quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

É possível um ateu ser Junguiano?


Recentemente me fizeram uma pergunta bastante inusitada, porém muito interessante, em resumo, “é possível um ateu ser Junguiano?”. A resposta esse questionamento suscita alguns outros, no que concerne a perspectiva da ciência de Jung. Dentre esses questionamentos suscitados podemos pensar de imediato em qual seria o significado de religião para Jung? Ou o que ele entendo por ateísmo? Se levarmos a pergunta ainda mais longe, o que faz com que alguém seja um analista Junguiano? E de maneira negativa, o que faz alguém não ser? Eu não fui tão longe na resposta a essa interrogação, mas pretendo aprofundar aqui a minha resposta. De imediato a resposta a indagação é um sim e um não, obviamente explicarei os dois.
Sim, é possível ser Ateu e Junguiano, assim como é possível ser teísta e Junguiano, as duas coisas possuem vantagens e problemas. Jung era fundamentalmente um empirista, como ele afirmou em carta de 1947 a Erminie Huntress Lantero “não há uma única coisa na minha psicologia que não seja fundamentada por experiências reais”, ainda nessa mesma missiva afirma que toda a sua Psicologia deriva de sua experiência imediata com pessoas vivas, logo não se trata da formulação de experiências místicas ou de elucubrações filosóficas, mas do ponto de vista de um médico que tinha de tratar de seus pacientes que estavam sofrendo. O fato de ele ser um empirista e um pragmático, não significa que não existam influências filosóficas em seu trabalho, em especial Kant e James fundamentam diversas questões extracientíficas que aparecem na obra. Em especial, Kant leva Jung a sustentar uma postura de agnosticismo, que me parece ser fundamental para que ele elabore a noção empírica de realidade psíquica.
De acordo com Kant, Deus enquanto um ens metafísico realmente existente não pode ser objeto da experiência, logo não se pode constituir sobre ele qualquer conhecimento válido, sendo assim, na seara científica, não se pode afirmar nada sobre Deus. Isso significa que tanto a firmação sobre a existência de Deus quanto sobre sua inexistência são metafísicas, logo ambas impossíveis em termos empíricos ou mesmo racionais. Consequentemente, em termos estritamente psicológicos, ou seja, científicos, para Jung não cabe a ciência opinar sobre essa ou qualquer outra questão teológica ou metafísica, resta simplesmente não saber.
No que concerne a Psicologia enquanto um saber científico e racionalmente conduzido, todavia, existe a percepção empírica de que para ser real uma ideia basta existir. Jung afirma, de maneira tipicamente pragmática, que real é tudo aquilo que age, que atua. Nessa ótica, a ideia de existência de deus é psicologicamente real, bem como, a ideia da sua inexistência também o é. Numa perspectiva de uma ética clínica, as duas posições são perfeitamente válidas e reais, desde que atuem na vida das pessoas que as professam, que não sejam meras opiniões ou uma simples uma mascarada. Mas não se trata simplesmente dessa percepção tão singela, pois Jung com frequência fala em Deus em seus livros, e sempre, eu devo frisar, SEMPRE, deixa claro não ser teólogo e nem tampouco filósofo, mas sim um cientista. Ao falar em Deus, Jung está se referindo a um fato psíquico empiricamente verificável, tanto na experiência do homem moderno, quanto na antropologia, história das religiões e psicologia dos estados mórbidos da alma. Quando ele usa a palavra Deus, em termos psicológicos, ele está se referindo a Imago Dei, um fenômeno intuitivo, que significa aquilo que é mais importante, a maior quantidade de libido, uma imagem psíquica da totalidade, que pode ou não corresponder ao um ens metafísico realmente existente. Essa experiência, da imago dei, é imediata e sentida como supremamente real, vem carregada, em geral, de um afeto avassalador de espanto e terror, podendo ser tanto salvífica quanto destrutiva.
Logo, psicologicamente, Deus é real. Certa feita, ao ser questionando por um teólogo se ele afirmava que deus é psicológico, o que ofendia a sensibilidade desse teólogo, Jung resumiu assim esse insólito debate: para o teólogo psicológico não passava de algo menor, para Jung era justamente o mais importante, logo nem de longe dizer que deus é psicológico o diminui. Infelizmente, a maioria de nós, especialmente os psicólogos, tem uma sensibilidade similar à desse teólogo e não a de Jung.
Nesse sentido, da existência real no psiquismo de uma imago dei, para Jung, em termos pragmáticos, o ateísmo é impossível, pois a natureza possui um horror vacui, quando eu abandono conscientemente a ideia de um deus, um ser supremamente importante, ela vai ser substituída, com sérios prejuízos a vida e a adaptação, por algum ideia inconsciente de um supremo valor, que doravante sem que o saibamos, será o nosso deus. Nesse ponto, Jung concorda com o apóstolo Paulo,
O fim dessas pessoas é a perdição; o deus deles é o estômago; e o orgulho que eles ostentam fundamenta-se no que é vergonhoso; eles se preocupam apenas com o que é terreno. (Filipenses 3:19)
Qual o significado de religião para Jung? A conscienciosa consideração do numinoso, ou seja, daqueles efeitos dinâmicos não causados pela vontade, que é mais vítima deles do que seu criador, pois o numinoso é uma condição do sujeito. Temos igualmente de nos recordar, que para Jung toda mitologia é a essência da alma projetada, ou seja, toda ela é uma projeção do inconsciente coletivo, e como ele afirmou em seu Símbolos da Transformação, serve para nos ensinar os limites de nossa personalidade empírica, que além de nós existem os Deuses e que devemos respeitá-los, temê-los e adorá-los, mas jamais nos confundir com eles. Em outras palavras, não nos identificarmos com o efeito numinoso da manifestação viva dos arquétipos, sob pena de sermos possuídos por esse efeito e perdermos a nós mesmos.
A posição de Jung me parece suficientemente esclarecida, mas pergunta ainda não foi respondida. Resta nos lembrarmos que Jung afirmava que a Psicologia não pode se converter em uma cosmovisão, pois do contrário não passaria de um método sugestivo e ortopédico, todavia, é fundamental que o médico possua uma cosmovisão, uma filosofia de vida em sentido antigo. É necessário que o médico seja capaz de justificar intelectual e moralmente seus atos, e escolhas e que possua um posicionamento claro diante do mundo, do tempo em que vivemos e das grandes questões políticas. Lembre-se, estimado leitor, que Aristóteles chamava originalmente a metafísica de filosofia primeira. Ao se pensar seriamente sobre o que é o cosmos e como devemos viver nele, é de fundamental importância imaginar as consequências de existirem ou não deuses, ou um deus, como queira. Para Aristóteles, por exemplo, Deus era um primeiro motor imóvel sem o qual a noção de causalidade que dava racionalidade ao mundo não seria possível, para Sartre, por exemplo, se existir um deus no sentido de um demiurgo criador do homem, há um sentido a priori para a vida humana, uma essência humana. Sem deus, para Sartre, é mais ou menos como temia Dostoevsky, o homem tudo pode. Pensar na existência de um demiurgo é ponderar igualmente em um sentido para a existência. Ter uma cosmovisão significa, como asseverou Jung, ponderar seriamente sobre a vida e a morte, e tais ponderações levam quase que forçosamente a certas questões metafísicas.
Um analista Junguiano pode ser ateu desde que ele seja capaz de justificar o seu ateísmo de acordo com sua cosmovisão, que não se trate de uma reação sintomática ou de uma compensação, mas sim de algo que genuinamente corresponda as suas inclinações, que esteja em acordo não apenas com a sua equação pessoal, mas com a integridade da sua personalidade. Também é preciso que ele ou ela compreenda que é possível pensar e sentir de uma maneira diversa, e que sua experiência corresponde a uma verdade e não “A Verdade”. O pior erro que um analista pode cometer é supor o seu próprio psiquismo nos outros. O mesmo vale para um analista que seja Judeu e creia em Hashem, ou um cristão, ou para um analista que acredite nos orixás ou em qualquer outra divindade. Urge igualmente lembrar do que von Franz nos ensina, a diferença entre o pastor  e o médico, é que o pastor acredita que deus se limitou a escrever as escrituras, o médico, por seu turno, sabe que deus pode se manifestar criativamente na alma das pessoas. Não fosse isso o bastante, devemos ter sempre em mente, que nunca saberemos o que deus quer das pessoas, não podemos jamais, sejamos ateus ou crentes, nos converter em messias ou demônios do poder.
É igualmente indispensável lembrar a jocosa afirmação de Campbell de que no fundo crentes e ateus estão enganados. Alguém é religioso por acreditar de maneira denotativa nas imagens da Torá, de que de fato houve um jardim primordial onde uma cobra falava, já um outro é ateu por não conseguir acreditar que houve um jardim e um casal primordial em que a mulher foi feita da costela desse primeiro homem. Ambos perdem de vista o valor de metáfora do mito, e com isso seu engano os afasta da realidade psicológica que essas imagens traduzem para nós acerca de nós mesmos. Ao compreendermos os mitos de maneira conotativa, ou seja, metafórica, essas imagens estranhas que até então eram opacas se tornam transparentes ao transcendente e nos revelam a riqueza até então inaudita de nossa vida interior. Para alguém que deseje ser um analista, importa mais em sua lida com a alma o valor de metáfora da religião. Mito é a religião do outro e religião não passa de uma incompreensão popular da mitologia.
Seja crente ou ateu um analista não deve se converter num proselitista, jamais deve corrigir uma inclinação do paciente que não se corrija a si mesma e deve ter sempre um temor reverente diante dos abismos de desconhecido que o outro ser humano diante dele representa.
Todas essas indagações e possibilidades de respostas me levam a matutar igualmente, de uma maneira mais ampla, no que torna alguém um Junguiano. Há, ao menos, duas maneira de responder a isso, uma positiva e outra negativa. Ambas as vias podem levar ao descaminho de me transformar num demônio de poder, capaz de decidir, como um juiz paternalista quem é ou não é um Junguiano, e nisto eu não desejo me tornar. Mas também não posso me esquivar de cogitar, tanto no campo do intelecto quanto no do valor, pelo significado daquilo a qual dedico a minha vida, do contrário estaria contrariando as recomendações que eu mesmo faço aqui.
Ser psicólogo te torna um junguiano? Não, de forma alguma, na realidade nenhum diploma te torna um junguiano, nem o de medicina que Jung possuía, nem o de filologia de M. L. von Franz. Foucault estava coberto de razão ao dizer que o diploma serve apenas para constituir um valor mercantil do saber, fazendo os que não o possuem se julgarem incapazes ou sem o direito ao saber, o que têm um diploma sabem que ele não serve para nada, não tem conteúdo e é vazio, somente os que não o tem vêm nele um sentido pleno. Não bastasse tudo isso, com raras e honrosas exceções, os cursos de psicologia e medicina nada ensinam sobre Jung ou sobre os saberes que realmente importavam para que fosse possível compreendê-lo. A formação em Zurique também não exige qualquer diploma específico, então isso significa que o diploma do Instituto C. G. Jung me torna um junguiano? Não, ele é só mais um diploma como os outros, por sinal, um que M. L. von Franz em seu tempo detestava e repudiou.
Fazer análise com um analista junguiano me torna um? Não necessariamente, e mesmo uma análise que realmente o levou a um alto grau de autoconhecimento não é garantia suficiente de que você tenha se tornado um junguiano, mas, por certo é uma condição indispensável, até porque, outra condição para ser um analista é não ter uma neurose ativa, ou seja, certo grau de saúde psíquica.
Conhecer a obra, as ideias e o método de Jung me tornam um junguiano? Não, assim como a análise, isso não é suficiente, sendo, porém uma condição indispensável, apesar de existirem idiotas em número suficiente que pensam o oposto, que podem ser junguianos sem ler, e nem compreender Jung. Pior, há alguns que se julgam capazes de julgar a obra ou ainda de a ela fazer reparos, ou mesmo que Jung foi superado, esses deveriam estar em camisas de força e não tagarelando soltos por aí.
Ser reconhecido pelos meus pares como um Junguiano me torna um analista junguiano? Não, eu particularmente não me fio nas massas ou opiniões coletivas e ligo muito pouco para elas, como dizia Jung “cem cabeças brilhantes juntas formam uma só cabeça de bagre”. Houve um tempo aqui na minha cidade natal, que para a minha eterna vergonha, um sujeitinho desprezível que mal havia saído dos cueiros em termos de competência teórica no que concerne a obra de Jung foi alçado à condição de “líder” do “movimento junguiano”, e reconhecido amplamente como possuidor de um saber e autoridade que não tinha e nem tem. Lamentavelmente ninguém parecia ter lido, ou ao menos compreendido O Eu e o Inconsciente, onde Jung falava justamente sobre esse fenômeno e de como justamente os mais pusilânimes são aqueles com maior sofreguidão respondem ao anseio das massas por prestigiar, devido a sua fraqueza e inferioridade têm uma avidez por prestígio. Eu via aquilo com espanto, era como se o líder de um movimento de pintores não soubesse pintar, um colega psicanalista, muito mordaz, dizia que o tal movimento era “perverso pseudomessiânico”, seu sarcasmo era muito acertado e apropriado.
Ter profundidade de personalidade, desenvolvido as funções que necessitavam de desenvolvimento e lutado arduamente para descobrir a minha verdade interior me torna um Junguiano? Não, isso é indispensável, conditio sine qua non, porém também não é suficiente. Sem isso é melhor nem começar, mas apenas isso, não basta.
Identificar-me como Junguiano perante os meus pares faz de mim um Junguiano? Não, já conheci uma pessoa que se autointitulava junguiana sem jamais ter lido um livro sequer do Jung e sem ter feito nem um mísero minuto de análise. Eu posso me identificar ou me intitular como eu bem entender, posso até mesmo afirmar ser Cristo, ou um Kriptoniano, isso importa bem pouco na maioria dos casos, visto a grande maioria das pessoas ser profundamente inconsciente de muitas coisas, e afirmar coisas absurdas ou que em nada condizem com suas inclinações, ou mesmo, serem simplesmente mentirosas e descaradas.
Então, meu caríssimo amigo Heráclito, o que diabos me faz ser, ou não ser um Junguiano? Não desista ainda, estimado leitor, compreenda que se trata de uma seara das mais espinhosas e que aprendi a argumentar com os textos de Jung e essa circoambulação é necessária.
O que te faz não ser um Junguiano? Bom, pra começo de conversa se você manda os seus pacientes desenharem madalas, ao invés de junguiano você não passa de um bocó que leu a obra de Jung com uma desatenção verdadeiramente condenável.  Caso você se julgue um místico ou messias de qualquer espécie e não um analista/cientista temos um sério problema. Se você não considera que existem forças inconscientes que agem de maneira poderosa sobre a consciência com uma autonomia quase diabólica, e, que o inconsciente é o problema fundamental da psicologia contemporânea, fica muito difícil pro seu lado. Mesmo levando isso em consideração, se você encara o inconsciente como uma espécie de poço dos desejos, ou o vê unilateralmente como algo bonzinho ou apenas como a fonte de sintomas neuróticos de toda espécie, certamente está no caminho errado. Minimamente, você precisa compreender 5 coisas simples: uma afirmação psicológica só é verdadeira se e somente si eu também puder afirmar o seu oposto, toda afirmação psicológica é relativa, mas relativa a um sujeito individual, os conceitos não explicam os fatos que eles denotam, toda observação genuinamente científica deve estar isenta de pressupostos teóricos ou filosóficos e o único critério de validez de uma hipótese em psicologia junguiana é o seu valor heurístico, isto é explicativo. Mas isso é apenas o mínimo.
Mas finalmente, o que o torna um Junguiano? Bem, fundamentalmente é preciso que você seja você mesmo. Isso pode soar um enorme clichê, ou um simples slogan tolo, porém, se você, estimado leitor, ainda não escapou das garras da primitiva identidade com seus pais, sua família, sua cidade ou mesmo sua nação, usando a expressão de James Joyce, se sua alma ainda não nasceu e alçou voo, não é possível sequer cogitar ser um junguiano, entretanto novamente temos uma condição indispensável, porém insuficiente em si mesma. É preciso viver a aventura do seu tempo, ser um homem moderno em sentido psicológico, estar atento aos grandes dilemas e problemas sociais e políticos, estar ciente das grandes questões imorredouras, daquilo que é grave e constante no sofrimento humano, possuir uma aguçada sensibilidade artística e uma vontade de estar vivo e de viver a vida em sua plenitude, mesmo em seus tropeços e horrores. É preciso uma grande dose de compaixão e uma dose ainda maior de coragem, toda coragem é pouca, se você tiver todas as demais qualidades e lhe faltar coragem desista, eu falo sério, desista. É necessário grande inteligência e erudição, e uma humildade ainda maior, pois o médico e o paciente estão em pé de igualdade, ambos estão no escuro.
É isso então? Não, não apenas, pelo menos. No fundo, a única resposta que posso lhes oferecer sou eu mesmo, a minha vida e a minha experiência, não como exemplo, jamais como exemplo, pois qualquer tipo de imitação leva a uma vida inautêntica. O que quero dizer, é que de tudo o que escrevi aqui, a única coisa que posso lhes assegurar com certeza, com cada uma das fibras do meu ser, é que eu sou um junguiano, e que isso significa antes e acima de tudo que eu sou eu.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

Palestra no curso de capacitação do livro cidade da gente em Juazeiro

Vou começar contando uma história que todos vocês já devem saber, justamente por todos vocês já saberem. Conta-se que o Padre Cícero resolveu vir morar em Juazeiro depois de ter tido uma visão de Cristo e dos doze apóstolos lhe dizendo que cuidasse do povo daqui e assim o fez. Assim como essa história, envolvendo o famoso patriarca de Juazeiro, há muitas outras que povoam o imaginário não apenas de Juazeiro, mas de todo o Ceará, como o encontro entre o padim e Lampião, ou a sedição de Juazeiro, que derrotou as forças do governo federal e depôs Franco Rabelo.
As histórias que nós compartilhamos, essas de que todos se lembram, são justamente aquelas que nos fazem sentir como uma parte viva da história. Para além da minha família imediata, eu também faço parte do lugar onde eu vivo, sou o resultado do que se passou por aqui antes de eu nascer, em certa medida, eu não sou simplesmente eu, mas sou parte de algo bem maior, a minha memória se expande para além daquilo de que me recordo da minha infância e dos meus pais, há uma memória coletiva que me permite dizer que sou de Fortaleza ou de Juazeiro, que me traz uma identidade com o lugar onde nasci ou vivo. Floro Bartolomeu era Baiano, mas constituiu aqui sua história, aqui deitou raízes e aqui em Juazeiro ele deixou sua marca ao lado do padre Cícero Romão Batista. Quando alguém diz que é de Juazeiro, sabemos que se trata da terra de Floro Bartolomeu e do Padre Cícero.
Todos nós em algum momento temos de nós perguntar “quem somos?”, e essa questão vem sempre seguida e só pode ser respondida se soubermos de onde viemos, quais são as nossas origens, onde estão as nossas raízes, de que solo viemos e como esse chão nos influencia. Tanto é que, desde muito tempo se fala na diferença entre o sertanejo e o homem que cresceu na beira da praia, o sertanejo, como disse Euclides da Cunha, é antes de tudo um forte, moldado pelo clima árido e hostil do sertão, não lhe resta alternativa a não ser a força para sobreviver em meio à aridez de sua terra. Muita gente se contenta em saber da história de seus pais e avós, na busca por essa resposta, mas isso não basta, pois não sou constituído apenas pela minha família, sou também a minha vizinhança, o meu bairro, meus amigos, não é à toa que falo “fortaleza é a minha cidade”, pois o lugar onde vivo e onde nasci é tão meu quanto eu sou dele. Mas que laços me unem aos locais e as pessoas que me são próximas? O que nos une, são as histórias que partilhamos, e o fato de sabermos que essa terra, possui uma história, que assim como o sertão com sua aridez e hostilidade, também molda o caráter daqueles que aqui habitam.
Os personagens famosos dos locais muitas vezes traduzem o caráter, a alma de um povo, nessa terra tão dura e tão severa com seus filhos, as histórias da grosseria de um Lunga, por exemplo, são engraçadas, pois esse personagem traduz um pouco daquilo que é a alma do sertanejo, sua simplicidade e o caráter direto, teimoso e sem arrudeios. É preciso ser teimoso e duro para ter sobrevivido as secas do sertão do nosso Ceará, mas ao mesmo tempo, somos famosos no Brasil inteiro pela gaiatice, e um personagem como seu Lunga sintetiza dois elementos da nossa identidade.
Ao pensarmos nas nossas histórias, elas nos dizem o que significa ser Cearense. Quando estamos fora do nosso estado, se não perdemos as nossas raízes, nos somos ao mesmo tempo um indivíduo, alguém que pode até não gostar de certos aspectos da nossa cultura ou do nosso jeito, mas que não pode negar que possui as qualidades e defeitos dos filhos dessa terra. Antes da terra nos comer, muito antes de nossos ossos serem roídos por ela, a nossa alma já assimilou, comeu a terra e fez dela uma parte de quem nós somos. E para saber quem somos, precisamos conhecer essa memória que não é só minha, mas de todos, e por ser de todos define as minhas raízes, me dá uma solidez que minha personalidade jamais teria se eu não soubesse muito bem de onde vim, que veio antes de mim. Mesmo que eu resolva dizer que não sou nada disso, só posso fazê-lo ao saber o que é tudo isso, do contrário não se pode nem mesmo negar essa influência.
Há uma importância enorme em se pensar a história dos lugares, nosso país é muito grande, e cada um desses locais possui uma realidade social, estudar a história do Brasil não basta, pensar Juazeiro apenas a partir da história do Brasil causa grandes distorções, Juazeiro é parte do Brasil, mas estamos diante de um paradoxo, pois assim como a parte, Juazeiro, não explica o todo, o Brasil, o todo não explica a parte. Voltando a pergunta inicial de quem somos, certamente uma parte disso é explicada pela tradição da nossa família, mas também somos um pouco do que ela não é, há algo de novo na nossa vida, e só posso saber o que é esse novo ao descobrir aquilo que sempre esteve aí.
Existem fenômenos que são próprios de Juazeiro, é claro que essas realidades de Juazeiro compõem o quadro mais amplo do Ceará e do Brasil, mas precisamos entender as especificidades do local, ou corremos o risco de acreditar que tudo o que vem acontecendo aqui é modelado ou ditado de fora, e isso não é verdade. O esforço de compreender a realidade social de um lugar, de entender como ela se constituiu, como foi moldada pela história, pelos acontecimentos grandes e pequenos, pelos muitos personagens que por aqui passaram, permite também perceber que a realidade em que vivemos não é simplesmente algo dado e natural, mas que passou por um processo longo de construção. Ao entender como se constituiu historicamente Juazeiro, que grandes forças atuaram aqui, posso igualmente imaginar uma outra Juazeiro, pois a história não nos aprisiona, mas nos liberta. A história não é um destino inexorável, mas algo do qual todos nós, saibamos ou não, somos atores, e ao nos darmos conta de nosso papel, podemos igualmente tomar em nossas mãos o nosso destino e o do lugar em que vivemos.
Aquilo de bom e belo em juazeiro é fruto de uma história, de uma construção histórica e social, mas igualmente, nossa pobreza e desigualdade, nossos preconceitos, não caíram simplesmente do céu, eles também foram construídos historicamente e, quando percebo isso, e me percebo como um ator dessa história, posso ser um agente transformador. A pergunta “quem eu sou? E de onde eu vim?”, nos leva igualmente a pensar “quem eu quero ser?” e “para onde eu vou”. A nossa memória, as histórias que contamos juntos se referem ao passado, mas também nos permitem imaginar um futuro. Sem o conhecimento da história, não nos damos conta das enormes mudanças que já aconteceram a nossa volta, e muitas pessoas acreditam que a maneira como as coisas são é a forma como sempre foram e devem ser. Outros, por desconhecimento romantizam o passado, com um saudosismo que vê no passado quase o idílio da infância, sem se dar conta que nossos pais e avós tiveram de superar inúmeros desafios para que chegássemos aqui, e essa visão romântica do passado nos nega o futuro.
O livro que vocês agora terão a oportunidade de utilizar foi feito com grande espírito crítico e deve ser o começo, o ponto de partida das discussões em sala de aula. Nenhum livro, por melhor que seja, e esse é sem dúvida um ótimo livro, deve ser sacralizado e tomado como a palavra final sobre um determinado assunto, mas sim como uma oportunidade para começar um debate, um ponto de partida seguro para se discutir um tema, mas o que ele lhe traz não é o conhecimento pronto e acabado, o conhecimento vai se constituir em sala, com os alunos. O livro é uma ferramenta poderosa, mas uma das ferramentas que possibilita essa construção, ele é de grande valia, pois há um material de apoio para tratar do tema da história e geografia local, um material em que o aluno pode se apoiar e retornar a ele, e até mesmo se afeiçoar a ele. O material que foi produzido, certamente o foi com muito carinho e não deve ser difícil se afeiçoar a ele. Mas em se tratando da história do lugar, o livro é um apoio fundamental, mas deve ser um apoio e não o começo e fim desse trabalho. Os alunos devem entender que o debate crítico, como o que foi realizado pelos autores é fundamental, e que aprender sobre história e geografia significa também pesquisar sobre esses temas, e não simplesmente receber o conhecimento de bandeja. Quando eu estava na universidade, uma das minhas professoras, Simone de Sousa, nos sugeriu que pedíssemos aos alunos que pesquisassem quem eram as pessoas que davam nomes as ruas próximas as suas casas, muitas delas personagens da história do local. Em outra oportunidade, sugeriu que pedíssemos aos alunos que trouxessem para a sala objetos que contassem um pouco da história da sua família, que fossem o aspecto tangível da memória compartilhada.
Há muitas maneiras de ensinar a história de um lugar, sendo que uma das mais diretas é ir ao local. Depois de ler sobre um lugar, de entender tudo o que se passou ali, esse lugar que antes parecia tão comum, se torna estranho e maravilhoso, ao mesmo tempo em que se torna, em alguma medida, muito mais familiar do que antes. Espero que com esse livro em mãos, Juazeiro se torna ao mesmo tempo, para seus alunos, um lugar mais familiar e mais estranho e maravilhoso.

quinta-feira, 1 de novembro de 2018

O que é o comunismo?


O que é comunismo? A pergunta não deveria ser capciosa e nem tampouco difícil, afinal é uma palavra dicionarizada, amplamente debatida, discutida e definida tanto pela ciência política, história e filosofia. Minha definição favorita, por exemplo, vem do filósofo e psicanalista contemporâneo Slavoj Zizek, que se baseia mais em Hegel do que em Marx, segundo ele trata-se de uma ideia concreta hegeliana da liberdade humana radical. Porém, quando Bolsonaro, em sua “live” logo que soube de sua vitória nas urnas fala em continuar perseguindo comunistas ele certamente não se refere a nada que diga repeito a História, Ciência Política ou Filosofia. O mesmo acontece com seus seguidores mais ferrenhos, quando eles usam a palavra comunismo ou comunista temos um curto-circuito, pois apesar de ser a mesma palavra que escutamos, ela se refere a um significado completamente diferente daquele que faria algum sentido histórico ou filosófico. Isso estabelece um curioso dilema semiótico, há que se traduzir o que seja a ideia ou sentimento por detrás da palavra que apenas na aparência é a mesma. Bolsonaro e seus seguidores usam comunismo com uma conotação que não nos permite estabelecer qualquer comunicação, ao contrário, bloqueia o diálogo.
De começo precisamos entender que não entendemos, também é preciso compreender que eles parecem ser capazes de realmente comunicar algo entre eles mesmos com essa palavra, logo ela possui um certo grau de significado compartilhado, há um sentido esotérico de comunismo entre essas pessoas. Temos também de entender que o nosso preconceito de que eles são apenas parvos por desconhecerem os sentidos já aludidos para comunismo impede ainda mais o diálogo. A coisa chega mesmo ao ponto desse sentido que atribuem ter um valor tão grande para eles que o significado histórico/filosófico é visto como errôneo ou mesmo mistificador.
O que significa comunismo? Creio que o sentido histórico mais próximo desse usado pelos eleitores de Bolsonaro deva ser similar ao que surge nos Estados Unidos no período da guerra fria e que é popularizado por Macarty, que criou um clima de paranoia e caça as bruxas. O comunismo nessa época era primeiramente uma ameaça, mas uma ameaça a que? Primeiramente a um modo de vida, o comunismo ameaçava o american way of life, identificado com o ideal de liberdade e busca de prosperidade. Os comunistas também ameaçavam a fé desse modo de vida, eram seres ímpios e sem deus, ateus ignóbeis, além de ameaçarem o capitalismo, no sentido do modo de vida, isso era uma ameaça à prosperidade, a meritocracia e a ideia de self made man. Nesse sentido, meus bens, meus hábitos, e a minha fé estão ameaçados. Mas quem é o rosto dessa ameaça? Ninguém e todo mundo, é uma ameaça sem rosto, o que cria um clima de paranoia. Lacan define paranoia de uma maneira simples, para o neurótico um significante aponta para vários significados, por exemplo: a porta bateu, pode ser o vento, ou o gato, ou um ladrão, ou comunistas. Para o paranoico, todos os significantes apontam para o mesmo significado: a porta bateu, são os comunistas, o telefone tocou, um comunista está me ligando, ouvi um barulho no porão, comunistas, vi uma bandeira do Japão, bandeira comunista. Com isso a ameaça se torna onipresente, insidiosa e qualquer coisa pode ser acusada de comunista (desde o Para até a ONU).
Essa ameaça possui também um viés moral, pois reanima de maneira insidiosa o velho eurocentrismo, pois esse modo de vida, que inclui um povo, uma religião e uma cultura, passam a ser vistos tacitamente como superiores aos demais e dignos de uma defesa que corresponde a proteção da civilização contra os bárbaros que ameaçam seus portões. A defesa desse modo de vida adquire contornos morais, pois é preciso proteger esses valores dessa ameaça, até mesmo pelo fato de o fator moral por excelência, deus, que fundamentalmente decide o que é certo e errado, está do lado dos não-comunistas. Com essa defesa moral, pois os costumes são a essência da moral, e de uma tradição que está ameaçada, e com ela a identidade ligada a ela, eu me coloco ativamente do lado do bem, numa postura maniqueísta. Todo o mal fica do lado de lá, do comunismo.
O comunismo representa também uma ameaça política e militar, além de ateus e imorais, eles desejam destruir o sistema político e são uma ameaça a minha integridade física, de alguma maneira, minha vida está em risco. Como eles não comungam dos meus valores, imediatamente imagino que eles serão uma versão especular da minha moral, uma anti-moral, em que todos os tabus são abolidos, e a própria existência de uma tal abominação é uma ofensa a mim e a meu modo de vida. Tudo o que eu considero errado é projetado nesse outro sem rosto, é provável que usem drogas se eu achar que usar drogas é errado. Logo, basta alguém fazer algo que eu julgue errado (como usar drogas) para ser comunista. Se eu considero que só é válido o amor entre diferentes, entre homem e mulher, para entender que quem age de maneira “errada” é comunista.
É muito provável que essa ameaça tenha um aspecto estético, se o comunista é um ser pelo avesso, logo ele deve também ameaçar a minha estética, tudo o que eu acho feio será louvado pelo comunista e o belo será destruído por ele. Obviamente, um modo de vida terá um padrão de beleza, no caso em questão, o padrão era o homem ou mulher brancos e os traços definidores da aparência europeia, como olhos claros e cabelos lisos. Dessa maneira, se eu achar feio, deve ser comunista.
Se a minha hipótese estiver correta, o comunismo de que fala o Bolsonaro é tudo menos aquilo que a História nos ensina ser o comunismo, mas tudo aquilo que é sentido como ameaçador, feio, imoral e perigoso. Mesmo compreendendo tudo isso, o debate permanece comprometido, pois no fundo o comunismo vai ser algo tão vasto que dificilmente será mais do que um sentimento vago de medo e apreensão, que não significa nada objetivamente. No fundo estão apenas confessando seus medos e desejos inconfessáveis, pois medo e desejo são irmãs inseparáveis.

terça-feira, 4 de setembro de 2018

Setembro Amarelo

Estamos em Setembro e há durante esse mês as ações do Setembro amarelo que trata da prevenção do suicídio e creio que isso merece alguma reflexão especialmente por tratar-se de um tema tão delicado. Nossa matriz cultural é judaico-cristã, e em ambas as religiões a despeito de existir uma visão positiva da morte, no sentido em que a morte é uma passagem para a vida eterna, desde que se tenha vivido um certo tipo de vida segundo alguns preceitos (preceitos esses sempre em disputa especialmente no universo judaico e protestante marcados pela fragmentação), existe nas duas um tabu acerca do suicídio, pois condenaria a alma daqueles que o cometem a danação eterna. A despeito da crença na imortalidade da alma ou da ressurreição dos mortos, a morte de deus anunciada por Nietzsche colocou em xeque nossa atitude otimista em relação à morte. Perdemos o lado bom, mas o tabu permaneceu, tirar a própria vida continua, no geral, sendo visto como algo odioso, covarde e extremado.
No que concerne aos eventos desse mês relativos ao suicídio, considero o espírito da coisa algo muito bom, mas no geral enxergo alguns problemas, problemas esses que discutirei. No que concerne ao espírito disso tudo, há algo de bom em se falar sobre algo que na maior parte do tempo não se pode mencionar, que é inconfessável, torpe e feio. Falar de maneira franca sobre o suicídio é de imenso valor, poder durante ao menos um mês debater o tema é algo inestimável, como asseverou Jung, só podemos nos defender de um inimigo que conhecemos. Na maior parte do tempo o suicídio é algo insidioso e sorrateiro, da qual se evita falar a todo custo, chega mesma a ser motivo de vergonha ter um parente que se matou.
No que concerne ao aspecto da prevenção, eu tenho cá as minhas dúvidas. Devo confessar que, mesmo depois de 20 anos de estudo da obra de Jung, e algum estudo de Psicanálise, História da Psicologia, Humanismo e afins eu não saberia como prevenir que alguém se mate, a não ser é claro sacrificando a vida psíquica da pessoa em questão com contenção física ou química, o que só tornaria essa vida insuportável e indigna de ser vivida. Se alguém realmente colocar na cabeça que deseja se matar e se decidir a esse respeito, ele ou ela vai se matar. Viver é algo bem difícil, morrer é fácil, mesmo pessoas que não desejam morrer podem encontrar com a morte com certa facilidade, desde que se esteja realmente decidido, há muitas formas de por fim a própria existência. Obviamente, algumas pessoas buscam ajuda, e confessam o inconfessável, que desejam extinguir a própria vida, mas essas certamente ainda estavam divididas quanto ao caminho a tomar. Mesmo no que diz respeito a essas pessoas que buscam ajuda, trata-se de uma situação extremamente delicada, que requer um tato e capacidade de atenção e empatia que poucas pessoas possuem, mesmo pessoas treinadas para tanto como enfermeiros, médicos, psiquiatras e psicólogos raramente estão preparados para ajudar, a maioria não suporta sequer ouvir alguém cogitar essa possibilidade nefasta.
Resta talvez a pergunta de como se pode evitar que alguém chegue ao ponto de não retorno e novamente deparamos com um nós górdio impossível de desatar. Como impedir ou prevenir que se viva uma vida que leve ao desejo de autodestruição? Muitas vezes nem mesmo sabemos as causas de um suicídio, de fato, creio que muitos suicidas também não o sabem, e mesmo assim o fazem. Como definir que tal ação é boa ou má, resultará nisso ou naquilo? Como diz o velho adágio alquímico “o touro é a mãe da serpente e a serpente a mãe do touro”, ou dito de outra maneira, não sabemos que bem gestará um mal e de que mal surgirá um bem. Jung assevera que muitas vezes em análise, justamente aquela que parece ser a atitude mais perigosa a ser tomada pelo paciente, a que potencialmente pode lhe ceifar a vida, é justamente a que lhe permitirá ganhá-la. E mais, qualquer um que viva uma vida heroica traz para mais perto de si o limite de sua vida. Quem poderia admoestar Martin Luther King a não fazer o que fez? A não correr os riscos que correu? Para usar um exemplo famoso da literatura, Hans Castorp encontrou seu destino e a sua vida ao ir para as trincheiras da primeira guerra mundial. Como disse certa vez Jung a sua maior discípula, M. L. von Franz, não nos é dado saber o que deus quer das pessoas. Não nos é dado saber, na mais das vezes, mesmo a causa de um suicídio, no fundo, na maioria das vezes podemos notar a causa eficiente, o gatilho, mas nos é invisível à intrincada rede de condições subjetivas que permite que aquele gatilho ponha em marcha o caminho de um suicídio.
A despeito de meu ceticismo, creio que é bom que mais pessoas pensem e falem sobre, creio que poucas pessoas jamais nutriram o sentimento secreto de se matar, mesmo que por um breve instante, ou em um momento de profundo desespero perderam as esperanças na vida. Devo confessar que nunca me passou pela cabeça tirar minha própria vida, mas já me ocorreu morrer, encarar a morte como um alivio possível diante de uma situação sumamente complicada que me enredou por alguns anos de padecimento. É bom que se desenvolva algum grau de empatia com quem sofre ao ponto de querer por fim ao sofrimento ao extinguir a própria vida. Não há meios de combater o sofrimento, pois é algo inerente a tudo o que vive, mas talvez seja possível dotar as pessoas de algumas ferramentas para lidar com ele, ou, ao menos, para não se horrorizarem com ele ou se sentirem fracas e menores por sofrerem. Somos todos seres de carne e sangue, seres de fraquezas e erro, mas nosso tropeço é justamente o que nos faz humanos, nosso sofrimento nos liga secretamente a toda a humanidade, quem pretende estar acima do sofrimento, se coloca numa posição impossível de isolamento dos demais e de si mesmo. Há caminhos, mas creio que os melhores desses caminhos são individuais, porém, qualquer um que acenda uma luz na escuridão estará ajudando a todos os demais que estão nas trevas. Ao nos redimirmos de nosso sofrimento, e com isso ganhando uma humilde posição entre os seres humanos sofredores, redimimos em algum nível a todos.

quarta-feira, 6 de junho de 2018

Carta a Heráclito


Caro Heráclito,
Talvez você já não se recorde mais de mim, mas em 2018 eu costumava ser você. Espero que esteja bem e gozando de boa saúde, estou me esforçando bastante para que isso seja verdade, espero que esteja em ótima forma e tenha envelhecido bem, como eu tinha planejado. Espero sinceramente, que esteja melhor do que eu em todos os aspectos, mas temo, sinceramente, que a agitação da sua vida e seu ímpeto criativo o façam de fato me esquecer, e isso seria um grave erro. Estou agora contando com 39 anos, e a última vez em que escrevi sobre mim mesmo tinha 33, e olhando para aquele Heráclito, sinto que muitas das dificuldades que ele viveu não foram apenas superadas, mas construíram diversas das qualidades que exibo hoje, mas certamente eu não sou mais aquele homem de 33 anos, ainda tão confuso e lidando com a rejeição de seu próprio pai e com os desafios de tornar-se, ele mesmo, um pai, ainda tão prisioneiro do próprio intelecto e lutando arduamente para se comunicar, para falar para as pessoas sobre tudo aquilo que lhe era vitalmente importante. Em comum com ele tenho ainda o fato se permanecer um judeuzinho pobretão, rogo para que não seja o seu caso, mas mesmo nesse quesito, estou melhor hoje do que ontem.
Também chego à modesta conclusão, que às portas da meia idade, estou começando a fazer as pazes com muito daquilo que perdi, daquilo que fazia aquele Heráclito alguém tão peculiar, e, somente agora, posso tentar conciliar com alguma maturidade. Este ano foi, talvez, o ano mais importante da sua curta vida, ao mesmo tempo, foi o ano em que o destino engendrou de dentro de você o dragão que finalmente te derrotou, em que finalmente sua alma te cobrou um preço mais alto do que você foi capaz de pagar e, depois de colar os pedaços da sua vida, estilhaçada pelo desastroso casamento que aquele Heráclito imprudente de 33 anos nos meteu, sua vida se partiu novamente, mas de dentro e não por fora. Por isso, meu caro, é crucial que você se recorde de algumas das lições que aprendeu, por isso me dou ao trabalho de lhe remeter essa missiva, para que os meus dissabores não sejam os seus. Tudo o que eu sangrei nesse ano, espero que regue o jardim da sua vida em um futuro não tão distante, talvez daqui há seis anos, quando realmente formos completos estranhos.
Mas me alongo em prolegômenos, talvez por sentir que a tarefa que tenho diante de mim é demasiada, há tanto a ser dito e não creio que tenha a arte necessária, ou a coragem, ou mesmo a força, visto agora estar alquebrado, para lhe transmitir aquilo que deve ser registrado a ferro e fogo em sua alma. Nossa alma.
Não resta dúvida que você é um homem extraordinário, mas lembre-se meu caro, ao contrário de tudo o que você julgou por 39 anos, você é tão ciumento quanto qualquer um, pode ser tão controlador e invasivo quanto qualquer um, e não possui metade da paciência que julgava ter. Você simplesmente não se importava o bastante para que a paciência fosse como uma lâmina sobre o seu coração, nunca sentiu ciúmes por jamais ter amado ninguém, essas supostas qualidades que você sempre julgou ter, inclusive sua proverbial calma diante de situações adversas, não passavam de um reflexo distorcido da sua frieza e ausência de sentimentos, quando eles foram adicionados à equação, você agiu de maneira canhestra e inábil, mais do que seria de se esperar de um homem da sua idade.
Maturidade não é algo linear, seu intelecto amadureceu cedo, cedo demais eu diria, e isso teve um preço que agora estou pagando. Aprender rápido não é necessariamente uma virtude, o poder acaba vindo antes da sabedoria para usá-lo. Você não deve se fiar demais em seu intelecto, por mais poderoso que ele seja, muitas vezes é a arma inadequada para encarar aquilo que surge e sua vida. Sua intuição é muito boa, mas algumas vezes eu não acreditei nela, isso foi um erro, um erro que cometo há anos, siga a sua intuição, escute o que os seus demônios têm a lhe dizer, mesmo aqueles que parecem apenas querer feri-lo, esses têm a língua afiada por dizerem a verdade. Prefira sempre a verdade ao autoengano. Por favor, tente não tornar coisas banais e simples em fontes intermináveis de ansiedade, somente faça o que tem que ser feito, não pense demais, lembre-se de ser mais prático. Seu charme e competência não vão lhe livrar de ter de fazer o que é esperado de todos os demais, seu talento não é um passe livre para agir como se não precisasse ter as mesmas responsabilidades, esse lado da sua infantilidade não é charmoso, é apenas ridículo e pode lhe custar caro.
Eu sinceramente espero, que aquilo que começa a acontecer comigo já esteja firme e cristalizado em você, meu amigo. Sempre tive uma tendência epimeteica terrível de me deixar guiar pelas opiniões de outrem, de usar isso para afetar humildade e mostrar que não sou um sujeito arrogante. Isso só me desviou de mim, e os conselhos bem intencionados das pessoas agora só me irritam. Tenho passado mais tempo só, espero que não se esqueça disso, de ficar só, pois é indispensável ao estudo que você tanto ama, e a criação, que é o sentido de sua vida – isso não vai mudar, não mudou desde os 4 anos de idade. Ficar sozinho te permite refletir sobre os motivos de fazer as coisas que você faz, de fazer planos, de ponderar sobre o que deu errado e de confabular com seus demônios. Não os tema, em breve tomarei as medidas necessárias para que você ou mergulhe ainda mais profundamente em sua alma e retorne mais sábio ou simplesmente enlouqueça. Qualquer uma das possibilidades, nesse momento, me parece interessante. Se estiver louco, talvez essa missiva lhe dê uma nesga de sanidade. Firmeza interior é importante, finalmente a sabedoria do I Ching faz sentido quando ele diz que a firmeza deve estar do lado de dentro e suavidade do lado de fora. Não há motivos para temer a escuridão, ela é uma ótima companheira se souber como lidar com ela, tudo o que você sempre julgou que lhe atormentava vindo das trevas estava guardado no seu peito, e está lá mesmo com a luz do dia.
Cuidado ao queimar com muita intensidade, pois essa chama tem um brilho esplêndido, mas se consome muito rápido. Tudo pelo que passamos até agora, que eu passei, deve agora, depois de tantos anos ter te ensinado o valor do comedimento, da paciência e da calma verdadeira. Não se afobe, é preciso julgar as coisas com cuidado, e isso leva tempo, especialmente para mim, que não passo de um tolo no que diz respeito ao valor. Olhando em retrospecto, minha vida foi um pesadelo intelectual, em que jamais soube aquilatar o que os eventos dela realmente significaram para mim em termos de valor.
Lembre-se, por favor, de outra quimera que sempre foi tão subjetivante para nós Heráclitos, você não é corajoso como pensa ser, mas apenas imprudente e insensato. Sua imprudência pode ser uma virtude, mas apenas se temperada por compaixão e altruísmos, do contrário é apenas o sinal inequívoco da sua neurose. Só se pode ser genuinamente corajoso quando se é capaz de sentir medo. Naquilo que realmente importa, você é tão covarde quanto todos os demais, e, ao saber o que realmente importa, agora nós sabemos, surge a possibilidade de ser realmente corajoso e não um tolo imprudente que age sem pensar. É preciso saber o que realmente importa, meu caro, ou você sempre vai meter os pés pelas mãos. Lembre-se, você é um covarde, lembre-se de que só podemos lidar com um inimigo que conhecemos, saber que você é um covarde te dá a oportunidade de ser bravo. Eu sou apenas um idiota que encararia o perigo apenas por ele estar lá, e porque nunca se deparou com algo que realmente o intimidasse, e secretamente, nos recantos mais obscuros do seu coraçãozinho, você sempre flertou com a morte. O caminho do samurai é encontrado na morte, sempre te pareceu algo bonito, mas se você não ama e edifica a vida, se não se importa, a morte não pode jamais ser um sacrifício genuíno. A vida não é simplesmente o intervalo de tempo que você usa para escrever o seus livros, é preciso amar a vida, mesmo naquilo que ela tem de horrendo, não apenas em termos teóricos ou metafóricos, agora, meu caro, se você usar realmente sua proverbial memória, você sabe muito bem do que se trata o horror em sua vidinha miserável.
Finalmente meu querido amigo, vamos à parte mais sensível dessa carta, justamente aquilo que devo pedir encarecidamente que você jamais esqueça, ou minha existência terá sido em vão. Sei que logo desaparecerei para dar lugar a você, mas tenho sofrido tanto e suportado tanto e aprendido tanto que você me desonraria e prestaria um desserviço a si mesmo se ousasse esquecer tudo isso. Meu recato não me permite entrar em detalhes, mas vou lhe lembrar do essencial. Seu coração é mais jovem do que o restante de você, nesses vinte anos de dedicação a sua alma, você habilmente levou anos e anos para entender o óbvio, mesmo com toda a insistência do seu espírito, e assim fugir da luta mais importante, devido a isso, os Heráclitos que me antecederam deram passos modestos, que resultaram na minha atual adaptação social, porém, para mim ficou a parte mais ingrata do caminho. Perceber finalmente as quimeras que cegaram nossos antecessores, que sempre estiveram embevecidos demais com a própria mente, cegos pela própria teimosia, e exageradamente cônscios da violência e habilidade de que você seria capaz se assim desejasse, para enxergar o real problema. Mal esse véu se rasgou, mal eu adquiri algum grau de realismo, e todo o problema que se avolumou no seu coração por décadas veio à tona aos borbotões.
Sua alma é uma bruxa ingrata, que ou te faz correr atrás de diversas mulheres ou te amarra a mulheres inadequadas. Infelizmente, seus sentimentos são ingênuos e sinceros quando finalmente aparecem. Os feitiços de sua alma, que te enredaram por tanto tempo nas teias dessas maldições parecem estar se quebrando, mas a que preço! Cuidado a quem você vai entregar o seu coração, ao primeiro sinal de egoísmo e narcisismo fique alerta. O Heráclito que escreveu o texto aos 33 anos era alguém bondoso, ingênuo e descuidado, inapto socialmente ao ponto da caricatura. Sua bondade vinha de sua ingenuidade, hoje, creio eu, que depois de passar pelo terrível ordálio pelo que passei, posso novamente ser bondoso. Não por ingenuidade, mas por saber o que as pessoas sentem, como dói, como é terrível. A dor pode ter o condão de destruir, mas igualmente de criar, eu já vi os efeitos destrutivos da dor, a morte interior que ela pode causar, a devastação que deixa para trás apenas uma casca vazia que se julga invencível, ou pior, que deseja que o mundo se converta no deserto que é a alma daquele que padece. Lembre-se, você jamais será inabalável, do contrário não poderá sentir compaixão. Para mim, meu caro, para sua ventura, a dor foi criativa, e didática. Finalmente pude sentir em primeira mão a dor que meu egoísmo causou em tantas pessoas, pois para nossa eterna vergonha, sempre que havia a menor possibilidade de seus sentimentos surgirem, os Heráclitos que nos precederam foram apenas tremendos egoístas, desprovidos de compaixão e grandes filhos da puta. Eu lamento por eles, mas lamento mais por mim que tive de pagar esse preço. Não importa o quanto você sofra, lembre-se que há beleza nesse mundo, há pessoas a serem amadas, confortadas, ensinadas, que quanto mais bondade você puder trazer a esse vale de lágrimas, melhor. Não é possível ser bondoso e egoísta, isso não passa de uma farsa, não é possível ser bondoso apenas por um desígnio intelectual. Não é possível amar sem ter consciência dos próprios sentimentos, e por essa consciência se paga um preço tão elevado que nesse exato momento eu penso não ter valido a pena. Eu espero sinceramente, Heráclito, que você possa ler essas linhas e pensar “valeu sim”.
Nenhuma dor, nenhuma decepção, meu caro, vale o preço de deixar de crer naquilo que eu descobri, não meu amigo, sei por experiência própria que seus sentimentos são valiosos e, apesar de singelos, têm também uma qualidade adamantina insuspeita. O fluxo da vida tem um jeito engraçado de nos pregar peças, nesse exato instante, eu pensei que essa carta me custaria um pedaço da minha alma, que seria uma dor inenarrável ponderar sobre tudo isso para que você possa tirar melhor proveito da minha existência. Não foi tão duro, mas creio que ao chegar próximo ao final dessa longa missiva, percebo que essa carta também é o meu testamento, minhas últimas palavras dirigidas ao homem que vou me tornar, pois sinto que a minha morte está mais próxima do que imaginava, hoje fui ferido de morte, e creio que o choque me fez ainda não sentir a profundidade do golpe, eu certamente sentirei com o tempo, só espero que essa dor não te atinja. Meu espectro ainda vai te rondar por um bom tempo, essas lembranças vão te assombrar, mas creio que quando você estiver lendo isso, e eu há muito tiver desaparecido, serão memórias agridoces. Minha vida e a minha morte devem ser o começo do seu triunfo, torne-se o homem que está predestinado a ser, nossos antecessores perderam muito tempo, não há mais tempo a perder. E com um último alento, lhe peço, seja responsável, sempre arque com as consequências dos seus atos, não há nada mais fundamental.
Quase me esquecia! Você fez em seu braço uma bruxaria para não se perder, mas se perder é fundamental, perca-se! O país do castelo do Graal é o lugar a que só se chega sem o saber! A jornada verdadeira da aventura só começa ali onde não há caminho, finalmente, finalmente aprendi verdadeiramente essa lição, não a esqueça. Perca-se e tudo ficará bem. Estou perdido agora, é duro, mas sei que o caminho que leva a mim mesmo jamais foi trilhado por outrem, não há mapa, não há marcas, e é imprescindível se perder. Estou perdido agora para poder encontrá-lo, caríssimo amigo, e você continuará essa jornada ali onde eu tombar, e será em breve, marque o lugar da minha queda com uma rosa, uma com 3 espinhos.
Sinceramente seu, Heráclito 06/06/2018

segunda-feira, 4 de junho de 2018

As histórias de amor de Tolkien, Campbell e Jung


Tenho refletido ultimamente sobre a natureza do amor, mas em termos abstratos, creio que ele seja impossível de capturar, como Proteus o ancião do mar, que sempre que era agarrado assumia uma nova forma e escapulia. Tive uma inspiração, todavia, sobre como tratar desse tema de uma maneira menos fugidia, como de costume, a fagulha de inspiração veio de fora, ao ler uma reportagem acerca de uma exposição sobre a vida de Tolkien. Tenho alguns poucos heróis, dentre eles alguns dos homens que moldaram com suas obras a minha vida e o meu destino, entre eles, os modelos que tive para a minha vida adulta, estão Joseph Campbell, Carl Gustav Jung e J. R. R. Tolkien. Por isso resolvi escrever um pouco sobre as histórias de amor de meus heróis intelectuais, e pais do meu espírito, a quem devo tudo. Talvez assim ilumine algum recanto obscuro da minha própria alma e compreenda melhor como o amor me afeta.
Começo pela que eu acho mais bonita e singela, e que sei de cor, literalmente, como Joe Campbell conheceu sua esposa Jean. Campbell tinha acabado de voltar da Europa, tendo desistido de defender sua tese de doutorado, e em seu retorno teve de lidar com os efeitos da grande depressão de 29. Ele passou dois anos “no mato”, lendo, tendo apenas dois dólares na carteira. Após esse período, ele enviou dezenas de cartas com seu currículo em busca de emprego, até que sua antiga escola o contratou como professor. Um emprego do qual ele não gostava, lembrem-se, esse ainda não era Joseph Campbell, o autor, apenas Joe Campbell, nem mesmo seu primeiro livro A Squeleton Key to Finnegans Wake havia sido publicado ainda. Foi quando recebeu o convite para lecionar no Sarah Lawrence College, uma escola superior apenas para garotas. Joe não estava lá muito empolgado, mas em dado momento ao se ver cercado de belas garotas pensou que não seria mal trabalhar ali.
Campbell era um professor severo, que para evitar qualquer mal entendido exigia ser chamado pelo sobrenome por suas alunas, ainda assim muitas se apaixonaram por ele, sem que jamais o severo professor aceitasse as investidas. Ele conta, porém, que um dia, depois de algumas semanas, notou que em algumas aulas ele se sentia acelerado, levou alguns meses até que descobrisse a causa dessa sensação, era Jean. Enquanto ela foi sua aluna, cultivou uma discreta relação de amizade e proximidade com ela, sem jamais fugir ao decoro de professor. Apenas quando ela se formou, antes de sair em um cruzeiro com os pais ele lhe deu um presente que qualificou de “carregado”, uma cópia do Declínio do Ocidente de Spengler. Quando ela retornou, ele finalmente a pediu em casamento. Ele narra que, quando saíram de carro para a lua de mel, cruzaram com um carro fúnebre, e Campbell interpretou isso como um sinal de que ficariam juntos até a morte, e assim foi. Jean dividiu a vida com Joseph Campbell até o dia de sua morte, ela ainda está viva, tem 103 anos e é uma mulher extraordinária. Nunca tiveram filhos.
Tolkien tem uma história igualmente interessante e singela, da maneira como conheceu e casou com sua amada esposa Edith. A verdadeira história de Beren e Lúthien. A história de amor de John e Edith. Em carta ele escreveu sobre amor e casamento, eu traduzo:
Quase todos os casamentos, mesmo os felizes, são equívocos no sentido que quase que certamemte os parceiros poderiam ter encontrado pares mais adequados, mas a sua verdadeira alma gêmea é aquela com a qual você se casou.

Nenhum homem, por mais verdadeiro que tenha amado sua prometida e noiva na juventude, viveu fiel a ela de corpo e alma sem um esforço deliberado e consciente de vontade, sem auto renúncia.
Tolkien acreditava ardentemente no amor verdadeiro e em seu poder, mas sabia que os homens e mulheres de carne e osso precisavam sempre fazer a sua parte.
John e Edith se conheceram na adolescência, e se apaixonaram perdidamente um pelo outro, ele tinha apenas 16 anos e ela 19. Seu tutor legal, devido a morte prematura de seus pais, o padre Francis Xavier Morgan não estava nada satisfeito com o romance, pois a jovem era Anglicana e não católica. Ele proibiu John de ter qualquer contato com ela até que completasse 21 anos. Ele obedeceu e pacientemente esperou pelos próximos 5 anos. Eu mal posso começar a imaginar a agonia terrível que foram esses 5 anos, 5 longos anos, e só posso crer que o apóstolo Paulo estava correto ao afirmar que o amor é paciente. Ele escreveu ao seu filho Michael contando sobre a extraordinária provação desses longos anos, de como isso foi terrivelmente duro para ela, e de como ele jamais se queixou de qualquer ação tomada por Edith, pois não tinham nenhum voto ou juramento. Nos primeiros 3 anos ele sequer a escreveu, e viveu na mais estrita obediência a vontade de seu tutor.
Na noite em que John completou 21 anos ele finalmente se encontrou com Edith sob o arco de uma ponte, e declarou sou amor a ela novamente, bem como o desejo de passar o resto da vida ao seu lado. Edith, convencida da sinceridade de John, devolveu o anel de noivado que recebera de outro pretendente, desmanchando os planos de casamento, converteu-se ao catolicismo e anunciou publicamente, pouco tempo depois o seu noivado com o estudante pobretão de Oxford. Quando Tolkien esteve nas trincheiras da primeira grande guerra, de onde escapou com vida miraculosamente, todos os seus amigos morreram, ele levava consigo uma carteira que continha apenas 2 fotos de sua amada Edith.
Finalmente chegamos a Jung, talvez o mais turbulento e complicado dos meus 3 heróis. Assim como eles, quando conheceu sua futura esposa, nem de longe era o gigante intelectual que viria a ser, mas apenas um estudante pobretão de medicina, tendo que tomar um vultuoso empréstimo de seu tio, e trabalhar como marchand amador para sua tia para poder custear seus estudos. Não fosse isso o bastante, ainda tinha que lidar com as excentricidades de sua mãe.
Emma Rauschenbach era filha de Bertha Rauschenbach-Schenk, que Jung casualmente viu passando por entre a luz difusa das folhagens de uma árvore e que com seus olhos azuis e cabelos dourados, nessa época uma bela jovem, lhe causou profunda impressão. Mal sabia ele que a reencontraria 21 anos depois e que seria a sua sogra. Muitos anos depois de ter conhecido sua futura sogra, quando ele ainda estava no Gymnasium, Carl foi visitar seu pai, que estava em Sachseln e aproveitou a ocasião para visitar o eremitério onde vivera o santo suíço Bruder Claus. Ele ficou fascinado com a atmosfera do lugar, e ainda sob esse efeito de fascínio, quando descia da colina se deparou com uma jovem beldade loira, esguia e vestindo roupas tradicionais de camponesa que lhe causou grande impressão. Eles desceram o caminho juntos e o jovem Carl tentou conversar com ela, mesmo que desajeitadamente, pois não havia garotas no colégio. Após algumas tentativas ele percebeu que “havia uma parede impenetrável entre eles” e permaneceu calado pelo resto do caminho.
Interiormente Carl ficou abalado com esse encontro por muito, muito tempo, e parece ter acordado do estado infantil de sono inconsciente acerca de sua própria alma. Como ele mesmo afirmou, como ele poderia perceber os fios do destino que ligavam Bruder Klaus aquela bela jovem e a ele mesmo? Ele não podia, mas eles estavam lá.
Tempos depois, Carl ainda era um estudante em Basel, no seu segundo semestre, e estava prestes a visitar um amigo em Schaffhausen, justamente o local onde passara sua infância. Ao saber desses planos, sua mãe sugeriu que visitasse a senhora Bertha Rauschenbach, a jovem de belos olhos azuis que ele conhecera na infância. Carl tinha 21 anos e não a via há pelo menos 20 anos, e iria apenas cumprimentar a senhora Rauschenbach e levar os cumprimentos de sua mãe. Quando ele chegou a casa da rica família, ele viu de relance uma garota loira com os cabelos presos em dois rabos de cavalo e de súbito soube que se tratava de sua futura esposa. Emma Rauschenbach contava nessa época 14 anos. Em suas memórias ele escreveu,
Eu estava completamente trêmulo, pois eu a tinha visto por apenas um breve instante, mas eu soube imediatamente, com absoluta certeza de que ela seria a minha esposa.
Quando Jung contou isso a um amigo ele riu a valer, especialmente pela família Rauschenbach ser muito bem situada socialmente e financeiramente, ainda por cima, Jung não trocou nenhuma palavra com Emma. Seis anos depois, já com um diploma de medicina nas mãos, e ainda profundamente convencido do poder avassalador de sua intuição ao vê-la, Carl pediu Emma em casamento, mas ela o rejeitou. Jung não desistiu, e lhe escreveu inúmeras cartas apaixonadas, todas carregadas de grande beleza e sensibilidade. Emma não resistiu ao charme do jovem Jung e na sua segunda proposta de casamento ela aceitou. Quando ele viajou para estudar em Paris com Pierre Janet em 1902 eles já estavam noivos e se casaram em 14 de fevereiro de 1903.
Emma era brilhante, linda e rica, era uma mulher quieta e de forte personalidade, muito observadora e de uma aguda inteligência. Seus livros sobre a psicologia feminina e as lendas do Graal são um testemunho de seu brilhantismo e profunda compreensão da Psicologia criada pelo seu marido. De acordo com Aniella Jaffe, a calma e tranquilidade interior, que Emma emanava compensava o temperamento vulcânico do marido.
O que eu posso aprender com os meus mestres no que diz respeito ao amor e aos sentimentos, além de seu imenso legado intelectual? Todos eles tiveram uma formidável paciência e persistência, e não duvidaram da verdade e intensidade do seu amor. Todos eles foram arrebatados pelo inconsciente, como Jung acreditava, decisões realmente importantes, como a escolha de uma parceira para a vida toda, não devem ser simplesmente ponderadas conscientemente, mas sim emergir do inconsciente e serem guiadas pelas mais profundas necessidades de nosso ser, de nossa totalidade e não apenas da consciência. Os três tão similares, todos intelectuais, professores e escritores, interessados em filologia e mitologia, todos grandes criadores imensamente criativos e intuitivos. No campo do amor se deixaram guiar pelo fio do destino traçado desde as profundezas de suas almas, sem que o soubessem ou pudessem explicar, foram persistentes e pacientes, suportando o sofrimento da rejeição e da separação, mas sem jamais desistir daquilo que emanava de seu ser mais profundo. Assim como em tudo o mais na minha vida, me resta me inspirar nos gigantes que moldaram o meu espírito, talvez haja aqui lições importantes a serem aprendidas, me resta o esforço de compreendê-las.



segunda-feira, 21 de maio de 2018

Os Amantes, Magritte


Os Amantes, Magritte

O quadro de René Magritte, sugestivamente intitulado “os amantes”, mostra duas pessoas com os rostos cobertos com panos brancos no ato de se beijar. Meu intuito aqui é analisar psicologicamente o quadro, sem enveredar por debates estéticos ou históricos, nem mesmo fazer remissão ao solo de onde à obra brotou o seu contexto, o que, a rigor, seria importante. Como meu estilo é franca e abertamente impressionista, creio que posso me dar ao luxo de deixar essas coisas em suspenso neste ensaio.
O quadro parece representar, em um instante, uma característica comum do enlace amoroso, os dois se beijam, um gesto íntimo que antecede o ato sexual, porém não são capazes de se enxergar, nem mesmo de se tocar, pois suas cabeças se encontram envolta em um tecido branco. O branco em termos simbólicos possui uma conotação de pureza, de algo imaculado, sendo igualmente na China o no Japão a cor do luto e não o preto. A pureza extrema representada pelo branco também possui a tendência de atrair o seu oposto, justamente aquilo que deseja maculá-la, como nas diversas fábulas do encontro do cordeirinho com o lobo, pois a pureza é uma situação irreal e raramente sustentável por um período prolongado. Assim, me parece que há uma ausência de contato que não seja mediado pelo tecido que os encobre, uma ingenuidade acerca do outro, uma cegueira mais ou menos proposital, ainda mais, pois as bocas mal se roçam, o que eu beijo, na verdade é o tecido diante dos meus lábios, aquilo que está diante dos meus olhos de maneira imediata e que entra em contato direto e íntimo com a minha pele não é a pele do outro, mas o pano alvo. Não se trata sequer de uma máscara que busca esconder, ou dissimular, com o rosto totalmente cobertos, ambos estão às escuras, são duas pessoas que se tornaram cegas em virtude do estranho “véu” que lhes impede o contato, e, mesmo que um deles pudesse remover o tecido que lhe cobre toda a cabeça, restaria aquele que recai sobre o outro. Porém, qual dos dois nos é dada a possibilidade de remover, o nosso pano ou o que está sobre o objeto amado?
A cabeça também possui um curioso simbolismo, especialmente na alquimia, pois é redonda, a forma perfeita e assemelhada assim no microcosmos a abóboda celeste. A cabeça é igualmente a sede do pensar, da ponderação e o local onde se localizam os órgãos dos sentidos, sendo importantes aqui os olhos e a boca, creio eu. Os olhos por seu formato redondo são igualmente comparados na simbologia as esferas celestes, na mitologia japonesa dos olhos de Izanami nasceram os espíritos do sol e da lua, tendo eles uma clara vinculação com a luz. Com a cabeça coberta completamente, não podem ver, e sua capacidade de pensar se encontra reduzida, são cegos em relação um ao outro e com relação a si mesmos, aquilo que os conecta ao infinito, ao se pensar nos chacras indianos que se localizam na cabeça, sendo o último fora dela e que conectam o humano a experiência mística mais elevada também se encontram bloqueados, não permitindo a união apenas em seu plano físico, mas igualmente espiritual. Não me enxergo e também não enxergo o outro.
Jung ao tratar do enlace erótico salientou a possibilidade de existir uma relação apenas entre indivíduos. Um indivíduo é alguém que conseguiu em alguma medida não ser tão dividido no que concerne a si mesmo e seus instintos mais básicos e saudáveis, mas igualmente alguém que se diferenciou da multidão, tarefa ingrata e difícil. Como ele mesmo afiançou, cada uma de nossas ideias e opiniões é determinada historicamente em seus mínimos detalhes, somos em larga medida aquilo que nossa família é e nem suspeita ser, aquilo que nossos amigos são e nem sequer sabem que são, aquilo que nossa escola é e que em nós penetra insidiosamente por meio de nossas inferioridades psíquicas. Somos aquilo que medra no coração das pessoas de nossa sociedade, mas que eles silenciosamente desconhecem, mas que ainda assim age com suprema força sobre suas vidas e seus destinos. Somente entre indivíduos, que em primeiro lugar conhecem a trave em seus próprios olhos, é que essa mortalha pode ser levantada, ao menos um pouco. Nossa equação pessoal, nossa constelação subjetiva de complexos é algo inalienável e inescapável, não há objetividade possível, pois tudo o que percebemos é filtrado pelo que somos, quer saibamos ou não. Como Jung salientou em seu Tipos, só podemos ver o cisco no olho de nosso próximo devido a trave no nosso, mas se não conhecemos a trave em nosso olho fatalmente pensaremos que todos os ciscos são traves. Dito de outra forma, só podemos compreender e perceber nos outros aquilo que existe em nosso psiquismo, assim, a possibilidade de algum grau de objetividade só vem por meio do autoconhecimento. O que Jung compreende por autoconhecimento não é o conhecimento do eu e de seus conteúdos, mas do inconsciente, é justamente aí que somos idênticos a todos os demais e que urge reconhecer e se diferenciar, sem conhecer sua própria equação pessoal não é possível distinguir entre si mesmos e todos os demais.
Aqui entram diversas sutilezas a se considerar, se quisermos compreender a mensagem do quadro de Magritte no que concerne aos descaminhos eróticos. Nossa vida em sociedade nos impele a fazermos uma série de compromissos com a sociedade e suas exigências, algo que fazemos ao custo de nós mesmos, sendo uma identidade total com as expectativas sociais impossível, surge uma estrutura coletiva de um compromisso que assumimos com a sociedade que Jung denominou de persona, uma máscara, que existem em nítido contraste com a atitude inconsciente de nossa alma e é compensada por ela. Em muitos casos a máscara e o rosto se confundem, e passamos a crer que possuímos de forma pessoal a dignidade que nos vem de fora pela participação, mais ou menos voluntária na sociedade, isso leva a uma revolta por parte da alma inconsciente que tende a se personificar e a se projetar. Noutros casos, nos identificamos com a natureza luminosa e clara, porém unilateral de nossa atitude consciente, bem como da função psíquica que a caracteriza, desprezando tudo aquilo que não condiz e é excluído pela ação selecionadora da atitude. Tudo aquilo que é real produz uma sombra, somente coisas bidimensionais e irreais não projetam uma sombra, e a qualidade dessa sombra vai depender da qualidade daquilo que a produz.
A maioria de nós vai viver acreditando possuir qualidades ilusórias e que determinadas coisas negativas não acontecem e nem podem acontecer conosco ou nosso meio mais imediato, somos movidos por renhidos preconceitos afetivos e quimeras de toda sorte. Assim, ao não reconhecermos aquilo que julgamos não ser, mas secretamente o somos, encontramos sempre e de novo isso no outro, em nosso semelhante por meio da projeção. Não raro em mitos de contos de fadas a projeção, positiva ou negativa, é compreendida e simbolizada como um tecido ou rede jogado sobre alguém. Como no conto de fadas em que a princesa precisava trançar um tecido de flores para cobrir seus irmãos transformados em cisnes e assim os libertar. Nem toda projeção é ruim, a projeção passiva representa o princípio do Eros, que secretamente une e enlaça, sem ela não haveria interesse por nenhum objeto. Só podemos compreender algo ao projetarmos sobre ele, mesma a empatia e a compreensão seria impossível sem isso. Todavia, tudo o que é genuinamente anímico é ambivalente, e há um lado terrivelmente negativo da projeção. No caso da sombra, como afiança Jung, se não a conhecemos o mundo passa a ser um construto subjetivo, porém desconhecido, não somos capazes de lidar com o mundo e as pessoas, mas apenas a nossa própria inferioridade projetada. Von Franz, ao se referir a função inferior, aquela que vive aparentemente, apenas aparentemente, adormecida nas trevas da inconsciência, nos lembra que muitas vezes a escolha amorosa se pauta por isso, procuramos aquilo que nos falta e nos compensa, mas ao preço de permanecermos inconscientes, ao preço de termos para sempre nossas cabeças cobertas por um espesso véu. Não ter uma boa relação com a função inferior causa igualmente um problema erótico e um social, pois sem isso enxergaremos projetivamente essa inferioridade, onde somos lentos, infantis, negativos e arcaicos nas camadas inferiores da pirâmide social, secretamente odiando neles aquilo que medra em nossos próprios corações. Ali onde há essa inferioridade nos tornamos inseguros e, por isso, melindrosos e tirânicos, propensos a explosões emocionais que caracterizam tantos relacionamentos amorosos.
No que concerne especificamente ao enlace amoroso, os dois grandes demônios em nós que são o fator criador de projeções são a anima e o animus. A anima é uma fantasia de relacionamento erótico, uma espécie de sistemas de expectativas do homem em relação à mulher. O Animus é o logos inconsciente feminino, o espírito masculino que compensa no inconsciente a feminilidade consciente, e produz opiniões irrefletidas assim como a anima produz nos homens humores e melindres. Ambos podem causar, quando extrovertidos, ou seja, projetados, o que Jung chamou de ofuscamento animoso, uma escalada de emoções irracionais e cada vez mais intensas que impedem uma real comunicação e relacionamento. O lugar desses espíritos é o de psicopompo, não entre a consciência e as pessoas amadas, mas regulando a relação daquela com o inconsciente. A anima é a proverbial Maia, que recobre tudo com mil véus de ilusão, mas é igualmente o arquétipo da vida. O animus aprisiona a mulher com certezas e pensamentos vingativos e rancorosos, a confinando num casulo de opiniões e cortando as relações mais vitais que ela possuir, mas em seu aspecto positivo é o espírito da verdade interior. Esses elementos estruturais numinosos da psique, desde tempos imemoriais lançam seus teias sobre o mundo, cobrindo nossos rostos e nos impedindo de ter contato intimo real, nos cegando para o outro e nos impedindo de realmente amar. O véu, que recobre o rosto de nossos amantes foi colocado aí por algo em nós que nos ultrapassa, mas que podemos ao menos nos relacionar e que por eras sem fim foram compreendidos, com justiça, como deuses e demônios.
O véu não passa de um encanto, que nos enleva, mas nos prende em algo autoerótico e narcísico, e nos priva daquilo que nos é tão importante para sermos capazes de perceber nossos próprios sentimentos: o outro. Para Jung o amor é uma atividade, ele só acontece quando somos senhores de nossos sentimentos, ou seja, quando temos consciência deles, ao termos consciência de nossas sombra, de nossa inferioridade, somos devolvidos ao seio da humanidade, não permanecemos inflados com pretensões impossíveis e quiméricas sobre nós mesmos, somos tornados humildes. Somente quando conscientizamos nossos sentimentos podemos avaliar o que nos acontece, podemos saber o quanto os eventos de nossa vida são importantes subjetivamente para nós, e isso além de dar colorido ao mundo, nos torna humanos. Como podemos nos tornar conscientes de nossos sentimentos? Apenas na tentativa de remover de nós mesmos esse tecido que recobre o rosto dos amantes de Magritte, esse esforço, repleto de erros, de tropeços e sofrimento profundo é o que nos torna quem somos, é o que lentamente nos devolve a nossa humanidade. Não se enganem, haverão tropeços, e haverão lamentáveis mal entendidos, e, nesse caso, a única coisa a fazer é assumir a responsabilidade por esses tropeços, o que significa assumir plena responsabilidade pela nossa sombra e as nossas inferioridades, e assim carregar o peso do compromisso moral com nossos sentimentos e com o outro.
O quadro de Magritte traz dois amantes inconscientes, que amam apenas a si mesmos no outro, amam o capuz que colocaram em seu objeto de amor, ali revelado de maneira plástica, como é do feitio dos surrealistas está o inconsciente a nos encarar, ali vemos o abismo no qual estamos em queda livre, mas nem o percebemos. Os amantes serão amantes apenas quando chegar o momento de remover o véu e ver, pela primeira vez o rosto resplandecente do ser amado.

terça-feira, 1 de maio de 2018

Sobre Eros


Os seres humanos são extremamente diversificados, nossas condições e acidentes de nosso nascimento, bem como nossa genética e constituição psíquica tendem a apresentar uma estonteante diversidade, em tudo e por tudo somos diferentes, apesar de restar nessa diferença uma semelhança fundamental que nos permite enxergar algo de nós mesmos nos outros, e de tentarmos o esforço, muitas vezes vão, de compreender outros seres humanos, apesar de sabermos que, em última instancia, aquele outro ser permanecerá um mistério. Tanto é maior esse mistério quanto menos for nossa compreensão de quem realmente somos, num nível profundo. Quanto mais inconscientes nós formos de nossa própria equação pessoal, menor será nosso poder de enxergar a diferença, e, de maneira imperceptível, tenderemos a supor sempre uma semelhança insidiosa, abolindo à diferença em nome das trevas de inconsciência em que nos achamos mergulhados, e supondo sempre encontrar no outro a nós mesmos.
Assim como somos diferentes, nossas emoções tendem a ser diferentes e individuais, dentre essas poderosas forças que nos movem desde tempos imemoriais, nenhuma parece ser tão terrível, poderosa, misteriosa e diversa quanto o amor. Sócrates acreditava que em toda a Grécia apenas a sábia Diotima realmente compreendia o amor, ela não era um filósofa, mas poetisa. Diotima acreditava que Eros, o amor, era um grande daimon, um espírito poderoso ou deus que serve de mensageiro entre deuses e mortais, e refuta a ideia de Sócrates de que se o amor deseja o bom e o belo ele não deve possuir nenhuma dessas qualidades, mas como poderia um deus não possuir as qualidades da beleza e da bondade?
Para Diotima o amor nasce da união entre a abundância e a pobreza, como filho dessas duas entidades o amor possui suas qualidades. Ele é sempre pobre, severo, e difícil, descalço e sem morada certa. Mas ao mesmo tempo ele é bom e belo e responsável por aquilo que é bom e belo, que encontra no ser amado. Assim, para a poetisa de Lesbos, o amor se movimenta sempre entre os polos opostos representados por seus pais e caminha entre satisfação e desejo, sem jamais se deter em um deles apenas, pois essa é a sua herança. Para Diotima, o amor, Eros, é um filósofo que deseja a sabedoria, algo que soa estranho a filósofos acostumados a lógica fria e implacável do pensar, mas como ensinou Jung, apenas ao sofrermos o fogo dos afetos que nos queima até que resta apenas aquilo que não pode ser queimado, nenhuma mudança genuína pode surgir, apenas o amor nos permite a busca pela sabedoria. O amor, ela acrescenta busca a beleza, e a união da beleza do corpo e da alma.
Sócrates o mais sábio dentre os gregos não compreendia o amor, que esperança podemos ter? Em outro mito, Eros, esse grande demônio, é filho de Afrodite a deusa do amor e da beleza e Áries o deus da guerra. Assim como na fábula de Diotima, ele carrega as qualidades de seus pais a beleza e a discórdia, pois ao tratar-se da ligação entre pessoas diferentes, mesmo o mais belo dos amores não está isento da guerra, e se assim não fosse, não permitiria a busca pela sabedoria, como nos ensinou o velho Heráclito a guerra é o “pai” de tudo. Uma harmonia tépida não nos leva além de nos mesmos, não nos transforma, só a guerra transforma, mas ela sozinha não passa de violência e estupidez, apenas o amor consegue unir esses pares tão díspares e fazer de nós filósofos.
Entre aqueles que seguem a religião de Vishnu, uma religião do amor, há a crença na existência de 5 tipos diferentes de amor. Na verdade 5 diferentes estágios ou graus do amor, e por esses graus pode-se atingir a iluminação. O primeiro é o amor do servo pelo seu senhor, o caminho da obediência, o grau mais baixo, o caminho da religião da lei e seus mandamentos, como ensina Campbell, aqui não se despertou ainda para a presença divina.
O segundo grau é o do relacionamento entre amigos, aqui já existe o que no ocidente chamaríamos de amor, onde se abandona a lei e se pensa mais no amigo, e há a experiência do amor como ato espontâneo e não como obediência a uma ordem. Montaigne ao refletir sobre a perda de seu querido amigo Etiene de la Boétie nos legou uma das mais tocantes reflexões sobre a amizade,
Na verdadeira amizade, em que sou experimentado, dou-me mais ao meu amigo que o puxo para mim. Não só prefiro fazer-lhe bem a que ele mo faça, mas ainda que ele o faça a si próprio a que mo faça; faz-me ele, então, o maior bem possível quando a si o faz. E se a sua ausência lhe for quer prazenteira quer útil, torna-se-me ela bem mais agradável que a sua presença; e de resto não é propriamente ausência se há meios de comunicarmos um com o outro. Tirei outrora partido e proveito do nosso afastamento. Em nos separando, melhor e mais amplamente entrávamos em posse da vida: ele vivia, fruía e via para mim, e eu para ele, mais plenamente que se ele estivesse presente. Uma parte de cada um de nós permanecia desocupada quando estávamos juntos: fundíamo-nos num só. A separação espacial tornava mais rica a união das nossas vontades. A insaciável fome da presença física denuncia uma certa fraqueza na fruição mútua das almas.
Ao explicar as razões de amar seu amigo Etiene, ele nos presenteia com a bela resposta possível: “Porque era ele, porque era eu”.
O terceiro estágio é do pai ou mãe para com seus filhos, mais intimo e poderoso do que o amor entre amigos. Em japonês a palavras gostar (usada normalmente como amar) é formada por dois outros caracteres: o caractere para mulher o de criança.No cristianismo vemos o nascimento do bebê Jesus e suas representações no colo de Maria, a chegada dessa criança divina simboliza o despertar em nós a consciência de que o poder divino reside em nós, aqui há o despertar da verdadeira vida religiosa.
O quarto estágio do amor na religião de Vishnu é o que existe entre os casais, aqui cria-se o andrógino, a identificação com o outro. Depois de descobrir deus em seu coração, e nunca antes, você pode agora descobrir deus no coração de outra pessoa. Aqui há a reunião dos poderes divinos primordiais, anteriores a consciência do eu, quando macho e fêmea não estavam separado, quando logos e Eros viviam em um abraço amoroso, indiferenciados, onde toda a potência de vida pulsava ainda intocada e o mundo estava repleto de vida e vida em abundância. Com essa reunião, podemos experimentar conscientemente, esse estado místico, a união alquímica, que, por isso mesmo é entendida como eterna.
A mais elevada ordem do amor é aquele da paixão compulsiva e incontrolável, nada existe senão o amor, neste estágio tudo se esvai e só nos resta o amor. Como nos ensinou Campbell, estamos aqui diante do amor cortês, do coração gentil, onde o homem fica alucinado, capaz de feitos incríveis, mas percorre uma trilha estreita, pois ao seguir a sua paixão você está sozinho e não conta mais com o apoio da sociedade. Trata-se de algo divino, sem relação com as agruras da vida, mas é preciso sempre retornar a vida e redescobrir o valor que nela existe. Essa experiência maravilhosa em algum momento precisa ser interrompida e deve-se descobrir qual o tipo de relacionamento possível.
O casamento é antes de tudo um ordálio, pois o entrelaçamento de duas psiques deve levar em conta sempre o que surge dessa relação como algo mais importante do que as minhas tendências egoístas. Se você serve ao outro ainda está no primeiro estágio, mas se segue a transformação que esse contato entre duas almas gesta, mesmo que algumas vezes seja doloroso, então tem-se o casamento alquímico, uma experiência religiosa, um sacramento, onde algo de belo e terrível acontece a ambos, juntos. Uma experiência de transformação, que como nos mistérios dos Eleusis, queima-se no fogo tudo o que há de mortal e supérfluo. Algo que vai além do mero casamento biológico, ou seja, uma instituição sancionada pela sociedade para se ter filhos. No casamento que se afigura como um sacramento, não há um programa a ser seguido, ele é sempre algo de original, uma obra de arte que nasce da conjunção de dois corpos e duas almas, como nas lendas do Graal, onde os cavaleiros em busca de aventura adentram na floresta escura lá onde não há trilha. Sempre que você segue uma trilha trata-se do caminho de outra pessoa. Temos aqui a ideia medieval do coração gentil, de que antes da consumação carnal é preciso haver a comunhão espiritual.
Em Jung encontramos uma psicologia do amor ao pensarmos na problemática da Anima do homem e do Animus na mulher. A masculinidade consciente do homem é compensada pelo feminino em seu inconsciente e na mulher acontece o inverso. A masculinidade é regida pelo princípio do logos, que é discriminador e analítico e a tudo separa e divide, e, em termos psicológicos, masculinidade é saber o que se quer e como alcançar isso. O problema amoroso do homem, representado pela anima, uma imagem coletiva do feminino e da mulher que permite a ele se relacionar com as mulheres, é o de saber o que ele realmente sente. Nas mulheres, cuja consciência é regida pelo grande daimon Eros, que a tudo une e conecta, o problema que o seu espírito, o animus lhe propõe é: o que você realmente pensa? Qual é a sua cosmovisão? A anima, quando personificada envia ao homem humores terríveis, e o animus, quando personificado produz opiniões insensatas e bombásticas de tipo salvacionista que isolam a mulher dos objetos realmente amados num “casulo de opiniões”. Quando as projeções criadas por esses dois demônios são recolhidas, e eles não mais se interpõem entre os homens e mulheres e sua relação com o mundo, passam a agir como daimons, mensageiros divinos, pois a real função da anima é ser uma função de relação entre a consciência e o inconsciente e a do animus ser uma função de diferenciação entre a consciência e o inconsciente. Nada disso pode ser alcançado sem o fascínio e os problemas causados pelos dois daimons, que nos lançam a vida, a anima é o arquétipo da vida e faz o homem sentir a plenitude de sua vida como uma aventura, e nos enredam nas relações que nos libertarão desse mesmo fascínio e nos abrirão ao verdadeiro amor.
Para Jung, e isso foi algo que demorei quase duas décadas para entender, O amor é diferente do fascínio, ele é uma atividade, é algo consciente, depende de termos consciência de nossos verdadeiros sentimentos. O fascínio é algo que acontece devido ao inconsciente, e só terar um valor se eu puder extrair conscientemente disso o ouro alquímico, ou seja, descobrir por trás desse fascínio o pedaço da minha alma que se afastou de mim e foi passear pelo mundo, como a sombra de Peter Pan, não é à toa que quem costura ela de volta no lugar é Wendy. Se eu não consigo ampliar a minha consciência o fascínio não passa de um logro moral, já amor é algo que depende da consciência, de termos a posse de nossos sentimentos, e como vocês sabem, nada perturba mais o pensamento do que os sentimentos, e nada perturba mais os sentimentos do que o pensar. Todavia o amor, consciente e não mero fascínio, deve suportar esses opostos sem contradição e agir com o intelecto e a compaixão, para cavalgar as ondas de um relacionamento amoroso genuíno. Sendo uma atividade, algo consciente, o amor pode ser cultivado, crescer e se modificar, florescer.
Todas essas belas descrições de homens tão sábios falham sempre me capturar a essência do amor, nenhuma descrição intelectual e meramente racional poderia, pois o amor é razão e desrazão em igual medida. No fundo, a compaixão é um guia, especialmente quando entendemos que aquilo que é um valor para nós, pode ser um desvalor para o outro, que somos diversos, e que amar, amar genuinamente, pode se manifestar de diversas formas criativas e jamais pode ser confinado as experiências passadas que tivemos, as ideias que formamos sobre ele, aquilo que nos diz a sociedade, a igreja e a família sobre o amor. O amor é um menino de asas, brincalhão, irrequieto e que não tem a menor consideração pelo que os mortais acham justo ou correto, suas setas envenenadas uma vez lançadas são irrevogáveis.