mim nos seguintes “seu Heráclito, deixe para ler depois de comer seu Heráclito”, o que eu achei estranho pelo tom de subserviência e respeito, antes mesmo que eu formulasse qualquer pergunta ela disse “igual ao pai do seu avô, ele também só comia lendo”. Pois o fato é que, eu nasci num dia 17 de dezembro, quis o destino que fosse o aniversário de morte de meu bisavô, o pai do meu avô materno. Um italiano chamado Heráclito Limonge, de cabelos pretos e olhos muito azuis, bem apessoado e de ombros largos, que ao chegar ao Brasil junto da família, mudou seu sobrenome para Aragão. Ele era um homem de livros, sério e grave, comerciante de posses que viajava muito e falava vários idiomas. Meu avô, graças a deus, não permitiu a tal história do Domingos e me deu o nome de Heráclito em honra à memória de seu pai, pelo que lhe sou muito grato, pois o nome me cai bem.

Lembro que meu tio Nilo, irmão do meu avô, e que era um homem viajado, tendo sido da marinha de guerra – como o meu avô – e depois da marinha mercante, sempre utilizava imprecações em italiano, e ambos, ele e meu avô eram ferrenhamente anti-clericais, meu avô nutria um desprezo profundo pela igreja católica o que me rendeu ótimos momentos. Minha avó, apesar de ser de família marrana e benenucin (Carvalho), ela é tão católica quanto alguém pode ser, e nos fazia ir à missa aos domingos, eu passava a maior parte do tempo do lado de fora com o meu avô, que se recusava a entrar tomando picolé ou comendo pipoca, depois havia uma quermesse e algumas senhoras vendiam uma salada que me intrigou por anos a fio! Ao invés de ser feita de pedaços cortados retangulares de frutas, eram pedaços esféricos, e aquilo aguçava a minha curiosidade, nem podia imaginar como conseguiam fazer aquilo! Creio que toda a minha curiosidade científica deriva desse meu espanto diante dessa salada de frutas tão inusitada, e saborosa.

Tenho ainda outras lembranças interessantes da minha infância, eu aprendi a ler aos 4 anos, antes de ir para a escola, e a primeira coisa que li sozinho foi uma revista dupla do Tarzan e , virando-a ao contrário, era do seu filho barzan eu acho. Eu a sabia de cor e, mesmo hoje, se fechar os olhos consigo folheá-la em meu espírito. A história do Tarzan dizia respeito a um castelo medieval na selva, feito de madeira e não de pedras, e a outra, era sobre trabalhadores escravizados numa mina que eram salvo pelo filho do Tarzan. Mesmo sabendo ler, eu gostava que minha mãe lesse para mim e pedia que ela o fizesse, me recordo dela deitada numa rede, lendo com má vontade e pulando certas partes, e, como eu sabia a revista de cor, pedia que ela lesse também essas passagens “acidentalmente” omitidas. Minha mãe era professora e um dia, nas minhas férias, eu devia ter sete ou oito anos, ela me trouxe uma caixa de papelão, quase do meu tamanho, cheia de livros. Essa caixa ficou em um quartinho na parte de trás da casa dela, e eu passei as minhas férias inteira sentado ao lado dela, assim que terminava um livro eu pegava outro, li todos os Xistos no espaço e similares, lembro de uma história com duendes parecidos com os smurfs, e de uma história sobre peixes, pedras e plantas de um rio lutando contra uma fábrica poluidora.

Quiseram os deuses que, em minha casa houvesse um exemplar, que tenho até hoje, parecido com uma bíblia, com todos os livros infantis de Monteiro Lobato. Dos 8 aos 9 anos eu li tudo o que ele escreveu. Esse livro permanecia aberto no sofá da sala, na página em que eu havia parado e, assim que chegava da escola, largava minhas coisas em qualquer canto e me deitava e ia ler, os doze trabalhos de Hércules, o Minotauro, meu primeiro contato com mitologia, história e filosofia se deu graças a esse livro, graças a Monteiro Lobato, um dos poucos ídolos que tenho. Quando terminei de ler pela segunda vez, achei na minha casa uma versão ilustrada da bíblia, chamada bíblia para os jovens, ela era ilustrada com pinturas renascentistas que imediatamente me fascinaram, li todo o antigo testamento e, quando fui ler o novo, não tinha nem dez anos, eu achei chato e incompreensível, e posterguei sua leitura pelos próximos vinte anos.

Mas nem só de leituras foi a minha infância, aos seis anos minha mãe me matriculou no Judô. Minha mãe era uma ardorosa fã de Bruce Lee, devido a isso, quis que eu praticasse artes marciais, coisa que faço ininterruptamente desde os seis anos. Minha faixa azul (fiz 3 anos de judô) dava mais de três voltas na minha cintura. Lembro de um campeonato que participei, lembro de uma vez meu sensei conversar conosco sobre defesa pessoal (há época, e ainda hoje lembrando dessas palavras, acho o que ele disse bem bobo) lembro de adorar os saltos e rolamentos e de como minha mãe me atrapalhava nos treinos me chamando e dando tchauzinho a toda hora, e me recordo vivamente de uma vez em que meu sensei fingiu que eu o atingia com um golpe e saltou sobre a minha cabeça caindo estatelado do outro lado, ele parecia um gigante passando por sobre mim. Na minha adolescência, eu achei minhas antigas faixas, e percebi que devia ter sido um garotinho bem miúdo, minha faixa que dava voltas e mais voltas na minha cintura, agora que já era um rapazinho nem mesmo fechava na minha cintura, aquilo que espantou bastante.

Ainda criança, me recordo vivamente da morte de Tancredo Neves. Quando eu nasci, o Brasil ainda viva uma ditadura militar, o pior já havia passado e esse regime estava nos estertores de morte, que culminaram com as diretas e a eleição (ironicamente indireta) de um presidente civil de transição, Tancredo. Me recordo que a televisão transmitiu os rituais fúnebres do presidente, e eu me lembro vivamente de um rápido diálogo entre meu avô e meu tio Nilo (tio avô na verdade) o meu avô disse “se fosse o Maluf, ao invés de estarem chorando estariam soltando fogos”, levei quase uma década para começar a compreender isso. Na minha infância, vivíamos sob a sombra de uma inflação galopante, herança das políticas econômicas do senhor Delfim Neto, e presos a uma dívida externa tida como impagável, que nos mantinha em genuflexão permanente diante do FMI. Meu avô tinha três empregos, ele era radiotelegrafista, uma profissão que não existe mais, e todos os meses fazia compras para o mês inteiro, às vezes para mais de um mês, eram fardos de muitos quilos de arroz, açúcar, sal, feijão, tudo comprado em enorme quantidade, pois o preço subia mais rápido que o salário, e mudava de um dia para o outro. Vi a moeda mudar muitas e muitas vezes, cruzeiro, cruzado, cruzado novo, unidade real de valor, real. Tenho lembrança de uma conversa entabulada na segunda série com um colega chamado Daniel Teófilo, disse a ele que minha mãe ganhava um milhão de cruzeiros – um milhão, nos filmes americanos era muita grana! – mas ambos dissemos quase ao mesmo tempo que, apesar do número chamativo, aquele valor não significava nada, e não comprava muita coisa. Naquela época, ganhava-se muito dinheiro com a poupança, e bancário era uma profissão e tanto, era gente de muitas posses, pois os bancos lucravam rios, ou melhor, oceanos de dinheiro com a miséria alheia. Quando a inflação foi finalmente contida, essas pessoas que viviam na bonança tiveram suas vidas arruinadas, conheci vários deles.

Minhas memórias estão sempre se voltando para os meus avós maternos, não é ocioso explicar o motivo disso. Quando eu tinha seis anos de idade meus pais se divorciaram, e só voltei a ter algum contato com meu pai cerca de onze anos depois. Para não ser injusto, acho que nesse período eu o vi umas duas vezes, me lembro bem de uma delas, era dias dos pais e eu tinha feito uma lembrancinha no colégio para dar para o “papai”, calhou que ele estava lá, na casa da minha mãe e ficamos sozinhos por uns dez minutos e eu entreguei o presente, até hoje me espanta a frieza e insensibilidade que ele demonstrou, simplesmente agradeceu e me devolveu o presente. Quem me criou, na realidade, foram os meus avós maternos: Hermengarda e Aragão. Quando era bem pequeno, talvez até mais jovem do que o meu filho é hoje, eu tinha uma doença que me fazia ser hospitalizado sempre, minha mãe diz que se chamava “crise de garganta”, sabe-se lá deus o que é isso. Me lembro vivamente de uma dessas internações, estava muito fraco, vestindo um pijama vermelho xadrez e me colocaram num carro para ir ao hospital, me recordo também, e essa é talvez a memória mais marcante da minha infância, que estava no hospital, numa dessas internações e acordei no meio da noite, estava faltando energia e tudo estava escuro como breu. Chamei pelo meu pai, mas a voz que veio da cabeceira da cama foi a do meu avô, ele sempre esteve lá quando eu precisei, e meu pai não foi mais do que uma ausência.

Quando meu filho teve que se submeter a uma pequena cirurgia, em virtude de uma hérnia comum em crianças, eu fiz questão de que, quando ele abrisse os olhos, eu estivesse lá, que eu fosse a primeira pessoa que ele veria. Queria ser como o meu avô e não como o meu pai. Ironicamente, quem me fez ver que meu pai verdadeiro fora meu avô, foi meu pai biológico. Estávamos em meio à campanha para deputado estadual e chegamos cedo para um café com sabe-se lá deus quem, o local estava deserto e começamos a comer, estávamos só nós dois, os seguranças ficaram do lado de fora. Para puxar conversa ele me perguntou “como está o seu pai?”, anos de estudo de psicologia me fizeram pegar o ato falho na hora, ao invés de me chatear, o que seria normal, pontuei “quem? O senhor?”, “não”, insistiu ele “o teu pai, como ele está”. Eu já sabia que ele estava perguntando sobre o meu avô, mas insisti “você está bem na minha frente”, “não” prosseguiu ele em sua inconsciência, “o teu pai”, “está falando do meu avô Aragão?” ele fez um prolongado silêncio e encarou pateticamente o vazio e depois disse “sim, sim, o seu avô, como ele está”, “meu avô morreu pai” respondi a ele.

Meu pai de mentira, ou biológico se preferirem, é uma figura interessante, doutor em história, professor da UFC, vice-governador e por aí vai. Por muito tempo me senti oprimido por ele, no sentido que ele representava algo que eu deveria ultrapassar para não ser mais um medíocre. Na faculdade, cursei história na UFC, as pessoas associavam meu sucesso acadêmico ao fato de ser filho dele, o que me aborrecia, meus amigos faziam troça desse fato. Ao mesmo tempo, me deixava satisfeito quando algum professor comentava “nossa, você fala melhor do que o seu pai” ou “você escreve bem melhor do que ele”. Durante a época da campanha eleitoral nos reaproximamos, e trabalhei arduamente para ele, sem receber um vintém. Por essa época descobri que ele não passava de um homenzinho fraco, covarde e pusilânime, me senti um pouco desapontado e confuso, mas ao mesmo tempo aliviado. Nunca houve competição de nenhum tipo, ou meta externa a ultrapassar, como na parábola budista da pessoa que se assusta ao ver uma corda e pensa tratar-se de uma cobra. Também me fez ver, que a realização humana não se limita a realizações exteriores, a títulos e posses, Buda teve tudo isso e abriu mão justamente para se realizar. Foi estranho perceber que tudo o que a minha mãe tinha me dito durante todos esses anos era a mais pura verdade, e não simplesmente veneno e mágoa. Meu pai de mentirinha não passava de um egoísta, interesseiro, sem escrúpulos e um sepulcro caiado. Ele é um ótimo político para os padrões brasileiros, além de tudo é preguiçoso e incompetente.

Certa feita, tive uma conversa com meus alunos, quando ainda lecionava no segundo grau, quando eu era meninote não existia internet, e só existiam telefones fixos que custavam muito caro, e os telefones públicos eram realmente necessários. Eu vi surgir os videogames, tive um atari e um odissey (o único com teclado alfanumérico), vi surgir a fita VHS e a era de ouro das locadoras (hoje feridas de morte pela internet e TV a cabo), presenciei o surgimento do CD, estava no ensino médio nessa época, e parecia algo sensacional! Ainda meninote tive um CP400, um computador sem tela (ligava na TV), sem HD (grava-se em fitas cassete), sem sistema operacional (qualquer coisa tinha de ser programada em Basic), muito antes do DOS. Vi surgir os Pcs, o DVD (uma gravadora de DVD custava uma fortuna!), vi os primeiros celulares, os velhos “tijolões”, e o aparecimento da TV a cabo. Antes da internet, ser fã de animes era muuiiito difícil, me recordo dos amigos que tinham coleções de fitas VHS com animes, qualquer um servia, pois era uma dificuldade para encontrar. Logo que chegou a internet, ela era discada, e vivia caindo. Existiam até mesmo programas que eram “discadores” para vc não ter que se dar ao trabalho toda a vez. Vi os disquetes, hoje extintos, inclusive os Floopy disc, que mofavam. Era uma trabalheira instalar o Windows com 24 disquetes, e quando um falhava? Em minha curta vida presenciei muitas coisas, a queda do muro de Berlim e o fim da URSS, o fim de uma era. Revoluções no mundo digital e das comunicações, revoluções de costumes entre outras. Mas se descobri algo nessa minha curta vidinha, é que o que nos faz humanos nunca muda.

Meu fascínio por mitologia vem de longa data, e, mais ou menos aos 9 anos, eu adorava ler sobre os deuses e deusas egípcias, e me perguntava como as pessoas podiam acreditar naquele tipo de coisa (anacronismo aos nove anos tá valendo), por acaso, enquanto me perguntava eu via pela TV uma reportagem sobre romarias e devoção popular e algo me disse, “cara, tá vendo isso, é a mesmo coisa, ao invés de deuses egípcios, santos”, foi uma descoberta e tanto para mim naquela idade. Isso permaneceu fermentando no meu espírito até que abandonei a faculdade de veterinária (história para outro dia) e fui fazer história. Faltei a primeira semana de aula, pois estava acamado, e meu amigo Filipe Jesuíno me emprestou um livro, que ironicamente ele não lera ainda “as máscaras de deus: mitologia primitiva”, esse livro mudou a minha vida para sempre. Pouco tempo depois, meu irmão mais novo ingressou no curso de psicologia e meu amigo Filipe emprestou a ele “O Homem e seus símbolos” de C. G. Jung, isso deve ter sido em 2000 ou 2001. Ele nem leu, deixou por ali jogado, eu como leitor compulsivo que sou, li, novamente minha vida estava modificada para sempre... Isso me lembra a lenda sobre como conheci o Filipe (ele nega), tínhamos 14 ou 15 anos e estávamos na casa de um amigo comum Adriano, vulgo Maclarry, e sobre a cama do quarto dele estavam várias revistas de mulher pelada, eu olhei para uma das capas e perguntei “essa é a chicholina?” ao que ele respondeu “não, é não”, “tem certeza?” insisti “tenho sim, a chicholina eu reconheço de longe”, veja como surge uma bela amizade, sob os auspícios de uma atriz pornô do leste europeu.

Já escrevi muito, e ainda poderia falar sobre muitas outras coisas, meu tempo de colégio, meus treinos como artista marcial, meus estudos, a faculdade o mestrado, muita coisa, mas sinto que por hora chega, senão deixa de ser uma “autocrônica”. Minha professora de budismo, a venerável bikkuni Anizamba Chozom, sempre me admoesta a falar da minha própria experiência, das minhas emoções, do que eu penso, e não sobre Aristóteles, Jung, Freud ao algo do tipo. Bom, estou tentando, se estou conseguindo ou não, deixo a pergunta em aberto, como disse certa vez uma pessoa que gosto e respeito bastante, meu amigo Ken, “a resposta é a traição da pergunta”, talvez ele esteja certo...