sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

A Desolação de Smaug

O filme o Hobbit a desolação de Smaug é longo, com quase 3 horas de duração, mas está longe de ser um filme cansativo. É interessante notar que, com a segunda parte da trilogia baseada na obra O Hobbit de J.R.R. Tolkien, inadvertidamente, a saga do anel torna-se semelhante à famosa aventura cinematográfica Guerra nas Estrelas. A segunda trilogia veio primeiro, e só depois chegou aos cinemas à primeira parte da aventura, e o segundo filme de uma delas não termina, mas se encerra abruptamente sem um final.
Semelhanças à parte, o Hobbit é, em geral, uma boa adaptação cinematográfica, pecando, a meu ver, em apenas dois quesitos. É possível notar, aos espectadores que leram o livro e viram a película, muitas diferenças entre a obra e o filme, coisa natural em se tratando de uma adaptação de uma obra literária para a linguagem do cinema. Há uma personagem, Tauriel, que não existe na obra de Tolkien, e Legolas, que, a rigor, esteve presente nos acontecimentos do Hobbit, mas não é citado ou tem qualquer papel destacado, é um dos heróis dessa continuação. As duas escolhas me pareceram acertadas. Legolas possui uma legião de fãs, e, na segunda parte da trilogia, é responsável por algumas das cenas de ação mais estonteantes. Tauriel vem sanar o problema da quase total ausência de personagens femininos de destaque, e Evangeline Lily está à vontade na pele da elfa. O triangulo amoroso impossível entre um dos anões, a elfa de casta baixa e o príncipe Legolas, em nenhum momento atrapalha o desenrolar da trama, e acrescenta um elemento ausente na obra original e que ajuda a traduzir o livro para a linguagem de um Blockbuster.
Muitas passagens foram cortadas, mas isso ajudou a tornar o roteiro mais enxuto e o filme mais ágil, e muitas partes foram consideravelmente encurtadas. Gandalf não usa, no filme, seu estratagema para convencer Beorn a aceitar tantos convidados em sua casa, e o próprio Beorn tem uma participação bem mais modesta, mas importante. A longa e angustiante estadia na floresta é bem mais rápida nas telas do cinema e Bombur não caiu no lago do esquecimento. Esse detalhe, assim como outros que aludirei, mostram um esforço deliberado dos roteiristas de afastar a linguagem do filme daquela do mito e do conto de fadas, que é uma característica marcante do livro. A luta com as aranhas é rápida, e sem o estratagema da Bilbo e sua musiquinha “aranhoca boboca”. Existe aqui um detalhe, no livro as aranhas falam, mas no cinema, apenas com o anel do poder Bilbo pôde compreender a fala das malévolas criaturas. Não há, igualmente, a cena do banquete dos elfos, que somem ao serem interprelados pelos anões, ou a escuridão ameaçadora, no lugar desses elementos há uma mágica de ilusão potente que confunde os aventureiros. A luta com as aranhas finda com a chegada dos dois elfos, Tauriel e Legolas, em uma cena de luta memorável, seguida pelo aprisionamento dos anões. Sua estadia na fortaleza do rei dos elfos é rápida na película, e logo são salvos por Bilbo, nesse ponto surge outra diferença, ao invés de sua fuga ser notada apenas quando já era tarde demais, os anões nos barris são perseguidos por elfos e orcs em uma cena de ação de tirar o fôlego.
Ao chegarem às margens, nossos heróis dão de cara com Bard, e, algo que há no livro, é bem mais explorado no roteiro: a sociedade e política dos povos da cidade do lago e o papel de Bard em meio a isso tudo. Surgem algumas outras diferenças, que denotam esse afastamento da linguagem do mito de que falei antes. A flecha negra de Bard é um arpão feito para matar dragões, forjado por anões e, ao invés de um arco, surge uma enorme balista de fabricação anã. Diferente do mito de Bewolf, em que Tolkien se inspirou, Smaug não possui um ventre macio protegido por gemas preciosas, com um único ponto fraco, mas uma escama faltando no peito. O Bard do filme, diferente do mesmo personagem na literatura, não fala com as aves, como Bewolf falava depois de provar do sangue do dragão.
O dragão é magnífico, e suas cenas com Bilbo memoráveis, os roteiristas preservaram um pouco do inteligente diálogo de xaradas entre o hobbit e o lagarto, e aludiram de maneira sutil ao poder hipnótico da voz possante da fera, mas aqui surge uma das minhas críticas. No interior da cidadela dos anões, o grupo tenta debalde lutar com a besta, em uma cena longa, cansativa e desnecessária, que nada acrescenta a um roteiro que, até esse momento, estava muito bem alinhavado.
Há um dado peculiar nessa adaptação. Com o livro foram tomadas muitas licenças poéticas, mas os anexos foram apresentados de maneira muito fiel, a não ser nas partes em que eram vagos. As cenas em Dol Gudur, protagonizadas por Gandalf são o ponto alto do filme, e a aparição do necromante vale por todo o filme!
Minha segunda crítica à película é a ausência da atenção à psicologia de Bilbo, que mesmo desempenhando um papel importante em momentos chave da trama, certamente não é o protagonista desse filme. No livro sua psicologia, seus conflitos, o embate entre seus lados Tuk e Baggins é magistralmente explorado, sendo o fio condutor de toda a trama. O proverbial Hobbit do título ocupa um papel destacado, mas dificilmente de protagonista. Nesse ponto, o diretor poderia ter tido um pouco mais de sensibilidade, se não para manter o foco na personalidade de Bilbo e seu desenvolvimento como herói, ao menos para manter seu ponto de vista como guia da ação.
Talvez não seja ocioso um esclarecimento, o termo desolação de Smaug não se refere a luta com a fera, ou a morte do dragão, mas a terrível destruição que ele causou a volta de seu covil, com cidades destruídas e florestas queimadas. Desolação significa ruína, devastação, aflição, e essas coisas foram causadas pelo dragão e não ao dragão, como alguns podem acabar pensando.
No mais, uma boa adaptação, um roteiro com poucos pecados, um filme, talvez demasiado longo, mas muito divertido! Trata-se de uma obra despretensiosa, que não foi pensada para agradar apenas aos fãs, com uma ação alucinante, ótimas atuações, uma releitura que atualiza a narrativa e, para o bem e para o mal, a afasta da linguagem mítica e, principalmente, um espetáculo visual dos mais impressionantes, além, é claro, de um Legolas ainda mais Legolas e, não nos esqueçamos, com os olhos com um tom de azul bem mais claro...

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

34

Eis que se aproxima o final do ano, o Hanukkah, o natal e, com eles, o meu aniversário. Este ano faço 34 anos. Sou um historiador, entretanto, ironicamente, tenho uma terrível dificuldade para registrar a passagem do tempo, de saber quando algo aconteceu ou há quanto tempo. É comum que eu nem mesmo saiba ao certo em que ano, ou mês estou, e, tinha muita dificuldade em lembrar a minha idade, que, afinal, muda todos os anos, anos esses que eu não sei bem quais são ou quando passam. Esta dificuldade me confina no presente, o que acaba por ser uma vantagem, pois me torna alguém não tão ansioso ou preocupado quanto às pessoas que vejo ao meu redor. É importante, todavia, ao menos algum grau de historicidade, de se saber, se não quando, ao menos o que se passou. Minha professora de budismo, Ani Zamba Chozom, costuma repetir que o nosso caminho espiritual é a nossa confusão mental, e nada mais. Por isso precisamos conhecê-la, examiná-la, tornar-nos amigo de nossos padrões habituais e neuroses, do contrário, estamos fadados a repeti-los. Freud falava em repetir, recordar e elaborar, e, Michel de Certeau, inspirado em Freud, dizia que o tempo da psicanálise é outro tempo, diferente do da história, nesse tempo o passado se mistura ao momento presente, sem a hierarquia de presente e passado tão habitual aos historiadores. Já Campbell, de quem sou discípulo póstumo, afirmava que a eternidade é o aqui e agora, o aspecto transcendente do momento presente, este mesmo ao qual a minha estranha psicologia me agrilhoa. O passado não existe e o futuro é uma ilusão, diz o aforismo Zen tão conhecido, mas eu invoco agora, por meio da magia das palavras o meu ano que se passou ao presente, mas como bom historiador, sei bem que se trata da minha imaginação sobre esse ano, pois a res gestae é para sempre perdida, vapor dos vapores, e toda a tentativa de reencontrá-la é vã, no entanto, o rememorar, essa atividade da fantasia, me é mais fácil por ser também escritor...

Este meu ano que passou começou há mais de um ano, começou em novembro do ano precedente, quando, após muitas de conversas pelo facebook, eu finalmente conheci a mulher que viria a ser a minha esposa. Para não ser mentiroso, eu já a tinha visto uma única vez antes disso, e depois nunca mais a vi ou tive notícias. Ela me procurou pela internet para falar de uma malfadada especialização que tentei criar, mas que, acabou por não acontecer. Começamos a conversar e, por fim, decidimos nos encontrar, no dia dos mortos, numa festa em uma boate, lá tudo começou. Me disse ela, algum tempo depois, que ouvira coisas variadas ao meu respeito, entre elas, que eu era arrogante, e um tanto propenso a grosseria, ouvira também dizer que eu era inteligente, e muito versado em psicologia complexa e que, nesse campo em particular, tinha muito a oferecer. Apesar de, naquela época e ainda hoje, eu nutrir uma certa desconfiança das pessoas que se dizem Junguianas por essas terras alencarinas, eu a tratei de maneira cordial e bastante polida, e não lhe dei mais atenção. Como é comum nesses tempos hipermodernos, ela passou a acompanhar minhas postagens, e, até mesmo, a se incomodar com a profusão de belas ruivas que eu sempre postava. O contato comigo, mesmo que virtual, desfez um pouco a imagem de arrogante grosseirão, mas, me disse ela depois, meus escritos foram os grandes responsáveis por demolir a minha fama de mau.

Começamos imediatamente a namorar, eu a pedi em namoro, e, algum tempo depois, não muito, semanas depois eu diria, ela me pediu em casamento. A desculpa que tivemos para nos encontrar influiu no pedido de casamento. Ela me pediu minha data e hora de nascimento, essa que se avizinha, pois é astróloga, e eu imediatamente lhe passei a data e a hora. O interessante é que, no dia anterior, em uma conversa com um amigo psicanalista, Rafael Lobato, ele dizia que, se um paciente lhe narrava um sonho com uma mulher e depois lhe dizia “mas essa não é a minha mãe”, se não era, agora é. Pois bem, ela emendou, dizendo que tinha curiosidade em saber o perfil das pessoas metidas com Jung na cidade, para que eu não pensasse que ela era apenas “mais uma a fim”, por essa época eu era bem popular. Bom, se não era agora é, eu entendi perfeitamente a mensagem e usei a desculpa do mapa para tomar um café e ter meu mapa natal explicado, ela, é claro, topou. De qualquer sorte, o tal mapa só foi lido para mim em Guaramiranga, no restaurante alemão que tem por lá, e, segundo o meu mapa, é tudo culpa do mapa, eu me casaria esse ano (tá vendo como astrologia funciona!), ao que ela completou “bom, se não for comigo vai ser com alguém”, ao que eu retruquei “quando você acha que é uma boa data, aí segundo a astrologia, para nos casarmos?”, e foi assim...

No mesmo dia que encontrei Roxane, também conheci alguém que se revelou um grande amigo Rodrigo “Passolargo”, e com ele venho transformando em realidade alguns de meus sonhos, e ajudando um pouquinho os dele, logo vocês terão notícias nossas... Esse ano eu também estive em dificuldades com um dos meus mais queridos amigos, Filipe Jesuíno, por algum motivo, e motivo nenhum, nossa amizade andava estremecida, até que chegou ao ponto onde quebraria ou ressurgiria ainda mais fulgurante. Talvez seja uma história interessante, eu comecei cursar a faculdade de Psicologia na instituição particular em que o Filipe lecionava, isso por causa de sua presença lá. Um dia, ele ia ministrar uma oficina sobre interpretação de sonhos, em que ele limitara escrupulosamente o número de participantes e, dera ordens expressas de impedir a entrada de quem não estivesse previamente inscrito. Na noite anterior ele me mandou uma mensagem, preocupado com a tal especialização (ela de novo), e por isso resolvi ir até lá falar com ele. Eu não sabia de sua preocupação com as vagas, e achei que poderia ver sua aula e depois conversávamos, afinal, começamos juntos a estudar Jung e o que ele ia falar era algo para neófitos, que pouco me interessaria em qualquer outra situação, mas ao chegar, ele me proibiu de entrar, para não quebrar suas próprias regras, ao sair eu fiz uma piada, na frente de um fulano que ele desgostava, que o irritou. Ele me ligou logo depois do término da tal oficina e tivemos uma conversa dura, seguida de uma conversa pessoal dias depois, ainda mais dura, mas depois disso, as coisas se ajeitaram. Nossa parceria de mais de uma década, logo, logo dará um novo fruto, pelo qual nós dois trabalhamos arduamente esse ano que passou. As coisas voltaram tão ao normal, que até voltamos a jogar RPG.

Já estando casado, e novamente as boas com meu velho amigo, minha antiga desconfiança com os “Junguianos” da cidade se mostrou acertada e, Filipe e Roxane foram vítimas da torpeza e falta de compromisso dessas pessoas, mas isso teve um desdobramento interessante. Filipe e Roxane pensam ainda sobre essa especialização malfadada, e meu amigo pediu a uma de suas alunas que pesquisasse pessoas interessadas, a resposta dela foi curiosa. Todas as pessoas interpeladas se mostraram interessadas, isso até ouvirem o meu nome, pois, segundo descobri, entre essas pessoas torpes que tentaram ludibriar meu amigo e minha esposa, eu sou tido como, segundo minhas própria interpretação, “grosso, feio e mau”. Disse a meu amigo a tal garota que o meu ensino era acintoso e fragmentário, o que me levou a refletir sobre o meu papel em meio a isso tudo, pois se alguém tem culpa do estado de coisas em que o opus junguiano se encontra, não são os farsantes e os charlatões que dizem professá-lo, mas as pessoas sérias que se mantêm em silêncio diante disso, em certo sentido, a culpa é minha. Neste mesmo ano, tive a oportunidade de ser tradutor de um maravilhoso yogacharia indiano, e, uma das coisas que ele disse me fez refletir ainda mais um pouco sobre tudo isso a que já aludi, ele disse que na concepção da yoga, aquele que é enganado ou ludibriado, é tão culpado quanto quem o ludibria. Isso em fez pensar longamente.

Esse ano que passou eu resolvi, no segundo semestre, deixar de lado a sala de aula, seja como aluno ou como professor. Mais de dez anos lecionando me cansaram para além do que é possível descrever com palavras, e o último semestre desse ano, que agora se esvai rapidamente, eu passei trabalhando para me tornar quem eu realmente quero ser, olhando, para usar a expressão de Neil Gaiman, para aquela montanha lá no horizonte aonde eu desejo chegar. Estranhamente, a despeito de minha decisão de me afastar, de me recolher, fui convidado várias vezes para falar em público, e, a cada uma dessas vezes, me pareceu que a minha máscara de vilão se rachava mais um pouco, o que foi algo inusitado para mim, mas, ao mesmo tempo, havia algo estranho nisso tudo. Em todos os outros meios que eu circulo, seja na política, artes marciais e por aí vai, além de respeitado, sou tido como um sujeito boa praça e, apenas no meio da psicologia junguiana, visto sob este prima negativo, o que, no fundo, é algo deverás cansativo, especialmente quando se está realmente interessado em estudar e pesquisar e não em mise en scène.


Por fim, eu me mudei de meu velho apartamento, mudei-me para o outro lado da cidade, para uma casa grande e confortável, próxima a um bosque e a uma reserva ambiental, onde ainda se pode ouvir os grilos e os pássaros, o que muito me agrada. Ao chegar ao final dessas memórias do ano que finda, creio que falei pouco de muito e muito de muito pouco. Minha dificuldade em colocar as coisas na devida ordem me força a um olhar mais introspectivo do ano, deixando de lado muito do aspecto social e político em que estive envolvido até o pescoço, mas toda a busca é uma busca de si, e o que talvez eu espere encontrar nessas memórias seja uma parte perdida de mim mesmo e que só se pode achar nas reminiscências e em nenhum outro lugar. Fiz muito e muito pouco esse ano, talvez faça mais ou quem sabe menos no próximo, quem pode ao certo dizer o que há de suceder? Especialmente este pobre escritor que quis o destino que estivesse preso ao presente, a este modesto escritor só resta à fantasia e as letras como refúgio, já que não posso me refugiar na ilusão do passado nem na inexistência do futuro só encontro guarida na realidade da fantasia, esta nunca me falha e, logo, não será mais apenas minha.

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

O Mestre e o Golpe com a Vara de Bambu



Eu tenho a sorte de ter estudado sob a tutela de grandes mestres, seja na seara das artes marciais, sejam mestres espirituais, muita sorte mesmo. Recentemente tive um ensinamento importante, em meio a vários outros, algo que muito me inspirou.  Estava eu recebendo ensinamentos de minha mestra de budismo tibetano, tendo eu chegado atrasado, quando, lá paras tantas, estando sonolento e cansado, abandonei a posição de lótus, que normalmente adoto nessas ocasiões, e me deitei meio de lado nos colchonetes com a cabeça apoiada em uma das mãos e o cotovelo nos colchonetes. Minha professora interrompeu o que dizia me admoestou severamente, por um bom tempo, sobre a minha falta de compostura diante dos ensinamentos. Eu rapidamente me aprumei e ela emendou no pito, uma explicação.
Disse-me ela, que no Zen, há um mestre que caminha pela sala de meditação com uma fina vareta de bambu, e que, ao notar que alguém cochila ou se distrai, se aproxima, e fica diante do aluno distraído, o aluno o reverencia, ele devolve a reverência se inclinando, e o fustiga violentamente em um ponto específico do deltoide por onde passa um nervo, esse golpe imediatamente acorda o aluno, que pode voltar a meditar. Segundo ela, esse é um papel de extrema importância, e requer uma enorme habilidade para se golpear na velocidade correta no ponto exato que causa o maior efeito, além de produzir um som de chicotada impressionante.
Mas o mais importante aqui, não é o fato em si, mas a intenção, o aluno é chicoteado com o fino bambu em respeito ao seu potencial de atingir a iluminação, ao se distrair, cochilar, ou qualquer outra coisa do tipo, ele está negligenciando seu potencial de se liberar para ajudar todos os seres sencientes a encontrar uma saída para o sofrimento e as causas do sofrimento. Fazendo isso ele se emaranha nas teias do samsara e deixa de lado sua natureza genuína. Ao receber o golpe do bambu, ele desperta de seu estado de indulgência, e pode voltar a se dedicar diligentemente a prática que irá libertá-lo de suas fabricações mentais e de suas emoções aflitivas, o golpe de bambu no nervo, que causa um som espalhafatoso, uma dor aguda, e uma sensação de profundo despertar do estado de desânimo ou cansaço é um ato de profunda compaixão, movido pelo desejo sincero de que o potencial daquele aluno se realize.
Funakoshi, pai do karatê moderno, em seus livros, sempre falava com admiração e reverência por seus mestres, sua gratidão a eles era imensa. Em um desses livros conta como Matsudaira, o ensinava em segredo nas madrugadas e que o fazia repetir exaustivamente o mesmo kata incontáveis vezes e, se percebia que em qualquer dessas vezes o jovem Funakoshi esmorecia, mandava que ele lambesse todo o tatami. Funakoshi tinha Matsudaira na conta de um dos maiores homens que ele teve a ventura de conhecer, e nutria por ele uma imorredoura gratidão. Em nossa insensatez julgamos que empatia e compaixão só podem se expressar por meio de atos carinhosos, desprezando a necessidade do despertar que apenas um preciso golpe de bambu pode trazer, um golpe dado em respeito ao nosso potencial. Funakoshi tornou-se o maior divulgador da arte e da ética de seus mentores, ele realizou muito de seu potencial. A maioria de nossos professores, em nosso tempo, não nutre mais qualquer respeito por nosso potencial e, se esquivam, sempre que podem, de nos despertar com um golpe preciso de bambu, isso é uma pena. Eu me sinto grato por todas às vezes, em que meus mestres, vendo em mim grande potencial, não demonstraram a tola piedade dos falsos mestres, e me fustigaram sem pena, na esperança de ver esse potencial florescer, espero que um dia, depois de também ter lambido os meus tatames, eu possa fazer como Funakoshi o fez, e ser uma encarnação e um exemplo vivo da arte de seus mestres que, nesse caso, se torna sua também.

terça-feira, 5 de novembro de 2013

AS ESTRELAS DE TEU PRÓPRIO DESTINO JAZEM EM TEU PEITO

O intuito desse escrito é elucidar o entendimento de Jung acerca da astrologia e do simbolismo astrológico, bem como a ligação, em termos psicológicos – bem mais íntima do que pode parecer a princípio – da astrologia com a mitologia. A relação da astrologia com a mitologia não é tão difícil assim de se perceber, mas, mesmo assim, merece um olhar mais cuidadoso. A relação da astrologia com a psicologia complexa, todavia, é menos evidente e merece uma elucidação mais conscienciosa. Logo, para poder levar a cabo essa empreitada, inicio, explicando o que significa mito na perspectiva de Campbell e Jung, elucidando qual o interesse da psicologia na astrologia.
Campbell possui uma definição divertida de mito que muito me agrada e eu sempre gosto de iniciar uma explicação mais geral sobre mitologia com essa definição, que tem a vantagem de ser sucinta, e, apesar de jocosa, ser bastante correta. Diz ele, que a mitologia é a religião do outro, e religião não é outra coisa senão mitologia mal compreendida. Essa incompreensão consiste em interpretar os símbolos míticos como se fossem referências a fatos históricos. Campbell também entendia a mitologia como uma organização de figuras metafóricas conotativas de estados de espírito que não pertencem definitivamente a este ou àquele local ou período histórico, embora as figuras elas mesmas possam sugerir uma localização concreta. Conquanto as mitologias nos falem de terras prometidas, paraísos terrestres, dos palácios dos deuses ou montanhas sagradas e proponham uma geografia metafísica, Campbell nos alerta que: “as metáforas apenas parecem descrever o mundo exterior do tempo e do espaço. Seu universo real é o domínio espiritual da vida interior. O reino de deus está no interior de você”. De maneira similar, Jung ao se referir à mitologia em texto de 1934, intitulado “Sobre os Arquétipos do Inconsciente Coletivo”, nos diz:

O fato de que os mitos são antes de mais nada manifestações da essência da alma foi negado de modo absoluto até nossos dias. O homem primitivo não se interessa pelas explicações objetivas do óbvio, mas, por outro lado, tem uma necessidade imperativa, ou melhor, a sua alma inconsciente é impelida irresistivelmente a assimilar toda experiência externa sensorial a acontecimentos anímicos. Para o primitivo não basta ver o Sol nascer e declinar; esta observação exterior deve corresponder - para ele - a um acontecimento anímico, isto é, o Sol deve representar em sua trajetória o destino de um deus ou herói que, no fundo, habita unicamente a alma do homem. Todos os acontecimentos mítologizados da natureza, tais como o verão e o inverno, as fases da lua, as estações chuvosas, etc, não são de modo algum alegorias destas, experiências objetivas, mas sim, expressões simbólicas do drama interno e inconsciente da alma, que a consciência humana consegue apreender através de projeção - isto é, espelhadas nos fenômenos da natureza. A projeção é tão radical que foram necessários vários milênios de civilização para desligá-la de algum modo de seu objeto exterior. No caso da astrologia, por exemplo, chegou-se a considerar esta antiquíssima scientia intuitiva como absolutamente herética, por não conseguir separar das estrelas a caracteriologia psicológica. Mesmo hoje, quem acredita ainda na astrologia, sucumbe quase invariavelmente à antiga superstição da influência dos astros. Ε todo aquele que é capaz de calcular um horóscopo deveria saber que desde os dias de HIPARCO DE ALEXANDRIA o ponto vernal é fixado em 0º de Áries e assim todo horóscopo se baseia num zodíaco arbitrário, porque desde essa época o ponto vernal avançou gradativamente para os graus iniciais de Peixes devido à precessão dos equinócios. (Jung, 2003, p.18, grifo meu).
A longa citação foi necessária, pois nesse texto, fortuitamente, Jung aponta juntamente com a explicação psicológica do mito, uma possibilidade similar e paralela à explicação do mito da forma como a psicologia compreende a astrologia. Logo, tudo o que eu falar aqui sobre a perspectiva Junguiana do mito, é igualmente válido para a simbólica dessa scientia intuitiva antiquíssima que é a astrologia, e que pouco ou nada tem a ver com a antiga superstição da influência dos astros, mas que representa, na realidade, de maneira projetiva, uma tipologia psicológica extremamente complexa. Entretanto, me adiantando um pouco, mas sem fugir totalmente a nossa linha de raciocínio, segundo Von Franz, em sua obra O Feminino nos Contos de Fadas, arquétipos são núcleos dinâmicos que fazem parte da estrutura do psiquismo, e que em virtude de sua força e sua vida parcialmente autônoma, surgem como figuras numinosas e foram, geralmente, personificados como deuses. Ainda mais interessante para nós é que:

Isso aparece com muita clareza no caso dos deuses astrológicos: entre os planetas, Marte representa tudo o que diz respeito à agressividade e à autodefesa, Venus ao sexo e assim por diante. Cada deus corresponde, no plano da imagem e do mito, a um estilo de comportamento instintivo específico. Dizer que um deus ou uma deusa está esquecido ou esquecida significa que um comportamento psicológico natural está sendo negligenciado ou recalcado. Seja por um artifício, seja por estupidez, deixou-se de levá-lo em consideração. (von Franz, 2010, p.50, grifei).
Vemos que tanto Jung quanto Von Franz não compreendem o mito, ou a astrologia, como mera alegoria. Um dos significados mais correntes para o termo, o substantivo alegoria (ἀλληγορία) é formado por ἄλλος “outro” e ἀγορεύω “falo”, no sentindo de que ao falar de uma coisa na realidade fala-se de outra. Na escola de Pérgamo já no século I a alegoria era utilizada como recurso exegético dos mitos inspirado na doutrina estoica, seu principal representante foi Crates de Malos que alcançou renome ao interpretar Homero. Crates interpretava em termos físicos as figuras divinas presentes na poesia Homérica, para ele Homero tinha a intenção de instruir sobre o cosmos através da alegoria. Nesse sentido, as figuras divinas não passavam de fenômenos astrológicos ou meteorológicos. A interpretação meramente alegórica nega a realidade da alma, e a interpretação psicológica é recente em virtude do estado de identidade que é indicado por Jung na longa passagem citada anteriormente. A identidade significa uma igualdade psicológica e é sempre um fenômeno inconsciente, e que é o fundamento da participation mystique, resíduo da primitiva indiferenciação psíquica entre sujeito e objeto. Na medida em que se não tiver tornado um conteúdo da consciência permanece preso a um estado de identidade com o objeto. O estado de identidade inconsciente atua por meio da projeção. Projeção é uma transferência inconsciente de um fato psíquico subjetivo para um objeto exterior, o que explica em termos psicológicos o fenômeno da alegoria, que antes da descoberta de um inconsciente psíquico, um dado existencial, irracional inalienável, ou, para utilizar outra formulação de Jung, o “fato psicológico real”, possuía valor heurístico. A identidade/projeção pode ser retirada, em 5 estágios sucessivos, tanto no plano individual, quanto na história das religiões. De acordo com von Franz, nesse processo a energia investida nos objetos exteriores retorna para a personalidade do eu. No mundo grego arcaico predominava o estado de identidade arcaica. Por volta do início das tradições históricas surgem imagens do começo da segunda etapa, o início da diferenciação, os deuses e espíritos podem se manifestar através da natureza, mas eles possuem uma existência própria. Já se vislumbrava também o início da terceira etapa, uma distinção moral, o homem julgava as ações dos deuses e se permitia julgá-las moralmente. Com o início da filosofia natural pré-socrática alterou-se a imagem do mundo mítico religioso dos helenos cultos, procurava-se o divino em um princípio do mundo (ἀρχή), e os deuses passaram a coexistir com essas ideias filosóficas, ou a ter suas existências negadas. Essa postura iluminística caracteriza a quarta etapa e culminou com a doutrina de Euhemeros, para quem, os deuses não passavam de personalidades históricas mortas e divinizadas. Em seguida vemos o esforço de um Teogenes de Region que tenta salvar a “antiga verdade” concebendo-a “alegoricamente” (simbolicamente na opinião de von Franz). Ele procurou traduzir os antigos mitos em uma linguagem filosófica nova, os deuses passaram a ser vistos como símbolos de objetos materiais, ou representariam características e estados psíquicos do homem (início da quinta etapa), Athena seria a sabedoria, Ares a paixão insensata, Afrodite o desejo, Hermes a razão e assim por diante. Esses estados que hoje veríamos como endopsiquicos eram percebidos ainda como “poderes externos”, como essas interpretações não estabelecem limites entre a substância psíquica e a substância material do mundo, elas recriam em parte, junto com a quinta etapa (da reflexão assimiladora), a primeira etapa da identidade arcaica.
Ou, trocando em miúdos, como diria Campbell, “o reino de deus está dentro de você”. Ainda segundo Campbell os mitos representam para uma determinada sociedade em uma determinada época um modelo. A mitologia é uma organização de imagens metafóricas da experiência, da ação e da realização do espírito humano no campo de uma certa cultura, e época, em certo sentido, a imagem mítica mostra a maneira como a energia cósmica se manifesta no tempo, mudam os tempos e também muda a forma de manifestação, mas permanece constante o fato de que essa energia cósmica, para empregar a expressão de Campbell, se manifesta. No que concerne aos deuses, na perspectiva de Campbell, eles representam o indivíduo em seu campo de ação, ao contemplar a divindade o indivíduo consegue uma força estabilizadora que o coloca no papel dessa divindade. A mitologia ajuda a identificar os mistérios das energias que exalam de você. Como vimos na perspectiva de von Franz, podemos traduzir psicologicamente a ótica de Campbell, psicologicamente muito precisa, que ao contemplar um deus se está trazendo para o campo da consciência um comportamento psicológico natural que, de outra maneira, estaria excluído da consciência, causando severos prejuízos a economia psíquica do indivíduo. Em certo sentido, a linguagem astrológica metafórica (simbólica), permite essa contemplação que pode trazer essa força estabilizadora. Cada deus corresponde a um estilo de comportamento instintivo específico. Em certo sentido, os personagens de mitos e contos de fadas, heróis e deuses, não representam um “eu”, no sentido psicológico do termo, eles carecem de vida real, individual e objetiva, os mitos são pistas para a união das forças em nosso interior. Os deuses são imagens de processos arquetípicos, e pode-se argumentar ainda, sobre essa força estabilizadora de que nos fala Campbell, que a maioria das dificuldades humanas, mesmo as neuroses e psicoses, se devem a um eu que não funciona em harmonia com a totalidade psíquica, ao desprezar os deuses, eles se tornam demônios.
De acordo com Campbell, e uma vez mais ele é de uma acuidade psicológica espantosa, os demônios são, na verdade, obstruções à expansão da consciência. Um demônio é um poder que existe em seu interior e que ainda não recebeu expressão plena, como um deus reprimido – da mesma maneira que indica von Franz – quem não consegue compreender um deus vê nele um demônio. De acordo com von Franz, o diabo personifica o princípio que entrava o progresso e procura suprimir qualquer evolução futura. Os termos do mito, deuses, deusas, diabos, demônios, são de uma precisão e agudeza psicológica muito maior do que os termos neurose ou histeria, pois, na perspectiva da psicologia complexa de Jung, a psique não é algo de arbitrário, e o fato psicológico real, é objetivo e autônomo. Certa feita, em uma conferência proferida na Inglaterra, Jung disse sobre os complexos que todos sabemos que os temos, o que parecemos não saber é que eles podem nos ter! O inconsciente pode –  e o faz com frequência –  subverter a hierarquia da consciência e subjugar o eu, que se vê impotente diante da fúria ou da maquiavelice mefistotélica dos processos inconscientes. Cada deus arquetípico representa uma carga dinâmica e explosiva, relativamente autônoma, incontrolada e incontrolável. A linguagem do mito é a língua franca da alma.

Os deuses são configurações de certas constantes naturais da psique e de seus componentes da personalidade emocional e imaginativa. Jung, como sabemos, designou essas constantes de arquétipos. Trata-se de estruturas inatas e implícitas, que sempre e por toda parte produzem pensamentos, imagens, sentimentos e emoções semelhantes no homem, paralelamente aos instintos, aos nossos impulsos específicos a ação. (von Franz, 1997, p.29).
Para Campbell o mito desempenha tanto para a sociedade quanto para os indivíduos quatro funções: mística, cosmológica, sociológica e psicológica. O mito cria uma ligação entre a consciência e o mistério do universo, fornece um quadro do universo, apoia e valida uma determinada ordem social e moral e, last but not least, ajuda a atravessar os diversos estágios da vida, do nascimento à morte. O mito não é simplesmente uma história falsa ou fantástica, ou uma explicação canhestra e pré-científica do mundo, ou história convertida em lenda. Mito não é o mesmo que história e isso precisa ficar claro. O mito é o transcendente na relação com o presente, além disso, o mito proporciona um campo onde você pode se situar. O que o mito faz para o indivíduo é apontar o transcendente além do terreno do fenômeno. A imagem de uma divindade pode assumir o aspecto de um animal ou homem, mas sua referência transcende a isso. Assim como Jung, e mesmo Tolkien, como apontei em outros de meus escritos, Campbell não considerava a imagem mítica como alegórica, o problema surge quando alguém tenta traduzir as imagens metafóricas (simbólicas) do mito para uma referência concreta, neste caso estamos na ordem da alegoria e não do mito. O mito torna-se opaco, e não mais aponta para o transcendente em relação ao presente. Reiteradas vezes, Campbell criticou crentes e ateus por um erro fundamental: não perceber o caráter metafórico do mito, sendo essa justamente a sua força. Alguém se torna um crente por acreditar que a imagem de um mito é um fato histórico, por não acreditar nisso, outra pessoa se torna um ateu, ambos estão fundamentalmente equivocados, e ambos se tornaram opacos, perdem a oportunidade que o mito genuíno traz de nos tornar transparentes ao transcendente. Conforme Campbell, quando você possui uma divindade como modelo, sua vida torna-se transparente ao transcendente. Abre-se a possibilidade de se viver uma vida genuína, em contato com sua natureza profunda e fundamental.
 A astrologia está repleta dos deuses e deusas do panteão grego, é importante salientar, todavia, que não existe apenas um tipo de astrologia. Na China, por exemplo, também se praticava a astrologia e esta era vista como uma ciência de vital importância. Certamente, no Reino do Meio, o sistema simbólico utilizado na astrologia era diverso, mas o que há de comum entre os dois simbolismos é que ambos são referências conotadas para as realidades da alma, para utilizar a fecunda expressão de Campbell. Mas psicologicamente, a alma contém todas as imagens das quais surgiram tanto à astrologia quanto os mitos, nosso inconsciente é um sujeito atuante e seu drama interior era encontrado pelo primitivo analogicamente em todos os fenômenos da natureza. Ainda sobre a astrologia Jung nos diz.

“As estrelas de teu próprio destino jazem em teu peito”, diz Seni a Wallenstein, dito que resgataria a astrologia, por pouco que soubéssemos deste segredo do coração. Mas até então o homem pouco se interessara por isso. (Jung, 2003, p.18).
Em termos psicológicos a astrologia é uma tipologia psicológica extremamente complexa e dinâmica, que se sustenta em um simbolismo mítico que associa estados endopsiquicos a fenômenos naturais cíclicos, e numa noção qualitativa do tempo – que difere de nossa noção científica do tempo como algo estritamente quantitativo. Convém salientar, como aludi em outro dos meus escritos, que um tipo é um modelo que reproduz de forma característica o caráter de uma espécie ou de uma generalidade. Em termos psicológicos, Um tipo é um modelo característico de uma atitude. Além disso, há o aspecto mais importante e mais complicado no interesse da psicologia complexa pela astrologia, segundo von Franz.

Como observa Jung, a astrologia é uma tentativa medieval de descrever o sincronismo de maneira científica, por meio da observação de acontecimentos celestes sincrônicos. As estrelas apresentam uma maravilhosa combinação de ordem e desordem na coexistência de acontecimentos regulares e irregulares, como os meteoros. (von Franz, 2010, p.214).
Sobre a sincronicidade, tratarei adiante. Recapitulando, para Jung, toda Mitologia, e o mesmo vale para a astrologia, é uma espécie de projeção do inconsciente coletivo. O mito, bem como a astrologia, são, antes de mais nada, manifestações da essência da alma. Ao afirmar tais coisas, é preciso que se deixe claro que não pretendo, assim como Jung não o pretendia, fazer psicologismo, ou afirmar que a astrologia se trata de mera superstição, e que pode ser reduzida a Psicologia in status nascendi. Não é disso que se trata e, procurarei esclarecer isso da melhor maneira possível. Recorro, uma vez mais, a uma citação de Jung sobre a astrologia para deixar claro qual seja o seu entendimento sobre esse tema. Peço licença ao leitor para aborrecê-lo, uma vez mais, com uma citação, que versa sobre aquilo que já repeti até aqui ad nausea. Entretanto, para deixar claro à perspectiva de Jung, faz-se necessária essa repetição.

Toda Mitologia seria uma espécie de projeção do inconsciente coletivo. É no céu estrelado cujas formas caóticas foram organizadas mediante a projeção de imagens, que vemos isto o mais claramente possível. Isto explica as influências dos astros, afirmadas pela Astrologia: estas influências mais não seriam do que percepções introspectivas inconscientes da atividade do inconsciente coletivo. Do mesmo modo como as constelações foram projetadas no céu, assim também outras figuras semelhantes foram projetadas nas lendas e nos contos de fadas ou em personagens históricas. Por isso podemos estudar o inconsciente coletivo de duas maneiras: na mitologia ou na análise do indivíduo. (Jung, 1986, p.90).
Como se vê, a Psicologia Complexa se interessa pelo mito, pois a linguagem do mito é a mesma língua do sonho e do inconsciente. O mesmo pode ser dito no que diz respeito à Astrologia, sua linguagem é a mesma do mito, e, assim como este, é a língua franca do inconsciente e do sonho. Essa maneira de se expressar metaforicamente também corresponde à mentalidade do primitivo, cuja linguagem não possui termos abstratos, mas apenas analogias naturais e não naturais. Nesse ponto, faz-se necessário sublinhar, que a psicologia do primitivo é caracterizada pela identidade arcaica (o que acontece fora, acontece também dentro dele, e o que acontece dentro dele, acontece também fora), e, que tal condição, não caracteriza apenas a consciência do primitivo, mas também, a consciência da criança e o inconsciente do homem civilizado. É preciso cautela, entretanto, para evitar controvérsias desnecessárias, pois, ao interpretar a Astrologia por um viés psicológico, não se está diminuindo essa antiquíssima scientia intuitiva. Ao dizer que a Astrologia é simbólica, eu afirmo de maneira radical a sua realidade, assim como os astros e a Astrologia, afirmam, na perspectiva de Jung, a realidade do psíquico.
Para Jung, a alma é o único fenômeno imediato deste mundo percebido por nós e, por esse motivo, a condição indispensável de toda e qualquer experiência, conditio sine qua non do mundo como objeto. Toda ciência é função da psique e qualquer conhecimento nela se radica. As únicas coisas que podemos experimentar diretamente são os conteúdos da consciência e, em certo sentido, a alma é a própria existência. Jung era um empirista, e não metafísico, como erroneamente teimam em lhe rotular, “[...] não sou um metafísico cuja tarefa é dizer o que as coisas são em si e por si, e se elas são absolutas ou algo semelhante.” (Jung), todos os objetos de que se ocupa a psicologia encontram-se dentro dos limites do experimentável. Se esses mesmos objetos, correspondem a uma entidade metafísica realmente existente isso não se pode responder, isto pelo fato de não podermos subir em nossas próprias costas para ver mais longe, ou seja, não podemos nos colocar em uma posição supra-psíquica para poder observar a psique de fora, não temos um ponto arquimediano. Ergo, em certo sentido, a pergunta pela influencia dos astros, como não se pode comprovar pela física, é uma questão metafísica, pré-kantiana, a despeito de Jung se inclinar a uma resposta negativa a esse questionamento. Mas, continuando Nós não vemos cores, ou formas, ou objetos, mas apenas luz. É necessário complicado sistema, mais fisiológico do que psíquico, para que tenhamos a percepção dos fenômenos, a percepção sensorial. A percepção nos diz que algo existe, não dos diz, no entanto, o que essa coisa é. Para isso existe um complexo sistema psíquico, que a psicologia alemã chamou de apercepção, que transforma os fenômenos da percepção em imagens psíquicas.
Jung procura fugir da concepção materialista de realidade, para ele, se algo age, atua é real. Certa feita, ao ser entrevistado por uma rádio inglesa, Jung causou comoção ao responder, ao ser questionado se acreditava em deus que, não acreditava em deus, pois ele sabia que deus existe. Como podemos compreender uma afirmação que parece tão ousada para um homem do século XX? Para a Psicologia não há resposta possível para a pergunta metafísica sobre a existência de deus, ambas as respostas, positiva ou negativa, são metafísicas e isto foge a seara de uma Psicologia científica, mas, independente do que afirmam à metafísica ou a teologia, em termos psicológicos, deus é um fenômeno real. A Psicologia não se ocupa com as coisas “em si mesmas”, como afirmação metafísica, mas exclusivamente com a maneira como os indivíduos as imaginam. Temos de ter sempre em mente, isso mais ainda ao afirmarmos que a realidade da Astrologia é fundamentalmente psíquica, que “A Psique é a entidade real em supremo grau, porque é a única realidade imediata” (Jung). Ao afirmar aqui que a Astrologia trata-se de um fenômeno fundamentalmente psíquico e simbólico, estou afirmando radicalmente a sua realidade, de uma maneira muito mais radical do que se me apoiasse na superstição da influência dos astros. Querer derivar, ou reduzir a Astrologia a essa influência, seria querer reduzi-la a um epifenômeno da gravidade e do magnetismo, o que é uma forma de manifestação insidiosa, a meu ver, do que Jung chamou de metafísica da matéria.
O que Jung chama de metafísica da matéria é uma “onda irracional da preferência sentimental e universal pelo mundo físico”, trata-se de uma prestidigitação intelectual, e um processo de enantiodromia de nossa visão de mundo, onde todo o valor se fundamenta na pretensa realidade dos fatos, tudo o que é extramundano se converte em realidade imediata. Trata-se de uma propensão, uma tendência sentimental que, inconscientemente, age com força incoercível. E transforma em realidade inquestionável o fato de que tudo provém de causas materiais, e não passava de presunção intelectual de nossos antepassados supor a existência de uma alma substancial, imortal, capaz de levar uma vida independente do corpo, ao invés de ter se dado conta de que se trata, na verdade, de algo de saboroso no cérebro, hormônios ou qualquer coisa fisiológica, que engendra, como epifenômeno, o psiquismo. Ambas as perspectivas são, entretanto, igualmente lógicas, arbitrárias, metafísicas e simbólicas. Temos uma tendência irresistível a considerar corretas e decentes todas as explicações que apelam para a matéria e as causas materiais (como a gravidade e o magnetismo), e a reconhecer como falso tudo o que aponta para uma interioridade invisível. Temos, principalmente no Ocidente, a tendência, unilateral, de crer que é “real” tudo aquilo que parece provir dos sentidos, em que o psíquico não expressa senão um efeito mequetrefe de terceira categoria, originalmente produzido por causas físicas, tendo a alma, sob essa ótica míope, apenas uma realidade indireta. Já no Oriente, a essência de todas as coisas se funda na psique e na realidade da psique. A matéria, que julgamos como critério supremo de realidade, é uma realidade indireta, não temos relação direta com qualquer objeto material, mas apenas com imagens que nos são transmitidas indiretamente, por meio de nosso sistema nervoso, a consciência é incapaz de perceber qualquer coisa material, aquilo que nos aparece como realidade imediata consiste em imagens psíquicas, vivemos diretamente em um mundo de imagens. O que quer que seja a matéria em si e por si nos é totalmente desconhecido, inconsciente.

A psique só não está onde uma inteligência míope a procura. Ela existe, embora não sob uma forma física. É um preconceito quase ridículo a suposição de que a existência só pode ser de natureza corpórea. Na realidade, a única forma de que existência que temos conhecimento imediato é a psíquica. Poderíamos igualmente dizer que a existência física é pura dedução uma vez que só temos alguma noção da matéria através de imagens psíquicas transmitidas pelos sentidos. (Jung, 1995, p.14).
O que eu creio ser um aspecto dessa tendência sentimental e irracional pelo mundo físico, é justamente a permanência da superstição da influência dos astros. Caso se trate de algo psíquico, não passa de uma fantasmagoria, é preciso que exista uma causa material externa “realmente existente”, nesse caso os planetas “reais”, o que reduz a Astrologia a um epifenômeno, muito esquisito, por sinal, da gravitação e do eletromagnetismo. É comum que se utilize o exemplo da Lua, que produz um efeito material, visível e palpável sobre as marés, e “logo” deve produzir sobre nós algum efeito que seja responsável por sua função no mapa astral. Mesmo que isso fosse verdade, esse efeito “físico”, só seria percebido indiretamente, como efeito psíquico, pois só vivemos diretamente num mundo de imagens, representações psíquicas, e a Lua real, que parece tão mais real do que se pensar em “um comportamento instintivo típico”, no fundo é algo que, por si mesmo, nos é absolutamente desconhecida, só temos dela uma complicadíssima representação psíquica. Por outro lado, creio ser absolutamente impossível asseverar que a gravidade ou eletromagnetismo de Pultão, possa ser responsabilizado por qualquer efeito na minha vida, e, mesmo a Lua ou o Sol, corpos celestes mais próximos de nós, dificilmente podem ser responsabilizados, como causa eficiente, pelos aspectos apontados pelo mapa. Apenas para citar alguns exemplos, a casa 6 está relacionada ao cotidiano, trabalho e saúde; a casa 4, família; a casa 7 relacionamentos; a casa 5 relacionamentos amorosos, paixão, diversão, criatividade e filhos. Não é à toa que o leigo julga difícil engolir a Astrologia, já que é altamente improvável que o eletromagnetismo de Urano possa ser responsabilizado pelo que ocorre no meu trabalho, ou pela minha relação com meus colegas. Estamos aqui, diante do mesmo dilema apontado por Campbell em relação às metáforas míticas. Parafraseando o mestre, alguns creem na astrologia, pois a enxergam de maneira denotativa, não metafórica, seus símbolos não se tratam de uma metáfora para algo que está em nosso interior, mas falam de uma exterioridade palpável, os que não creem na Astrologia o fazem por não acreditarem nesse mesmo sentido denotativo, ou seja que existe uma influência material dos astros sobre nossa vida. O irônico, na perspectiva de Campbell é que ambos estão equivocados, e ambos, ao perderem o sentido conotativo, o sentido vivo de metáfora, tornam a Astrologia opaca, e perdem, eles mesmos, a possibilidade de se tornarem “transparentes ao transcendente”.
Ao afirmar que a Astrologia é simbólica, não estou diminuindo sua força, ao contrário, afirmo essa força em sua mais elevada potência. O símbolo, para Jung é algo da mais elevada e sublime importância, a ponte para as maiores realizações do ser humano. Símbolos são tentativas de expressar alguma coisa para qual ainda não existe um conceito verbal e, nesse sentido, são capazes de expressar o indizível de maneira insuperável, significando a possibilidade e indício de um sentido mais amplo e elevado, além de nossa capacidade de compreensão atual. Quando digo que algo é um símbolo, ou simbólico, estou dizendo que esse algo é um desafio a nossa compreensão, o símbolo é sempre um desafio a nossa compreensão. Quando a consciência já galgou seus degraus mais elevados, somente por meio dos símbolos podemos entrar em contato com o novo, a linguagem do símbolo, repleta de pressentimento nos diz de forma eloquente; estou em condições de dizer mais do que realmente digo e compreendo para além de mim, e este é um dos mais belos legados de Jung.
Ele enxergou justamente isso na Astrologia, uma possibilidade viva de mostrar que mesmo em nossa tacanha e materialista sociedade ocidental, para quem a alma não passa de uma secreção do cérebro, como o é a bile para o fígado, que há espaço para essa “realidade da alma”. Por isso, já em 1928, ao discutir o tema do “homem moderno”, e pensar nas novas formas religiosas que se baseavam exclusivamente em fenômenos inconscientes, que brota da energia psíquica que reflui das formas obsoletas de religião, observa que em virtude desse fato, esses movimentos possuíam caráter genuinamente religioso, a despeito de sua pretensão científica, como parece ser o nosso caso aqui, pois a religião, assim como a política, estão altamente desacreditadas, e, a consciência moderna, nessas tentativas, se volta para a psique inconsciente, não como nas confissões religiosas tradicionais, mas no sentido gnóstico. Mais de uma vez, ouvi de astrólogos, que a Astrologia é uma ciência, sobre isso Jung nos assevera,

O fato de todos esses movimentos se revestirem de uma aparência científica não é simplesmente uma caricatura ou intenção de ocultar sua verdadeira natureza, mas sinal positivo de que estão realmente buscando ciência, isto é, conhecimento em estrita oposição à essência das formas ocidentais de religião, ou seja, à fé. A consciência moderna abomina a fé e consequentemente as religiões que nela se baseiam. (Jung, 2007, p.83).
Assim, mutatis mutandis, subjaz na Astrologia uma paixão religiosa, por dois motivos. O apaixonado interesse por essa scientia intuitiva brota dessa energia psíquica que reflui das formas desusadas de religião e, por outro lado, ela aponta com clareza o aspecto religioso da alma. Isto no sentido da existência de um aspecto numinoso no psiquismo, no sentido anotado por Jung, de uma existência ou efeito dinâmico, não causados por um ato arbitrário, mas, ao contrário, tal efeito se apodera do sujeito humano, que é sua vítima e não seu criador. Vemos, no interesse por esse psiquismo objetivo, que nos ultrapassa e que não pode ser reduzido em simples arbítrio, a forma mais patente de paixão religiosa na Astrologia, que o examina de maneira extremamente minuciosa e metódica, pois, para Jung, religião, em termos psicológicos, significa uma conscienciosa e acurada observação do numinoso. Por isso mesmo, adiante no mesmo escrito, Jung afiança,

E a questão de todo teosofista é: Que experiência poderei ter em graus mais elevados da consciência, isto é, além da minha consciência atual? Cada astrólogo se pergunta: Quais são as forças operantes que determinam meu destino, além de minha intenção consciente? E todo psicanalista quer saber quais são as molas inconscientes que atuam por trás de minha neurose. (Jung, 2007, p.84).
De acordo com Jung, o fato de, em 1928, se fazerem mil vezes mais horóscopos do que há trezentos anos é um sinal de que nossa época deseja fazer a experiência da psique por si mesma, anseia por uma experiência original e não pressupostos, a para isso se utiliza de todos os meios possíveis, seja a autêntica ciência e as religiões conhecidas, paradoxalmente, a despeito da “metafísica da matéria”, de uma maneira compensatória, a psique foi aos poucos exercendo uma atração e fascínio cada vez maior, o que explica o interesse pela Astrologia, trata-se do interesse por uma experiência, o mais direta possível, e na forma de um saber que não necessita de fé, dessas forças inconscientes que determinam o meu destino para além da minha vontade. A Astrologia mostra, de maneira dramática, em seus termos simbólicos, não a influência dos astros, mas a influência desse pano de fundo psíquico inexpresso, pois, nosso sofrimento, quando representado pelo inconsciente coletivo, surge sub specie aeternitatis. Foram palavras proféticas as proferidas por Jung em 1928,

Alguns educadores de estreita visão acreditavam até há pouco tempo que a astrologia era coisa ridícula do passado. Ei-la que surge agora, das camadas sociais mais baixas, e está às portas de nossas Universidades, das quais foi banida há cerca de trezentos anos. (Jung, 2007, p.85).
Passando agora aquele que é um dos aspectos mais importantes da Astrologia na perspectiva de Jung, a sincronicidade, devo frustrar o leitor ao lhe apresentar apenas algumas indicações a respeito desse tema, com o intuito apenas de afastar certos equívocos muito disseminados. A Astrologia, como já expus longamente, não se baseia no princípio da causalidade, mas em outro princípio, pois para certos fenômenos da psicologia profunda a causalidade se mostra insuficiente. A sincronicidade é uma manifestação psicológica paralela que não se relacionam de modo causal (a não ser que se acredite numa causalidade mágica), entretanto expressa uma foram de correlação diferente. Essa conexão baseia-se, essencialmente, na relativa simultaneidade dos eventos, donde o vocábulo sincronicidade. O tempo se apresenta como continuidade concreta, possuindo qualidades e condições basilares que podem se manifestar em locais diferentes simultaneamente, num paralelismo inexplicável pelo princípio da causalidade. Sobre isso Jung assevera,

A astrologia seria considerada um exemplo mais abrangente de sincronicidade, se ela apresentasse resultados universalmente seguros. Existem, entretanto, alguns fatos comprovados por ampla estatística, que tornam a astrologia digna de questionamento filosófico. (Sem dúvida, seu valor psicológico é inexorável, pois representa a soma de todo o conhecimento psicológico da antiguidade).
A possibilidade de se reconstruir o caráter de uma pessoa a partir do mapa astral na hora de seu nascimento, comprova a relativa validade da astrologia. Lembremo-nos de que o mapa astral não depende absolutamente da constelação astronômica real, mas é baseado num sistema de tempo arbitrário, puramente conceitual. Em decorrência da precessão dos equinócios, o ponto da primavera há muito se deslocou astronomicamente de zero grau de Áries, de forma que o zodíaco astrológico, a partir do qual são calculados os horóscopos, não corresponde de maneira alguma ao zodíaco celeste. Se consideramos  a existência de diagnósticos astrológicos corretos, estes sem dúvida não se baseiam na influência dos astros, mas em nossas hipotéticas qualidades do tempo. Em outras palavras, o que nasce ou é criado num dado momento adquire as qualidades deste momento. (Jung, 1985, p.47).
Termino esse texto com essa longa citação, afinal, o intuito deste escrito foi, simplesmente, reiterar aquilo que Jung dissera já inúmeras vezes e, talvez, tornar isso um pouco mais claro. Espero, sinceramente, ter, ao menos, me aproximado de meu objetivo.