quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Sobre delações, delatores e expectadores...

Escrevo hoje, logo depois da divulgação da notícia de que os delatores da lava-jato implicaram Aécio Neves, não para apontar o dedo aos seus eleitores e apoiadores, nem mesmo para “celebrar” esse acontecimento, mas para ponderar suas consequências e pensar um pouco a nossa sociedade em meio a tudo isso, especialmente o papel desempenhado pela nossa mídia.

Nossa imprensa vive, hodiernamente, de “denuncismo” e de “declaracionismo”, ou seja, não é preciso investigar, não se necessita de fontes ou de comprovações, não, tudo o que se necessita é de alguém disposto a “colocar a boca no trombone”. Me recordo do Roberto Jeferson, que sem evidência alguma, a não ser, como o afirmaram seus colegas tribunos “a rainha das provas” a confissão, tentou incendiar a república para tirar daí suposto proveito próprio. Nossa imprensa destrói reputações, atua de maneira caluniosa, parcial e respaldada na denúncia de ocasião, ou naquela que irá render os dividendos políticos que lhe interesse no momento. Por esse motivo a delação de Aécio não me empolga, vivemos numa democracia... E a mídia nos ensinou que o “onus probandi” pelo visto cabe não a quem acusa, mas a quem se defende. A mídia nos ensinou que não devemos mais presumir inocência, mas culpa. Mas eu sou lento, aprendo devagar, aparentemente, e ainda acredito que o senador tem o direito constitucional a ampla e irrestrita defesa e que é inocente até prova em contrário. Infelizmente, para a maioria da nossa população, a pedagogia da mídia foi mais eficiente, e talvez ele já seja julgado de antemão, talvez.

Digo talvez, pois a pedagogia orquestrada por essa nossa mídia que adora o teatro das denúncias e delações, também procurou ensinar as pessoas a identificar a corrupção com um único grupo: o PT. Aprendemos na TV que só um partido é corrupto, e mais, que ele inventou a corrupção que antes não existia, e, mesmo que existisse, ele a elevou a níveis “nunca antes vistos na história desse país”. Assim como as denúncias e delações não precisam de respaldo qualquer, essa narrativa que criminaliza apenas um partido, não precisa de evidência, basta o combustível de nossos preconceitos afetivos e quimeras.

Somos uma nação em que aceitamos passivamente chacinas e mais chacinas em bairros pobres, aceitamos presídios que fariam um inquisidor medieval ter calafrios e pesadelos, aceitamos candidamente uma polícia militar incompetente e assassina, aceitamos, e até clamamos, por desrespeitos flagrantes aos direitos humanos. Hoje não temos mais vergonha de sermos racistas, homofóbicos e machistas, é tudo culpa do PT mesmo. Sendo tudo culpa do PT, eu não preciso mais ter culpa de nada, tudo me é permitido, todo o mal me foi alienado, está em outrem, logo tudo o que parte de mim é bom, mesmo que seja misoginia, xenofobia, preconceito e intolerância, pois eu estou do lado do bem. Assim seguimos impedindo essa revolução comunista que nunca chega, seguimos dando uma propina ao guarda, ou furando a fila, ou sonegando impostos e sonhando com os tempos maravilhosos da ditadura.

Quanto ao senador tucano Aécio Neves, bom, isso cria uma fratura significativa nessa narrativa que coloca toda a culpa em um único bode expiatório, mas ainda podemos voltar ao velho expediente de criminalizar a política como um todo, ou simplesmente jogar a coisa pra baixo do tapete. Logo, logo essa lava-jato sai das manchetes, vamos esperar os petistas fazerem outra coisa de errado e aí voltamos a atacar com todas as manchetes possíveis e imagináveis. Enquanto isso a nossa república segue cada vez mais fragilizada, nossa sociedade segue cada vez mais intolerante, e o abismo segue ficando cada vez mais próximo.

domingo, 16 de agosto de 2015

A postura correta do analista




Mas a própria vida brota ao mesmo tempo de fontes límpidas e turvas. Por isso falta vida a toda “pureza” demasiada. Toda renovação da vida passa pelo turvo e avança para o límpido. Quanto maior a limpidez e a diferenciação, menor será a intensidade de vida, precisamente porque foram excluídas as substâncias turvas. O processo de desenvolvimento precisa tanto de limpidez quanto de turvação.
C. G. Jung, Tipos Psicológicos, P.257.




Em uma perspectiva Junguiana, qual é a postura correta do analista? Como qualquer pessoa inteligente pode ver por si mesma, essa é uma pergunta capciosa. Basta nos lembrarmos do forte viés pragmático de Jung para perceber que a maneira como a pergunta foi formulada (e é assim que ela costuma ser formulada) induz ao erro.


Em termos pragmáticos, não existe interesse em respostas verbais, não há uma verdade exclusiva, mas muitas verdades, não temos a verdade, mas apenas verdades operacionais.


Mesmo assim, essa é uma questão que se reveste de grande importância, porém pode acabar se transformando em um pseudo-problema. Na maioria dos casos, a assim chamada postura correta diz respeito ao estabelecimento de uma persona medici, que é, ironicamente, o que não se deve cultivar, ou, ao menos, não de maneira exclusiva, muito menos como a coisa mais importante.


Por mais que o processo analítico possua regras operacionais, certamente o método dialético não pode ser confinado a aplicação mecânica dessas regras. O método depende fundamentalmente da personalidade do médico. Do quão longe ele foi no confronto com o inconsciente. Ao pensarmos assim, qualquer postura preconizada como a melhor, na maioria das vezes, servirá apenas para mascarar a personalidade do médico. Ao fazer isso, subtrai-se do paciente justamente a única coisa que pode ser genuinamente oferecida a ele: o efeito de sua personalidade na personalidade do médico.


Toni Wolf, analista que foi muito próxima de Jung e considerada por alguns até mesmo melhor clínica do que ele, atendia a seus pacientes sentada a mesa, não a frente deles, mas ao seu lado, fumando cigarros em uma longa piteira preta.


Jolande Jacobi, que era uma búlgara extrovertida e agitada, passava as sessões andando de um lado para o outro. Isso chegou a tal ponto que o vizinho de baixo a levou a justiça por perturbar sua paz com o barulho de seus passos. O juiz determinou que ela poderia andar de 8 até às 22 horas.


Um paciente de Marie Louise von Franz, ligou para ela desesperado e chorando, coisa que não era nada habitual para sua atitude corriqueira, e relatava estar em perigo. Ela lhe aconselhou a pegar um trem e vir a Zurique – ele morava numa cidade vizinha – ao chegar ele trazia consigo uma cesta de cerejas e eles comeram juntos alegremente e ela lhe perguntou “bom, e aí?”, mas ele não conseguiu contar o que havia de errado e já estava refeito.


Jung, certa feita, atendeu uma senhora que tinha o hábito de estapear seus terapeutas sempre que lhe diziam algo desagradável. Depois de passar por vários deles, acabou indo ter com Jung – que já lhe conhecia a fama. Quando ele lhe disse algo que não a agradou, ela se levantou para estapeá-lo, mas, para sua surpresa, Jung também se levantou com a mão em riste e disse “ladies first!”. Jung era famoso por ter uma robustez quase camponesa, e a senhora se sentou e o tratamento pode prosseguir sem maiores problemas.


A postura correta é aquela que melhor e mais verdadeiramente expressa à totalidade da personalidade do médico. Assim como o paciente deve afetar o médico, este deve afetá-lo com aquilo que ele verdadeiramente é. O problema de uma persona medici é que, normalmente, é algo bidimensional, não projeta uma sombra. Faz parte, necessariamente, da atitude do médico, não apenas sua autoridade e certezas, mas também suas dúvidas, medos e fraquezas.


O método dialético depende de uma elevada dose de coragem e altruísmo, entretanto a verdadeira coragem só se mostra quando sentimos medo. Junto do estudo, indispensável, da psicologia dos complexos, método de associação, filosofia, psiquiatria, religião e mitologia comparada, psicologia dos primitivos, deve vir também uma aguda consciência de nossas limitações, o que inclui o reconhecimento de que tudo o que julgamos saber sobre o paciente não passa de um preconceito e de que não nos é dado saber qual o destino de outrem.


A postura verdadeira deve emanar de sua verdadeira natureza e ser uma expressão dela. A principal verdade de quem cuida de almas deve ser a percepção de que existem muitas verdades e não apenas a nossa. Que o caminho do paciente, com todas as suas agruras, tropeços e vicissitudes, corresponde a sua (dele) resposta individual da imorredoura questão do sentido da vida humana. A postura correta não é um conjunto de regras estereotipadas como um manual de etiqueta, mas aquela que colabora positivamente para ajudar o paciente a escapar da estagnação causada pela neurose, a vencer a cisão que lhe dilacera a alma, mesmo que possa parecer com algo tão estapafúrdio como ficar caminhando de um lado para o outro incessantemente.