sábado, 23 de agosto de 2014

Will Grahan, Hannibal, e as possibilidades e limites da empatia.

Will Grahan é o protagonista do romance Red Dragon, de autoria Thomas Harris, e, mais recentemente, um dos protagonistas do seriado Hannibal, e é justamento o Will do seriado (não suas encarnações literárias ou cinematográficas) que me leva a deitar a pena ao papel.
A personagem é um consultor do FBI que faz perfis psicológicos com uma notável habilidade, pois pode com facilidade se colocar na pele dos perpetradores. Utilizando a própria linguagem do seriado, ele seria portador de um raro “distúrbio de empatia”, assim, com essa capacidade, e o uso da imaginação (algo um tanto similar à imaginação ativa de Jung) ele consegue “adivinhar” os pensamentos e intenções que se escondem por trás de uma cena de crime, especialmente aquelas cometidas por psicopatas e assassinos seriais, que além de um modus operandi, possuem uma “assinatura”, ou seja, realizam de maneira mais ou menos compulsória ações que identificam e individualizam seus crimes, mas que não são necessárias para a consecução dos mesmos.
Meu intuito aqui é o de analisar justamente a possibilidade de “recriar uma forma de vida alienígena”, o que tem sido um debate importante no que concerne à hermenêutica e as ciências do espírito como pensadas por Dilthey, e, a relação da empatia com essa possibilidade. A empatia é um termo que é usado de maneira muito frouxa nos meios junguianos, a despeito de se tratar de um conceito com uma delimitação teórica e epistêmica precisa, normalmente, em virtude de uma vulgata humanista que se faz da obra de Jung e, de uma corriqueira falta de rigor, esse termo é utilizado mais como chavão do que como um conceito, e seu sentido é corriqueiramente haurido do senso comum, o que serve para mistificar e obscurecer o fenômeno ao invés de esclarecê-lo. Há que se notar que o referido seriado é extremamente sofisticado em termos psicológicos e não duvido que seus roteiristas tenha feito uma pesquisa considerável, especialmente no que concerne a análise individual, e não imputo ao roteiro qualquer “erro” no que concerne ao uso do termo, todavia, ao utilizá-lo e problematizá-lo aqui, ao invés do que é feito mais amiúde (mesmo em círculos junguianos), utilizo no sentido proposto por Jung.
O que Will faz, ao reconstruir geneticamente a ideia seminal do perpetrador dos crimes e que o permite compreender a cena do crime como a composição para dar forma a essa ideia ou meditação da parte do criminoso, é, justamente aquilo que Schleiermacher chamava de método divinatório. Parto da analogia, que justificarei adiante com Dilthey, de que a interpretação hermenêutica pode ser utilizada aqui, pois é justamente o modelo da compreensão (Verstehen) que é o processo de cognição próprio das ciências do espírito, não bastasse isso, a discussão de Schleiermacher sobre a interpretação psicológica e os métodos divinatórios e comparativos, possuem um inestimável valor heurístico para o debate que proponho aqui, que seja: pode Will por um método divinatório chegar a ideia que motiva o crime, tendo por uma base objetiva a “composição” da cena crime?
Em termos de uma “hermenêutica da cena do crime” Will se utiliza do método divinatório para ser capaz de reconstituir a individualidade do perpetrador, chegando às ideias que são expressas, mas não imediatamente evidentes (daí a necessidade de uma compreensão) na cena do crime. Como método, ele imagina, se colocando na pele do criminoso e vendo através de seus olhos, como o assassinato foi cometido e, por meio desse método ele descobre também o porquê. Na linguagem dos personagens do seriado, ele se utiliza de empatia para fazê-lo.
De acordo com Schleiermacher interpretar significa descobrir os pensamentos por trás das expressões. A linguagem é o aspecto comunitário do pensamento e existe uma conexão entre pensamento e linguagem, e, o papel do interprete é o de descobrir a ideia do autor de um determinado texto, seus pensamentos, que só se encontram acessíveis e exaustivamente expressos por intermédio da linguagem escrita ou falada. A hermenêutica, na perspectiva de Schleiermacher, como veremos, trata-se de uma arte, isso no sentido de que existem regras metodológicas, mas sua aplicação não é confinada por regras, do contrário seria um mero procedimento mecânico. O método utilizado por Will, que é altamente intuitivo, também pode, em certo sentido ser aproximado mais a uma arte do que a uma ciência em sentido estrito, ou, ao menos, a uma ciência ao gosto anglo-saxão.
O mesmo Schleiermacher divide o trabalho da hermenêutica filosófica universal em duas partes igualmente importantes: a interpretação gramatical e a interpretação psicológica. Na alegoria do trabalho de Will como um tipo de hermenêutica, vai nos interessar em especial a interpretação psicológica, que interpreta o enunciado como “um fato dentro do pensador”. Esse tipo de interpretação procura reconstruir os pensamentos do autor e a forma como são expressos. Nesse sentido, o que se busca é revelar a individualidade do autor. No círculo hermenêutico, considerado aparente por Schleiermacher, (a parte só pode ser compreendida por meio do todo e o todo só pode ser compreendido por intermédio das partes), existe uma interdependência entre o autor e seu contexto histórico/cultural, e esse tipo de interpretação pressupõe um conhecimento da época em que o autor vive e de sua biografia (no caso de Will ele desconhece a vida do perpetrador dos crimes).  Para realizar a interpretação psicológica deve-se descobrir a ideia motivadora que deu ensejo ao texto (ideia seminal), e a composição (o gênero, a escolha das palavras, as regras compartilhadas de lógica, bem como todos os acolhimentos e exclusões realizados pelo autor) é tida como a realização objetiva da obra. No caso de Will a composição é uma junção do modus operandi com a assinatura do assassino. A maneira ou as maneiras como ele deliberadamente ou inconscientemente deixou a cena do crime.  O interprete precisa também compreender a meditação do autor, a realização genética da obra, ou seja, como o autor organiza seus pensamentos. Na perspectiva de Schleiermacher, o interprete pode, a princípio, saber tanto quanto o autor sobre seu enunciado, mas seu real objetivo ao interpretar é saber mais do que ele, pois o interprete pode explicitar o que está inconsciente no processo criativo do autor. Interpretar significa se colocar objetiva e subjetivamente na posição do autor, que, mutatis mutandis, é o que Will faz. Para nos colocarmos subjetivamente na posição do autor precisamos nos libertar de nós mesmos.
 Esse tipo de interpretação se dá de duas maneiras: extensiva e intensiva. O talento extensivo se dá pela capacidade ou habilidade de comparar diversos seres humanos, e, com isso, reconstruir o modo de comportamento de outras pessoas, e o intensivo trata de descobrir o significado individual de uma pessoa em relação ao conceito de ser humano. Essa meta só pode ser alcançada por aproximação, pois uma visão individual nunca se esgota e sempre pode ser corrigida. Os métodos utilizados para essa tarefa, e que não podem ser separados entre si e sempre remetem um ao outro são: o método divinatório e o método comparativo.
O método divinatório é aquele que, em se transformando, por assim dizer, no outro, procura compreender diretamente o singular. O comparativo estabelece primeiro como um universal aquilo que deve ser compreendido e identifica então o peculiar, ao ser comparado com outros sob o mesmo universal concebido. Aquele é a força feminina no conhecimento do ser humano, este a masculina. (Schleiermacher, p.200).
Percebe-se com clareza que o método de Will é um método divinatório, esses dois métodos referem-se um ao outro, pois o divinatório se dá por comparação consigo mesmo, pois Schleiermacher supõe uma natureza humana comum, ou, para utilizar as palavras do próprio autor, o método divinatório se assenta sobre o fato de cada ser humano ter uma predisposição para todos os outros. Essa suposição de uma natureza humana comum se dá em bases kantianas. Schleiermacher compreende a linguagem como um conjunto de sinais criados pelos seres humanos por meio do processo de esquematização da experiência, o que é uma ideia kantiana. O conjunto de sensações que eu tenho de uma faca (para entrar no clima do seriado) produz em meu espírito uma imagem dessa faca, por meio da imaginação eu crio uma imagem geral indeterminada, um esquema, da faca em geral.  Quando eu digo ou escrevo faca isso pode ser compreendido, pois essa palavra está ligada na linguagem que compartilhamos a esta imagem geral. Por mais que a linguagem não comunique perfeitamente, somos capazes de estabelecer algum grau pragmático de comunicação e verdade, ou seja, há efetivamente uma linguagem compartilhada (por mais que imperfeita), pressupomos que as imagens gerais que temos são idênticas aos conceitos inatos, além disso, esse processo de esquematização representa diferenças reais no ser real, do contrário os conceitos não poderiam refletir a realidade. E, mesmo que o processo de esquematização não seja exatamente o mesmo, existe um significado compartilhado das palavras que é suficiente em termos práticas para descartar o argumento cético. Todavia, a linguagem não é perfeita e não garante uma identidade universal na construção do pensamento. Uma das principais influências da obra de Schleiermacher sobre Dilthey foi justamente à percepção dessa natureza humana comum que compartilhamos.
Os dois procedimentos, divinação e comparação, não podem ser separados, tampouco existem regras de como e quando se passar de um para o outro, entrando aqui o caráter de “arte” da interpretação.
Os dois procedimentos não podem ser separados entre si, pois, a divinação apenas obtém sua certeza mediante a comparação confirmadora, posto que sem esta ela sempre pode ser fantástica. O comparativo, entretanto, não confere nenhuma unidade. O universal e o particular precisam penetrar-se mutuamente, e isso acontece somente pela divinação. (Schleiermacher, p.203).
O aspecto fantástico do método adotado por Will o assombra invariavelmente, e é explorado no seriado como um perigo constante de alheamento da realidade, e, quanto mais se aprofunda na mente dos criminosos, de loucura. Nesse ponto, a perspectiva hermenêutica do pai da hermenêutica universal parece concordar com a exploração dramática da habilidade divinatória de Will, visto essa ser uma comparação, fundamentalmente, consigo mesmo, ele precisa encontrar em si as trevas que testemunha nos assassinos que investiga. O objetivo do método investigativo de Will é o mesmo da hermenêutica universal, ou seja, descobrir a individualidade do autor, sua decisão seminal, bem como o significado, o valor dessa decisão para a vida do autor – no caso dele para encarcerar o autor do crime. Ao invés de interpretar textos escritos, Will interpreta cenas de crime de psicopatas. Pode parecer que se trata de uma extrapolação injustificada comparar o método de Will a hermenêutica, mas há uma justificativa para tal procedimento em Dilthey.
Parece-me, que o que Will faz com o seu método é muito similar ao que Dilthey denominou de compreensão (Vestehen) em oposição à explicação causal (Erklären), segundo Schmidt, para Dilthey a hermenêutica é o modelo para a compreensão, que é o modo particular de cognição que fundamenta metodologicamente as ciências do espírito. No que concerne a Schleiermacher, Dilthey compreende que sua hermenêutica consiste da fusão da teoria da produção de Fichte e da teoria da reprodução de Schlegel. A primeira afirma que o eu cria uma obra particular e a segunda que o intérprete precisa reproduzir o ato de criação para poder compreender, a teoria de Schleiermacher que une as duas é capaz de demonstrar que interpretações válidas são possíveis, e que a compreensão é um processo de recriação do processo criativo. Para Dilthey, e isso é justamente o que justifica a analogia entre a hermenêutica e o método de Will de fazer perfis psicológicos, as regras de hermenêuticas para interpretar textos são um caso específico do processo mais geral de compreensão. Além disso, o intérprete e o autor compartilham uma natureza humana geral e graças a isso o intérprete é capaz de recriar uma forma de vida alienígena.
(...) através da modificação imaginativa de seus próprios processos psíquicos (ou seja, mentais) e assim compreender a vida interior de outra pessoa (ou seja, o método divinatório). (Schmidt, 2012, p.54).
Will reconstrói por intermédio da imaginação e da comparação consigo mesmo o processo criativo dos assassinos, ou seja, ele reconstrói uma realidade espiritual. Essa realidade, de acordo com Dilthey é descoberta em nós mesmos por introspecção, diferente da realidade externa descortinada pela percepção, nesta é possível perceber claramente conexões causais entre os fenômenos, mas, no exemplo de Will e seu método, ele não pode estabelecer essas mesmas conexões causais de maneira direta entre os processos mentais que ele descobre pro divinação e os fatos materiais observáveis (a cena do crime), a pesar de se poder perceber correlações entre estados mentais e fatos materiais, não se pode aplicar diretamente nenhuma conexão de causa e efeito. Nesse caso, trata-se de compreensão e não explicação. Isso se dá, pois os objetos das ciências naturais são apresentados empiricamente à consciência pelos sentidos, enquanto os da ciência do espírito são um nexo experimentado de dentro, uma realidade interna. O que Will faz é objetivar o aspecto subjetivo dos perpetradores, seu processo criativo e suas intenções. Nas palavras do próprio Dilthey, em seu A Hermenêutica e o Estudo da História, citado por Schmidt,
(...) nós chamamos de compreensão o processo através do qual reconhecemos por trás de sinais dados aos nossos sentidos, aquela realidade psíquica que eles expressam.
De acordo com Dilthey, fundamentalmente só podemos compreender a nós mesmos, entretanto as ciências humanas se baseiam em um nexo de experiência vivida expressão e compreensão, sendo a própria vida uma categoria importante para ele. Mesmo com essa explicação sucinta se percebe claramente que há uma possibilidade de justificar teoricamente a capacidade de Will de recriar uma forma de vida estranha a ele. A pergunta agora é saber se isso se dá por empatia. Como afirmei antes, não me interessa subescrever ou reprovar o uso do termo no seriado, contudo a minha análise vai se pautar pela perspectiva de Jung. Não considero ocioso, no entanto, fazer uma digressão sobre o significado e etimologia do termo empatia e discorrer, mesmo que brevemente, sobre a história desse termo, em que Dilthey desempenha um papel importante.
De acordo com a Stanford Encyclopedia of Philosophy, o termo empatia (em inglês empathy) foi introduzido no vernáculo inglês pelo psicólogo Edward Titchener (1867–1927) no ano de 1909 como uma tradução da palavra alemã Einfühlung, um termo que nos círculos filosóficos germânicos do último quartel do século XIX era tido como importante para a estética, mas, mesmo em língua alemã, o termo não possuía uma longa tradição, sendo usado de maneira informal, especialmente por pensadores românticos como um “sentir em”, como uma atitude de sentir a natureza ao invés da atitude cientifica de apenas “dissecá-la”. Foi Robert Vischer o primeiro a delimitar de maneira mais técnica o termo Einfühlung, em sua forma substantivada ele indicava um objeto digno de uma análise filosófica, como exposto em seu On the Optical Sense of Form: A contribution to Aesthetics (1873). Foi Theodor Lipps (1851–1914), todavia, quem examinou o termo de uma maneira mais rigorosa. Ele não apenas argumentou que a empatia era um conceito central para nosso entendimento filosófico e psicológico da estética, como também o transformou em um conceito essencial na filosofia das ciências humanas, para além do escopo mais limitado da estética. Para Lipps, a empatia além de seu papel desempenhado em nossa apreciação estética dos objetos também devia ser compreendida como a base primária para sermos capazes de nos reconhecermos como seres pensantes, dotados de uma mente. Quando Titchener realizou a tradução do termo Einfühlung era a conceituação de Lipps que ele tinha em mente. Ainda de acordo com Lipps, e aqui, estimado leitor, vem um ponto importante para a nossa discussão, reconhecemos outro organismo como algo possuidor de uma mente graças à empatia. Nesse contexto a empatia é entendida como uma “imitação interior” em que a minha mente espelha a atividade mental de outras pessoas baseada na observação de suas expressões corporais e faciais. Em última instância, nessa perspectiva, a empatia tem sua base fundamental na disposição inata para a mímica motora. A noção de empatia de Lipps, entretanto, não se limita simplesmente ao reconhecimento de emoções por meio de gestos e expressões faciais, ele também argumenta a respeito de uma empatia intelectual, ele considera que nossa capacidade de reconhecimento de qualquer atividade mental – seja ela qual for – repousa sobre a empatia ou uma imitação interior.
A reivindicação de Lipps do lugar de centralidade epistemológica da empatia como o modo primário de percebermos outras pessoas como seres dotados de um espírito, uma mente, foi profundamente influente, mesmo entre seus críticos, pois estava intimamente relacionada à crítica do que era tido a época como a única alternativa para conceber um conhecimento da mente de outras pessoas: a inferência por analogia de Mill. O pressuposto da teoria de Mill era a concepção cartesiana de mente de acordo com a qual o acesso a nossa própria mente é direto e infalível, entretanto o conhecimento de outras mentes é indireto, inferencial e falível. Pode-se caracterizar a inferência por analogia de acordo com os seguintes passos: 1 – outra pessoa X manifesta o comportamento B; 2 – o meu próprio caso de comportamento B é causado pelo estado mental M; 3 – como o aspecto exterior do meu comportamento de tipo B é similar a da pessoa X, logo deve possuir causas mentais internas similares, assim sendo, o comportamento de X é causado pelo estado mental M.
Lipps atacou o aspecto duplamente contraditório dessa hipótese, todavia ele falhou em demonstrar epistemologicamente como a empatia poderia nos facultar conhecimento de outra mente, além disso, não explicou suficientemente como o “sentir em” não é mera projeção. Mais importante ainda, Lipps não explicou suficientemente como a hipótese da empatia não se deparava com as mesmas contradições por ele apontadas na hipótese de Mill, ou como somos capazes de por meio da empatia conceber outras pessoas como tendo mentes similares as nossas se somos familiarizados de maneira direta apenas com nossa própria mente. O principal problema da argumentação de Lipps é que ele parte dos mesmos pressupostos cartesianos e, em virtude disso, se expõe as mesmas contradições de Mill.
No início do século XX a empatia compreendida como um método não inferencial e não teórico de apreender o conteúdo de outras mentes tornou-se intimamente associado ao conceito de compreensão (Vestehen), um conceito que foi defendido pela tradição da hermenêutica filosófica preocupada em explicar os métodos utilizados para apreender o sentido e o significado de textos, obras de arte, e demais ações humanas. Eles insistiam que o método utilizado para se compreender um texto, ou um evento histórico tinha que ser fundamentalmente diferente da maneira de explicação dos eventos da ciência natural. Dois dos expoentes desse debate sobre os métodos foram Droysen e Dilthey. Para o primeiro a história não estava interessada em explicar, um procedimento derivado de uma forma de argumento inferencial, mas sim em compreender. O segundo afirmou que “nós explicamos a natureza, mas compreendemos a vida da alma”. A empatia não era vista por esses autores como simplesmente como um ato de imitação mental, nem em um ato de imaginação por meio do qual você se transporta para o ponto de vista de outrem. Esse tipo de “interpretação psicológica” como Schleiermacher costumava chamá-la era apenas uma parte do método de interpretação utilizado pelos historiadores. Para Dilthey, todavia, apreender o significado cultural de qualquer fato era fundamentalmente um ato mental de “transposição”. Compreender de um texto, ou uma obra de arte, ou qualquer outro fato da cultura nos obriga a relacioná-lo ao reino primário do significado, nossa própria vida mental acessível por meio da introspecção. Dilthey nunca utilizou em seus escritos o termo empatia, a despeito de sua noção de compreensão poder ser entendida como uma forma de empatia. Não é de se espantar, portanto que em sua época o conceito de compreensão e empatia fossem utilizados quase como sinônimos na tentativa de delimitar uma fronteira entre os métodos das ciências do espírito e das ciências da natureza.
Paradoxalmente, a identificação da empatia com a compreensão juntamente com a reivindicação de que a empatia seria o único método válido para as ciências humanas levou ao declínio do uso do conceito de empatia. Hodiernamente a identificação entre empatia e Vestehen é duramente criticada, a pesar da divisão entre as metodologias das ciências do espírito e as ciências da natureza se manter como algo válido, e a compreensão como proposta por Dilthey ser considerada o método das ciências do espírito, o que caiu em desuso foi a identificação entre ambas e a noção de que a empatia é a maneira fundamental de reconhecer outros indivíduos como seres dotados de uma mente. A empatia não se reveste mais de tão grande significado por diversos motivos, primeiro, o que um historiador, ou um intérprete de textos literários ou não está interessado atualmente não dependem mais unicamente dos fatos de uma mente individual. Na filosofia da história, necessariamente se superou a categoria conceitual do agente, desde que, nessa perspectiva, o significado dos eventos históricos não se constitui apenas pela intenção do agente, mas pelas suas consequências de longo prazo, muitas vezes até, não intencionais.  Filósofos como Gadamer asseveraram que o significado de um texto não está intrinsecamente ligado as intenções do autor ao escrever o texto, mas o que os textos têm a dizer por eles mesmos. Além disso, o significado de um texto é dependente de seus efeitos sobre gerações subsequentes de leitores. Mas existe ainda uma segunda crítica à empatia e seu papel nas ciências do espírito, ou, ao menos, seu papel como o único método dessas ciências (sua identificação com a compreensão). Conceber o entendimento de outros indivíduos como sendo baseado na empatia é visto como epistemologicamente uma concepção muito ingênua da interpretação dos indivíduos, desde que parece conceber o entendimento como um misterioso encontro de duas mentes independente de seus condicionamentos históricos e culturais (tal crítica é profundamente influenciada por Heidgger e Wittgenstein).
A despeito das discussões na filosofia e hermenêutica serem desfavoráveis à noção de empatia, em psicologia a empatia vem sendo um conceito importante desde a década de oitenta do século passado. Todavia me reservo o direito de me dar por satisfeito com a sucinta investigação sobre a história desse termo no que concerne à hermenêutica, estética, história e filosofia, e deixar de lado o debate psicológico sobre o termo e me concentrar na perspectiva de Jung sobre o tema, pois, confessadamente, é a única psicologia que me interessa. Resta dizer, no entanto, que a empatia em Jung não é um conceito de importância tão fundamental quanto para as demais psicologias, como veremos.
Retomando a pergunta inicial que me motivou a deitar a pena ao papel, ou seja, analisar o “distúrbio de empatia” de Will pela ótica de Jung. Inicio pela delimitação teórica do conceito de empatia no opus Junguiano.
Jung define empatia de maneira lacônica como uma introjeção do objeto. A introjeção é um processo normal da psique e, psicologicamente, é um processo de assimilação, em oposição à projeção que é um processo de dissimilação. A introjeção supõe uma assimilação do objeto ao sujeito. A introjeção é um processo de extroversão, pois necessita para a assimilação do objeto de uma empatia, uma ocupação total do objeto. Existe tanto uma introjeção ativa quanto passiva. No primeiro caso incluem-se os processos de transferência no tratamento das neuroses, na segunda está à empatia como processo de adaptação. Como extroversão Jung compreende uma relação manifesta do sujeito para com o objeto, um movimento positivo do interesse subjetivo pelo objeto. Em certa medida, a extroversão é uma transferência de interesse do sujeito para o objeto, assim como a introjeção, a extroversão poder ativa ou passiva. Em termos energéticos, é um voltar-se para fora da libido.
A empatia é discutida por Jung com maior propriedade no capítulo VII do Tipos Psicológicos. Nesse capítulo ele discute o problema dos tipos introvertido/extrovertido na estética. Jung faz menção a Worringer e as suas duas atitudes estéticas possíveis à empatia (Einfülung) e a abstração (Abstraktion), sua definição de empatia deriva de Lipps, e Jung cita sua definição de empatia “é a objetivação de mim mesmo num objeto distinto de mim”.cita ainda Jodl, para quem a empatia seria melhor chamada de Beseelung (animação) pois a obra de arte não é apenas um ensejo para lembrarmos de nossos sentimentos por associação, mas é uma exteriorização, se apresenta como algo de fora e projetamos simultaneamente para dentro dela os processos exteriores que ela reproduz em nós, o que resulta na animação dessa imagem. Jung prossegue citando Wundt, para quem a empatia é um dos processos de assimilação elementares.  Segundo este, a empatia é um processo caracterizado por transferir sentimentalmente um conteúdo psíquico para o objeto, e isso o leva a ser assimilado pelo sujeito que se torna a ele vinculado de maneira tão íntima que o sujeito se sente no objeto. Todavia a percepção do sujeito não é a de que ele projetou algo no objeto (visto a projeção se rum processo inconsciente e automático), mas ele lhe aparece como que animado e falando por si. A projeção transfere conteúdos inconscientes para o objeto, por isso a empatia também é denominada de transferência na psicologia analítica, logo a empatia é uma extroversão.
A empatia pressupõe uma confiança no objeto, e vai ao encontro deste de modo confiante, que transfere o conteúdo subjetivo para o objeto, o que provoca uma assimilação subjetiva (introjeção) do objeto pelo sujeito, o que faz com que exista um bom entendimento entre sujeito e objeto, ou o simula. Um objeto passivo se deixa assimilar subjetivamente, mas isso não modifica suas qualidades reais, que são disfarçadas ou violentadas pela transferência. A empatia também pode gerar semelhanças e qualidades comuns que não subsistem em si mesmas. A empatia pressupõe um objeto vazio que pode ser preenchido com a própria vida. No polo oposto está a abstração que supõe que o objeto está ativo e procura se esquivar de sua influência, logo a atitude abstrativa é centrípeta, isto é, introvertida. A abstração se afasta do objeto evitando a sua influência por meio de uma atividade psíquica destinada a fazer cessar a esta influência, pois na abstração se supõe que o objeto possua já de antemão vida e influência. Para o abstrativo o objeto possui uma qualidade aterradora, um perigo contra o qual é mister proteger-se. A abstração é uma função que luta contra a participação mística primitiva, pois procura destruir os vínculos com o objeto. O efeito da abstração é o de matar a atividade independente do objeto por meio de um relacionamento mágico com a psique do sujeito.
A essência da empatia é uma projeção de conteúdos inconscientes, mas ela é precedida por uma fantasia subjetiva que despotencializa o objeto e valoriza o sujeito soerguendo-o acima do objeto, para que ele possa ser esvaziado e assim preenchido pela vida do sujeito, que passa a senti-lo como um objeto interior. Em termos energéticos, isso significa que com o soerguimento do sujeito e o rebaixamento do objeto surge a diferença de nível necessária à empatia para transferir conteúdos subjetivos para o objeto. A pessoa com empatia empresta confiantemente animação ao mundo, pois este parece precisar de seu sentimento subjetivo.
Jung certa feita afirmou que a “empatia não nos leva muito longe”, isso, pois ela pressupõe um elevado estado de inconsciência, foi falado até agora em projeção, mas o termo técnico mais correto seria o de identidade arcaica, ou participação mística, esse termo formula a relação original do primitivo com seus objetos, pois eles possuem uma animação dinâmica e estão carregados de força anímica exercendo uma influencia psíquica direta sobre as pessoas, o que produz uma identidade dinâmica com seu objeto. A empatia se funda no significado mágico do sujeito que se apodera do objeto mediante uma identificação mística. Jung, ao falar de empatia estabelece uma dinâmica entre esta e a abstração, pois o que o empatizante transfere para o objeto é ele mesmo, e o que o abstrativo pensa sobre a impressão que recebe do objeto ele pensa sobre seus próprios sentimentos que surgiram a partir do objeto. Ambas as funções existem no indivíduo, mas normalmente estão desigualmente diferenciadas. Acontece que, na medida em que o empatizante preenche o objeto com seus conteúdos inconscientes, ele se entrega ao objeto, pois esses conteúdos são parte essencial do sujeito, ele sai de si mesmo e, na medida em que vê, sem o perceber, a si mesmo no objeto (ele crê que essas qualidades pertencem realmente ao objeto) ele se desubjetiva. Nesse sentido, diferente do abstrativo, que precisa se proteger dos objetos inconscientemente animados, a transferência para o empatizante é uma proteção contra a dissolução por fatores internos subjetivos, possibilidades ilimitadas de fantasias que correspondem a impulsos a ação.  Empatia e abstração, extroversão e introversão, são mecanismos de adaptação e proteção.
Esse par empatia/abstração (extroversão/introversão) indica que, a uma atitude consciente de empatia há, de antemão, uma abstração inconsciente que esvazia o objeto (o despotencializa) e valoriza o sujeito, e a uma atitude consciente de abstração, já existe de antemão uma empatia, no sentido de uma transferência de conteúdos subjetivos inconscientes que anima o objeto e os tornam ameaçadores. Por isso, para o primeiro os objetos parecem sedutores, mas a fantasia inconsciente parece algo tremendo e terrível e, para o segundo, suas ideias e fantasias lhe servem de salvaguarda contra objetos que são potencialmente destrutivos.
Retornando, finalmente, a Will, me parece que, numa perspectiva Junguiana o seu “transtorno de empatia”, pode fazer certo sentido, a empatia é algo normal, entretanto devemos recordar que, para Jung, patológico é sinônimo de insólito, exagerado e o que vemos em Will de fato aponta para algo insólito. Will, a despeito de sua empatia, abraça sua fantasia (sempre ameaçadora) e a utiliza mais ou menos como uma imaginação ativa (o caráter de objetividade de suas fantasias é muito forte e evidente, não fossem elas autoinduzidas se diria tratar-se de um delírio) e isso tem efeitos profundamente deletérios. Também é digno de nota a relação dele com Lecter, seu analista/mentor/adversário, visto a empatia passiva ser também chamada de transferência, faz sentido a sua relação profundamente doentia com Lecter (que estabelece com ele uma intensa contratransferência). Em Will vemos com clareza a dinâmica apontada por Jung entre abstração e empatia. Parece-me, que não é tanto a empatia que ameaça Will, mas suas fantasias, que são o recurso de que se utiliza para compreender os perpetradores de homicídios. Para Jung, tanto a empatia quanto a abstração são compreendidas como formas de proteção e adaptação, mas igualmente como maneira de percepção e criação artística, bem como meios de se estabelecer algum conhecimento objetivo. O método de Will procura justamente descobrir algo que subjaz a cena do crime, a individualidade e os desejos e objetivos dos assassinos, a possibilidade de fazê-lo por intermédio desses processos adaptativos (que, assim como introversão/extroversão estão dinamicamente associados) é vista como algo possível por Jung e, no seriado, os riscos desse procedimento parecem mostrados de maneira bastante precisa, em que pese o exagero característico do drama televisivo.

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

A volta de Marina a disputa presidencial


A morte de Eduardo Campos nos mostra, especialmente a nós que fazemos análises políticas, o quão imponderável é a realidade, a sombra da morte paira sobre todos, ricos e pobres, poderosos e desvalidos. Apesar de seu falecimento, meus sentimentos a sua família, a eleição continua e a possibilidade de Marina passar a postular a vaga que era de Campos dá o que pensar.

Marina foi a queridinha da mídia nas últimas eleições, a tábua de salvação escolhida pela mídia para combater o PT (da qual ela fez parte), e, mesmo com sua derrota e o terceiro lugar em número de votos válidos, foi sagrada por essa mesma mídia como a “grande vencedora” dessa eleição, conceito, no mínimo, estranho para alguém que chegou em terceiro.

Dessa vez o queridinho da mídia é Aécio, ou deveria ser, não estivesse ele enrolado com aeroportos e helicópteros suspeitos. Mesmo com tudo isso, todavia, não creio que ele tenha perdido o apoio da grande mídia, comprometida em combater o projeto petista personificado por Dilma. Ainda assim, mesmo sem o favoritismo da imprensa, Marina é um elemento que altera significativamente o quadro dessas eleições.
A ex-senadora é uma conhecida ambientalista, e essa sempre foi sua principal bandeira, a despeito de ter se convertido em mero slogan em seus discursos hodiernos, sua crítica ao modelo de desenvolvimento petista, que poderia ser mais virulenta e interessante, é insipiente e insossa. O que mais me chama atenção em Marina é o seu patente e atroz obscurantismo. Logo depois da inauguração do novo templo de Salomão, e de um avanço dos políticos ligados ao protestantismo, não me parece nada auspicioso ver Marina de volta a disputa pela presidência. A despeito de sua longa trajetória de militância de esquerda, Marina abraça com fervor as bandeiras neo-pentecostais, as mesmas defendidas pelo já folclórico pastor e deputado Marco Feliciano. Ela pode muito bem se converter em uma candidatura neo-pentecostal mais viável para os eleitores protestantes, por sorte, sua falta de tato e habilidade pode impedir tal coisa, bem como a sua saúde bastante debilitada.

Marina, em virtude de suas crenças religiosas, imporia ao nosso estado laico, uma agenda obscurantista que teria os aplausos entusiasmados de Bolsonaro, Feliciano e Malafaia, e poderia gerar a mesma tensão que existe nos Estados Unidos, com debates acalorados sobre ensino de criacionismo nas escolas e outras bobagens do gênero, mas isso é o de menos. Ela pode barrar avanços sociais importantes para os grupos homossexuais, que na nossa república têm todos os deveres, mas nem todos os direitos, e para as mulheres. Deus nos livre de a candidatura de Marina se tornar a porta-voz dos evangélicos do país e que ela tenha reais condições de disputar essas eleições.