domingo, 19 de abril de 2020

O Pensamento Vivo de Jung


[essa é apenas a primeira sessão de um escrito bem mais longo, aproveitem]
O intuito desse escrito é ajudar a compreender de que maneira se articula o pensamento de Jung e por quais parâmetros podemos entender a maneira como elaborou sua Psicologia. Utilizo o termo “pensamento” justamente por seu caráter genérico e pouco específico, e para evitar o uso da palavra “teoria”, que, como veremos, é inadequada para descrever a Psicologia de Jung. Existem muitos preconceitos e incompreensões que cercam a sua obra, algumas dessas mistificações se devem a qualidade e ao caráter de seus leitores, e quanto a isso nada, ou muito pouco pode ser feito. Por outro lado, há de fato uma imensa dificuldade em adentrar ao pensamento de Jung, e, não raro, numa primeira visada temos impressões equivocadas, especialmente porque, assim como os americanos, Jung esperava a inteligência de seus leitores.
Jung conta uma historieta interessante. Quando estava nos Estados Unidos ao passar por uma linha férrea notou que, diferente da Europa, não havia uma cerca impedindo que as pessoas arriscassem a vida passando por cima dos trilhos, havia apenas uma placa de advertência. Diante desse fato da cultura material, dessa comparação tão peculiar, ele deduziu que os europeus pressupõem a burrice, pois é preciso impedir pessoas idiotas de morrerem por serem incautas, apressadas ou intrépidas usando uma cerca. Já os americanos, supõe que basta um aviso, pois você é inteligente o bastante para não assumir um risco desnecessário. Americanos pressupõem a inteligência e os europeus a burrice. Talvez haja uma outra conclusão acerca do fato observado por Jung, os americanos não dão a mínima para os idiotas, enquanto os europeus se importam o bastante para que seus idiotas sejam mantidos vivos, apesar de si mesmos. Se me permitem ampliar ainda mais a alegoria, não pretendo fazer aqui uma placa de advertência, mas uma cerca conceitual, então, eu lhe peço desculpas estimado leitor, mas, diferente do que usualmente faço, vou supor que os leitores de Jung são, em média, idiotas.
Essa não é uma opinião apenas minha, um outro autor, de quem particularmente não gosto, James Hillman, compartilha da mesmíssima opinião, diz ele que: “Junguianos são em sua maioria gente de segunda linha com mente de terceira categoria”. Se você, estimado leitor, não está descrito nessa frase, certamente sabe do que eu e Hillman estamos falando.
Se você ainda está lendo, significa que talvez seja alguém que só precise de uma placa, e não de uma cerca, esse escrito, porém também vai lhe ser útil. O universo Junguiano é tão apinhado de falsidades, desonestidade, e crasso desconhecimento de Jung e seu pensamento, que pessoas inteligentes se afastam assustadas ou francamente horrorizadas. Eu mesmo devo ter permanecido, porque inicialmente não tive o menor interesse em conversar com “junguianos” ou me inteirar de que existia uma comunidade ao redor da obra de Jung. Durante os primeiros dez anos de leitura da obra, ela me absorveu completamente devido ao imenso desafio intelectual, espiritual e moral que representa. Só depois eu descobri que essa comunidade era na verdade um circo...
O trabalho a que me proponho aqui, possui um certo viés epistemológico, mas não se trata de uma obra de epistemologia, especialmente por se dirigir a uma finalidade prática. Jung propôs um método psicoterapêutico, e os estudiosos do seu pensamento, podem acabar se tornando psicoterapeutas. A psicoterapia é uma prática dificílima, extremamente arriscada e perigosa. Jung criou o mais abrangente e profundo método de psicoterapia, algo de uma imensa utilidade prática, capaz de ajudar muitas pessoas, desde que se compreenda seu pensamento e saiba atuar de acordo com seu método. Como o fito desse escrito é ajudar justamente as pessoas que se aventuram nessa senda, ele não se caracteriza como um escrito de epistemologia propriamente dito.
Como pretendo construir essa “cerca” conceitual? Esclarecendo algumas categorias que ou estão presentes na obra de Jung, ou que a descrevem e circunscrevem. Eu acredito que se você, estimado leitor, as compreender, poderá honestamente retornar aos textos de Jung evitando ser atropelado pelo trem do misticismo, o vagão do pensamento teosófico, a locomotiva da interpretação anacrônica de Jung, o vagão do sincretismo com a psicanálise, ou os vagões do psicologismo, da pseudo-metafísica e do racionalismo aplicado.
Quais são essas categorias? A dialética, Jung nomeadamente chama seu método clínico de “método dialético”, compreender do que se trata e de como Jung se utiliza em termos práticos é fundamental para evitar ser atropelado pelo psicologismo e pela mistura espúria com a psicanálise ou qualquer outra teoria da moda. A segunda categoria é o nominalismo, Jung afirmou diversas vezes que nunca fez uma teoria, mas sim um “nominalismo culto”, compreender isso evita ser atropelado por uma interpretação racionalista da obra de Jung. O pragmatismo e o empirismo, bem como a noção de ciência de Jung compõem outra parte dessa cerca juntamente com o funcionalismo/estruturalismo e, por fim, as duas últimas partes têm a ver com Kant: o seu agnosticismo e Dualismo. Como um adendo importante, também me deterei naquilo que considero ser a ética proposta por Jung, e esse viés perpassará toda a discussão desse escrito.
Jung denomina o seu método clínico de método dialético, no entanto ele não possui uma definição regional de dialética, ou em outras palavras, ele não redefine o sentido de dialética em seu sistema de pensamento. Muito pelo contrário, ao falar em dialética ele usa definições simples e diretas. Em seu livro A Prática da Psicoterapia, Jung afirma que a psicoterapia deixa de ser vista como um método simples e mesmo evidente, e pouco a pouco passa a ser vista como um procedimento dialético, que ele define simplesmente como uma discussão entre duas pessoas, para em seguida dar duas definições igualmente concisas. Tratava-se originalmente da arte de conversação entre os antigos filósofos, mas que logo adquire o significado de “método para produzir novas sínteses”.
Mais adiante, no mesmo livro, ele torna essa definição tanto mais complexa, quanto a regionaliza um pouco, ou seja, ele faz um uso do termo dialética que é um pouco mais específico ao seu sistema de pensamento. Ao especificar a sua contribuição no desenvolvimento da moderna psicoterapia, que surge com Freud, recebe uma contribuição de Adler e, por fim, Jung aparece subsumindo os dois como casos particulares de sua psicologia mais geral e acrescenta algo que seus dois antecessores não foram capazes ou não se interessaram em integrar em seus métodos clínicos. Nesse sentido, trata-se da capacidade de desenvolvimento individual do paciente, ou seja, do processo de individuação.
O método dialético é justamente o indicado para lidar com esse aspecto individual, pois a individualidade é única, imprevisível e não interpretável. Ao lidar com esse imponderável, o médico deve renunciar a todos os seus pressupostos e técnicas e limitar-se a um método puramente dialético, ou dito em outras palavras, evitar todos os métodos. Jung doravante efetua uma correção em sua afirmação anterior, de que o método dialético seria o mais recente fruto da evolução dos métodos psicoterapêuticos, porém não se trata de uma evolução dos métodos, mas de uma completa renúncia a eles. Nesse sentido a dialética se converte numa atitude, com as características de ser “a menos preconcebida possível”. Na atitude dialética, o médico abandona sua posição ativa e simplesmente vivencia junto um processo evolutivo individual. Fundamentalmente, no método dialético ou atitude dialética, ou processo dialético, o psicoterapeuta está em pé de igualdade com aquele que ainda é considerado paciente.
Antes de avançarmos, convém recordar que a problemática que força o médico a adotar a dialética como procedimento é a da individualidade, ou seja, o fenômeno da individualidade do paciente: a sua separação da primitiva participação mística seja com as imagos parentais ou com a sociedade; é o que obriga ao abandono de todos os métodos e ter como única ferramenta a própria personalidade. Aqui se revela uma característica empírica de Jung, ele não força o objeto (nesse caso a individualidade) a se conformar a conceitos ou categorias pré-concebidas, puramente racionais. Dito de outra maneira, somente a individualidade do médico pode lidar com a individualidade do paciente em um diálogo livre de preconceitos teóricos ou filosóficos. O que nos remete a antinomia entre conhecimento e compreensão, que eu formulo, a partir de Jung como “o conhecimento não importa perante a compreensão e a compreensão não importa perante o conhecimento”. Jung afirma, em Presente e Futuro, que não pode haver autoconhecimento a partir de uma teoria, pois quanto mais uma teoria pretende validade universal menor sua possibilidade de aplicação a uma conjuntura de fatos individuais. Como as teorias se baseiam na experiência elas são estatísticas, estipulam uma média ideal que elimina todas as exceções e esse valor médio ideal figura na teoria como um fato fundamental, com isso as exceções se anulam reciprocamente.
O método estatístico nos dá um termo médio ideal de uma conjuntura de fatos e não a sua realidade empírica, esta por sua vez se caracteriza justamente pela irregularidade. A conclusão é que não pode haver autoconhecimento por meio de pressupostos teóricos, já que o objetivo do autoconhecimento é um individuo, ou seja, uma exceção e uma irregularidade relativas. O indivíduo não é caracterizado pelo regular (médio) e o universal, mas pelo único. Ele não é uma unidade recorrente, mas algo único que não pode ser comparada e nem mesmo conhecida de antemão. Em nosso, caso, o do método dialético, ou seja, a compreensão de um outro indivíduo no processo analítico, é preciso abandonar os pressupostos teóricos pelo fato da individualidade não ser um valor ideal, ou uma regularidade, tampouco unidade recorrente, mas uma exceção e irregularidade não passível de comparação com dados preexistentes da realidade ou teóricos. Assim o conhecimento se dirige ao regular e universal, enquanto a compreensão se dirige ao individual. O que é vantagem para o conhecimento redunda em desvantagem para a compreensão, no caso do terapeuta ele deve sustentar os opostos sem contradição e atentar tanto para o conhecimento quanto a compreensão, visto a compreensão ser indispensável ao tratamento psíquico que tenha como horizonte a individuação, em outras palavras, que seja pautado pela ética da individuação.
Jung não propõe o abandono da ciência ou do método estatístico, apenas aponta sua patente limitação quando se trata de uma psicoterapia que tem diante si não um termo médio ideal, mas um ser humano de carne, osso com uma existência individual, e que possui em si o germe, a potencialidade da individualidade psíquica. Ele gostava de um velho ditado suíço, o de que não se deve jogar fora o bebê junto da água suja do banho, ao criticar o método estatístico ele o faz não simplesmente para abandoná-lo, mas para constituir uma perspectiva que possa levar em conta a individualidade, sem abrir mão de constituir uma Psicologia geral de cunho científico, como veremos adiante.
Como podemos compreender isso a luz da dialética? Entender a ligação dessa sofisticada discussão metodológica e epistemológica de Jung que redunda na sugestão de uma ética analítica, com a arte de conversação entre os antigos filósofos? Eu usarei o conhecimento histórico e filosófico como uma maneira de ajudar você, estimado leitor, a melhor compreender Jung. Tudo o que eu apresentar doravante, são ferramentas heurísticas, isto é, explicativas. Jung supõe uma vasta erudição em seus leitores, nenhum leitor culto médio possui o grau de erudição requerido para se compreender sua vasta obra, não se culpe por isso. Desde cedo eu segui o conselho de Joseph Campbell de procurar os autores que eram referência para os grandes autores que eu estava lendo, como Jung, e seguir seus rastros intelectuais para melhor compreendê-lo.
Uma coisa importante é marcar a diferença entre Jung e os “antigos filósofos”, a primeira e mais fundamental é a de que Jung jamais foi filósofo. Se pensarmos em Platão em especial, muitos acusam Jung de praticar uma espécie de neo-platonismo ao falar em arquétipos (visto esse ser um termo platônico, uma perífrase explicativa para a ideia, o eidos, platônico), todavia a noção de arquétipo de Jung pouco ou nada tem a ver com a noção platônica. É preciso que fique claro que Jung negava a metafísica, não era filósofo e era um cientista, como veremos ao falar em seu agnosticismo e nominalismo culto, e principalmente, não era um racionalista, mas um empirista e pragmático. O problema é que no meio do “circo”, ou seja, da comunidade junguiana, algumas pessoas fazem um uso dos arquétipos como se eles fossem de fato um platonismo psicológico, e incorrem num horrendo psicologismo.
Jung não parte em sua análise dos fatos psicológicos de princípios prontos, que regeriam a articulação entre os fatos psicológicos. Ele faz justamente o oposto, procura compreender a maneira como os fatos psicológicos se articulam sem recorrer a qualquer princípio que os regule de maneira universal e apriorística, procurando no interior dos próprios fatos psicológicos a sua forma de estruturação. Jung também não simplesmente generaliza os fenômenos empíricos e a partir dessas generalizações cria conceitos que existem apenas na sua cabeça, é por isso que ele se apressava em dizer que não criou uma teoria, pois seus conceitos não são essas generalizações que se afastam dos fatos empíricos. Ele até mesmo nomeia seus conceitos de “conceitos empíricos” ou “conceitos experimentais”. Seus conceitos descrevem os fenômenos, mas não os explicam. Não é a toa que ele compara os arquétipos a classificação botânica, pois a classificação botânica não é um fato empírico, mas descreve e classifica o fato empírico da similaridade entre as famílias das plantas. Assim como a classificação botânica, os arquétipos não regem a articulação dos fatos empíricos, mas são nomes que descrevem fenômenos análogos. Os conceitos de Jung foram criados com o intuito de traduzir objetivamente a realidade dos fenômenos psíquicos obervados.
Nesse sentido, quando eu vou encarar um fenômeno individual, que não pode ser comparado, mas que é uma irregularidade relativa, se antes eu já não dispunha de princípios prontos que regeriam a articulação dos fenômenos, à moda racionalista, aqui eu perco até mesmo a possibilidade de usar generalizações teóricas, ou o método estatístico de propor uma média ideal, pois a individualidade não é uma média, mas uma exceção à média. Nesse caso, o método clínico é um procedimento dialético, pois a dialética é uma forma de compreender as coisas em si e por si mesmas, assim, ao invés de saber de antemão, aprioristicamente os princípios universais que regem a articulação dos fenômenos psicológicos, Jung descobre dialeticamente a lógica de articulação desses fenômenos neles mesmos.
Curiosamente, isso resolve o problema do abandono de todos os métodos, pois a dialética não é um método que já vem pronto de antemão e pode ser simplesmente aplicado de maneira mecânica a realidade dos fatos psicológicos e que me permite chegar a um certo resultado. Paradoxalmente, o método depende dos objetos em questão, do percurso percorrido no trato com esses. A dialética não aponta um caminho de antemão, pois é a lógica interna desses objetos investigados que vai indicar e constituir o caminho, ou seja, o método. Isso já era assim em Platão e Heráclito, por mais que o filósofo de Éfeso seja apontado como o pai da dialética, é em Platão que o termo é incorporado ao léxico filosófico pela primeira vez, e aí inicia uma longa carreira, que passa por nomes como Aristóteles, Hegel e Marx.
Acerca de Platão, lemos em Filosofia e Método, do padre Henrique de Lima Vazes, que o caminho dialético não obedece a um caminho de regras fixadas de antemão, mas segue as peculiaridades próprias do conteúdo investigado, a partir de uma pergunta ou dificuldade inicial.
Nos diálogos socráticos de Platão, vemos alguns aspectos da dialética que podem nos ajudar a compreender melhor o que Jung se propõe a fazer. Sócrates não se coloca como um grande conhecedor de nenhum tema específico, ao contrário, como atesta a sua famosa afirmação “tudo o que sei é que nada sei”, ele assumia uma postura de ignorância, ou seja, de ausência de pressupostos. Assim, ele partia de uma pergunta ou problema inicial para averiguar o conhecimento de alguém que alegava ter um saber sobre determinado assunto por meio de uma conversa que consistia em perguntas que não estavam prontas de antemão, mas que dependiam das respostas dadas ao problema inicial. Esse problema era, em geral, aparentemente simples.
Sócrates fazia perguntas para testar o conhecimento alegado pelo seu interlocutor, mesmo não tendo ele mesmo esse conhecimento, pois pressupunha que não se podia ter o conhecimento de um fato isolado, mas que esses fatos estavam em interação. As perguntas eram então dirigidas à pessoa que julgava saber o que era o amor, ou a verdade etc., e estavam sutilmente conectadas ao problema original da conversa, caso uma contradição emergisse isso era o indicativo de que o interlocutor não possuía o saber que alegara de início. A verdade, seja ela qual for, não é imediatamente revelada por esse tipo de diálogo, mas se estabelece a existência de contradições o que invalidam a alegação inicial de conhecimento sobre algo.
Resumidamente, temos duas pessoas uma que vai propor uma pergunta e a outra que vai responder essa pergunta, em seguida, o interlocutor que fez a pergunta vai testar a resposta dada por meio de uma série de perguntas sutilmente ligadas ao problema inicial proposto, com o intuito de averiguar a existência de contradições o que tornaria a resposta inicial falsa.
Obviamente esse é um resumo da generalização mais ampla possível do método dialético em Platão, pois a maneira como ele o apresenta varia de acordo com a obra que estivermos observando. Em termos muito gerais, ao se observar diversos momentos da dialética platônica em suas obras, percebe-se que o primeiro objetivo de Sócrates era negativo, ou seja, demonstrar o erro de seus interlocutores, mas já em Sócrates existe um segundo movimento de considerar as similaridades entre as proposições particulares que pudessem indicar a existência de um universal capaz de subsumir as proposições particulares. Tanto em Sócrates quanto em Platão, por influência de Parmenides temos um direcionamento do método dialético para as formas eternas, aos universais em sentido realista e não nominalista.
Platão, em seus diálogos posteriores a fase socrática, não abandona o método dialético como proposto por seu mentor, mas o torna algo mais complexo, basicamente um método de análises seguida de sínteses. Platão faz uma negação do mundo sensível como algo enganador, e o seu método dialético tem o objetivo de virar as costas ao conhecimento sensível do mundo e dirigir o olhar para as formas eternas, puramente racionais, o que pode ser entendido como a orientação original da alma humana, que anseia secretamente por essa verdade já vislumbrada, vagamente pressentida, porém esquecida, coberta por um véu de ignorância. Um aspecto crucial do método dialético como compreendido por Platão/Sócrates é que ele não é um procedimento solitário, no caso filosófico, o professor e o aluno são partes integrantes e indispensáveis do método, o professor convida o aluno a formular suas crenças na forma de hipóteses e em seguida ou o questiona e desafia a negar ou afirmar certas proposições sutilmente ligadas à pergunta original e/ou extrai as consequências das hipóteses levantadas pelo aluno.
Uma coisa muito curiosa, é que lendo Platão para tentar compreender melhor o que Jung chama de dialética, certos aspectos que passariam despercebidos numa leitura de interesse puramente filosófico saltam aos olhos. Por exemplo, por mais que o método dialético tenha a ver com o logos, ou seja, a palavra, o discurso, a mente, a racionalidade, existe uma ligação entre os dois professor e aluno que se dá não pela via do logos, mas sim do Eros, e que permite que o diálogo não descambe simplesmente em uma polêmica ou agressividade. Mesmo correndo o risco de ser anacrônico, soa muito como a noção de transferência formulada por Freud e posteriormente modificada por Jung em virtude de sua noção diferente de um inconsciente psíquico.
Por mais que eu adorasse me alongar ainda mais nessa remissão a Platão, o melhor é retornar a Jung, ou meu excesso de zelo erudito pode transformar meu esforço numa mera placa. O principal é entender que o caminho dialético não obedece a um caminho de regras fixadas de antemão, mas segue as peculiaridades próprias do conteúdo investigado, a partir de uma pergunta ou dificuldade inicial. Muitas pessoas me perguntam se há uma contradição quando Jung propõe que se abandonem todos os métodos e técnicas, mas indica o uso de um método para isso, bom, creio que isso responde a essa dúvida tão frequente. Além disso, é preciso que fique claro que o método dialético depende dos objetos em questão do percurso percorrido no trato com eles.
Retornando a Jung, é importante notar que um de seus conceitos mais importantes, símbolo, é um resultado direto da dialética e está intimamente ligado a ela. Por meio da compreensão de símbolo podemos adentrar na dialética de Jung no terreno da psicologia e de seu nominalismo culto. O símbolo, em resumo é uma síntese dialética. Uma neurose é uma desunião consigo mesmo, de uma maneira elegante, Jung a define como a existência de duas tendências opostas na consciência, sendo que uma delas é inconsciente. Eu vou esboçar aqui de maneira esquemática como se pode entender dialeticamente o símbolo unificador em Jung (vereinigende Symbol).
Antes de começar, deixe-me fazer um parênteses erudito, nas obras completas, no Tipos, o termo que aparece em português é símbolo de união, porém o termo vereinigende no original em alemão pode ser o particípio presente do verbo vereinigen (unir), assim como o adjetivo unificador. O substantivo união em alemão é Union ou menos frequentemente Vereinigung. Quando eu digo em português símbolo de união, corro o risco entender símbolo em sentido corriqueiro do nosso idioma e achar que ele não participa dinamicamente do processo, mas que apenas o representa. Porém, o símbolo unifica nele os opostos de maneira dinâmica, por isso vou usar a minha tradução símbolo unificador. Malgrado essa crítica pontual, a tradução das obras completas de Jung é muito boa no geral.
Voltando a vaca fria. Há uma tendência consciente que é a tese, essa tese é a atitude consciente que tem uma tendência natural à unilateralidade, pois toda atitude para ser adaptativa precisa de uma direção. A atitude atua direcionando, selecionando e excluindo, com isso, ao ser tornar mais adaptada (a consciência é um mecanismo momentâneo de adaptação) ela vai deixando de lado cada vez mais possibilidades vitais que são excluídas e formam um “contrapeso” no inconsciente, até que essa especialização não se conforma mais aos fatos objetivos, parando a progressão da libido. Essa libido agora desaparece da consciência e reativa regressivamente os conteúdos inconscientes (princípio energético da equivalência), agora com essa quantidade extra de energia, se instalam na consciência e a dividem. Como num cabo de guerra em que os dois contendores possuem exatamente a mesma força e nenhum dos dois lados consegue derrotar o outro. Por isso a consciência perde a sua função adaptativa e sobrevém a estagnação característica da neurose. A unilateralidade é indispensável à adaptação, o que se perde na neurose é justamente essa direção da consciência, seu ponto focal.
Assim a consciência passa a ser assombrada por sintomas (a antítese oprimida), e, ao mesmo tempo, a tese consciente é mantida teimosamente por uma infinidade de razões que tem enorme importância prática, mas que não cabem nesse esquema. Paradoxalmente, a neurose traz a sua própria terapêutica, pois é justamente naquilo que foi negado pela atitude consciente que está à saída para o dilema neurótico. Porém não adianta simplesmente se entregar ao sintoma, como os dois têm igual força nada acontece verdadeiramente. É por isso que Jung denomina o papel do analista de espelho dialético, assim como no método socrático ele vai questionar o paciente de maneira crítica acerca de suas posições conscientes, numa espécie de dialética negativa (como exposto anteriormente), diferente de Sócrates, não temos o bom e o belo eternos para nos guiarmos e sequer sabemos se eles existem ou não (devido à posição de agnosticismo), o que temos como guia é a manifestação sintomática do inconsciente que podemos simultaneamente criticar e ao mesmo tempo espelhar dialeticamente e apresentá-la como antítese da posição consciente, tendo em mente a hipótese basilar de que a relação entre consciência e inconsciente é compensadora.
O símbolo para Jung é um fenômeno natural e espontâneo, que unifica as duas posições que dividem a consciência em uma terceira via onde as duas, tese (atitude consciente) e antítese (sintoma inconsciente) continuam tendo igual valor, porém podem ser unificadas e com isso a energia que escoou para o inconsciente pode retornar a consciência e esse processo dinâmico de unificação dialética leva a uma nova adaptação, ou seja, a uma nova atitude e a uma nova progressão da libido. Infelizmente a função transcendente, ou dito de outra maneira, o símbolo, não é simplesmente um produto da técnica, por mais que ele seja essa nova síntese que surge da análise das duas posições em conflito, mediadas pelo Eros que une os dois: médico e paciente, ele permanece sendo um produto autônomo da psique inconsciente, mas que só pode surgir com a colaboração da consciência.
Não é ocioso resaltar, que o esquema que esbocei aqui da dialética proposta por Jung, do papel de espelho dialético, bem como da função dinâmica do símbolo e o seu papel na dialética é esquemático e obviamente incompleto. A vida e a dinâmica desse processo possuem detalhes que são de suma importância, devil is in detail! Podemos perceber que há uma enorme sutileza na dialética psicológica de Jung, pois no fundo se trata num nível mais superficial de um diálogo entre o médico e o paciente, num nível um pouco mais profundo entre o médico e o inconsciente do paciente em que o paciente dialoga com o seu inconsciente por intermédio da figura do médico (espelho dialético) e, num nível mais profundo, um diálogo entre a consciência e o inconsciente do paciente. Obviamente esse esquema poderia se complicado ainda mais com a adição de outros elementos, mas se eu assim o fizesse, ele perderia o valor de ser simples.
Quando os sintomas estão superados, e podem ser superados por uma análise redutiva dos mesmos, surge à possibilidade do desenvolvimento da personalidade, pois a clínica psicológica não é o lugar apenas de quem está doente, mas igualmente da pessoa sã, mas que sente a premência de se desenvolver, não no sentido inicial de se transformar, mas no de tronar-se quem se é, ou dito de outra forma, surge toda a problemática que tocamos inicialmente, a individualidade, e que demanda uma postura dialética. Novamente sublinho, Jung não era nem filósofo, nem platônico, metafísico, tampouco gnóstico, tudo do que estou falando aqui está no campo psicológico. É preciso ressaltar que ao se utilizar um procedimento dialético, você descobre dialeticamente a lógica de articulação desses fenômenos neles mesmos, sem que seja imposto nada de fora. Creio que isso ficará ainda mais claro quando passarmos adiante. Passemos ao nominalismo culto de Jung.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Minha Despedida das Salas de Aula


Quando Norberto Bobbio se despediu de sua longa e prolífica carreira acadêmica, ele citou Max Webar, “A cátedra universitária não é nem para os demagogos, nem para os profetas.”. Webar estava correto, um demagogo não é capaz de ensinar, mas simplesmente de convencer, não tem compromisso com a verdade, mas apenas com seus interesses ou sua vaidade. O profeta, por seu lado, deseja seguidores que creiam em suas visões e se acomodem a sua sombra, no otium indignitatis daqueles que subsistem na proximidade de um mestre que lhes mantém numa cômoda infância espiritual, sem responsabilidades e nem preocupações.

Esses pensamentos me ocorrem justamente por estar a me despedir do meu papel de professor universitário, que venho desempenhando desde que me graduei em história em 2004. Não se trata necessariamente de uma aposentadoria, mas de seguir novos rumos, que me levam ao meu velho objetivo. Nesse momento de despedida, poderia certamente me deixar levar por certo saudosismo carregado de sentimentalidade, mas prefiro me despedir como professor e deixar registrado o que meus alunos me ensinaram nesses anos de docência. Os romanos já sabiam que “dicendo dices”, e eu aprendi muito com esse ofício tão peculiar e, como bem o sabia o velho Freud, impossível.

Há muitas similaridades entre o papel do analista e o do professor, e alguns dos conselhos que valem para um analista podem igualmente ser dirigidos aos mestres. Parafraseando Jung, tudo o que você pensa saber sobre os seus alunos é um preconceito ou uma projeção. Ao atravessar os umbrais de uma sala de aula, estamos numa miniatura curiosa de nossa sociedade, com suas mazelas e preconceitos, mas igualmente com tudo aquilo que nela viceja e vive, com a sutil diferença que ali se espera que as pessoas coloquem em questão as suas certezas e aprendam coisas novas. Por mais que ali possamos achar tudo aquilo a que estamos acostumados, a sala de aula é um lugar de transformação, que só vem depois da cuidadosa análise, da dissolução. Supor algo acerca dos seus alunos e agir a partir desses preconceitos pode ter o resultado de tornar os dois lados cristalizados, se o professor os trata como alunos eles o tratarão como professor, e isso só leva a estagnação. Assim como o analista, o professor precisa renunciar ao manto do saber, o que precisa ser cultivado em uma sala de aula é a dúvida, mas não qualquer dúvida, mas sim a dúvida metódica. Já existem certezas demais, e elas apenas nos paralisam. Gosto sempre de lembrar do mote formidável do racionalismo crítico de Popper “pode ser que eu esteja errado e pode ser que você esteja certo”, o primeiro a assumir essa postura racional deve ser o professor, e para ensiná-la ele deve primeiro vivê-la.

Assim como o analista, ao professor é direcionada toda sorte de projeções, e seus alunos irão lhe emprestar uma parte de suas almas. Isso lhe confere um poder sobre eles, mas lhe coloca aos ombros um fardo, pois agora pode influenciar, mas deve renunciar a toda pretensão consciente a isso. Influenciar e ensinar são coisas diversas, ensinar não é o mesmo que convencer. Heimrich Zimmer nos legou uma máxima fundamental dos upanishades, “há coisas dignas de serem aprendidas, mas que não são dignas de serem ensinadas”. As coisas mais importantes não são dignas de serem ensinadas, e assim como no caso do analista, a vontade de influenciar só priva o estudante de suas capacidades vitais, de suas potencialidades e do prazer da descoberta. Há verdades fundamentais as quais seus pupilos devem chegar sozinhos, outras podem ser transmitidas, e um bom professor deve ter a sabedoria de saber diferenciá-las. Jung disse, certa feita, ao homenagear seu grande amigo Richard Wilhelm, que “O homem reconhece instintivamente que toda grande verdade é simples. Aquele cujo instinto está atrofiado, imagina, por isso, que ela se encontra em simplificações baratas e trivialidades, ou, por outro lado, em razão de seu desapontamento, incorre no erro oposto de imaginar a verdade como algo infinitamente complicado e obscuro.” . Um professor cioso de seu ofício, jamais deve cair em simplificações baratas, ou mostrar-se obscuro para esconder sua falta de profundidade ou impressionar seus estudantes.

Uma das coisas mais importantes que um professor precisa estar ciente é justamente daquilo que ele não sabe. Por insegurança, puerilidade ou mesquinhez, alguns professores gostam de afetar um saber absoluto, sem dúvida e repleto de certezas. Toda e qualquer contrafação em sala de aula é um erro, mas esse é um dos piores. Fazer ciência é a arte de perguntar, e, como nos ensina Popper, toda ciência, para ser ciência precisa ser uma conjectura. Uma das mais valiosas lições que aprendi com Bachelard é a de que o cientista não tem direito a opinião, logo, caso eu nunca tenha estudado, ou pesquisado sobre algo, nunca me furtei de dizer “não sei”. Essa é uma frase libertadora, e que remove dos alunos os grilhões da certeza. Um professor precisa desconhecer muito mais do que aquilo que ele conhece, seu bem mais preciso é a sua ignorância, e deve se orgulhar dela e jamais tentar ocultá-la sob um véu pedante de autoridade. Um professor é antes de tudo um aluno, um estudante que jamais cessou de aprender, quando o aluno morre no peito do professor, este também fenece.

Um dos maiores historiadores do século XX, em sua derradeira obra, afirmou “[..] Não imagino, para um escritor, elogio mais belo do que saber falar, no mesmo tom, aos doutos e aos escolares. Mas simplicidade tão apurada é o privilégio de raros eleitos”. O mesmo Marc Bloch, afirma ainda nessa obra, que se a história falhar em divertir, certamente falhará em ensinar. Tal simplicidade deve ser almejada com afinco, pois diferente da simplificação barata de que falava Jung, ela consegue traduzir a verdade em sua simplicidade, com esforço podemos ser um desses eleitos, especialmente se compreendermos que esse esforço não serve a mim ou a necessidade de prestígio do eu, mas sim a meus alunos. Uma sala de aula precisa ser um lugar agradável, nossa sociedade nos obriga a passar anos a fio dentro delas e por muitas horas seguidas, tornar todo esse tempo algo fastidioso e chato é algo tolo de se fazer. Mas existem muitos obstáculo que impedem um professor de ser divertido, ou, ao menos agradável.

Alguns professores partem da premissa equivocada de que eles e seus alunos estão em lados opostos, são rivais. Professores e alunos estão do mesmo lado, seu objetivo é o mesmo, mas quando essa crença se instala, tudo o que se consegue é criar um clima insuportável de animosidade. Outros professores, em virtude de sua mediocridade, projetam em seus alunos a sua própria pequenez, e a usam para justificar seu fracasso em ensinar, ou seu descaso. Já escrevi certa feita, sobre um dos poucos ensinamentos que tive de meu pai, pois um de seus colegas chamava suas alunas de burras ao que ele retrucou “camarada, chamar as alunas de burras é fácil, o difícil é elevá-las ao seu nível”. O mínimo que se pode fazer por um aluno é tratá-lo com dignidade e respeito, e nunca deixar de ter esperança de que ele possa aprender, pois no fundo não sabemos realmente se ele pode ou não, sem esperança é impossível ensinar.

Fundamentalmente, como asseverou Jung, o que nós ensinamos é aquilo que somos. Assim como o analista, a principal ferramenta do professor é a sua personalidade, e ele deve velar por ela. Muito além do que se diz, o que mais impacta os alunos é quem nós somos. Somente alguém que é um indivíduo, que não está identificado com o próprio saber, o pensamento, a instituição, ou o papel de professor, é capaz de suportar a individualidade de seus alunos e ajudá-la a florescer. O papel de professor deve ser abandonado rapidamente, os generais vitoriosos de Roma tinham um escravo que lhes segurava acima da cabeça durante a parada da vitória uma coroa de louro e repetia incessantemente “tu és mortal”, e mesmo a modesta profissão de professor, pode levar a uma tal inflação. Fora da sala de aula, por mais que seus alunos o chamem de professor, você é apenas um sujeito que passeia com o cachorro e leva o lixo pra fora.

No mais, em todos esses anos, eu me diverti imensamente, tive alguns dissabores, aprendi muito mais do que ensinei e não tenho arrependimentos. Não deixarei de ser professor, tenho um compromisso moral com a Psicologia de Jung que me impele a ensiná-la, e certamente todo esse tempo como professor deixa marcas profundas. Certa feita, fui a um restaurante onde jamais estivera e, quando terminei de fazer o pedido, o garçom me perguntou “você é professor, não é?”, encabulado eu respondi afirmativamente. Tenho muito que agradecer a todos os meus alunos, especialmente aos que me causaram dissabores, pois eles foram meus maiores mestres e diante deles tive que desenvolver minha paciência e compaixão mais do que com os outros. Por sorte ou azar, os que me ensinaram compaixão e paciência foram poucos. Em sua maioria, eles me deram alegrias e bons momentos. Em geral não sou alguém que sente saudades ou se mantém preso ao passado, mas sentirei falta de todos vocês.

domingo, 4 de agosto de 2019

Encruzilhada


Como pensador eu habito uma encruzilhada, perpetuamente encarando dois caminhos, duas vias. De um lado a História e a Filosofia, empreendimentos pautados pela racionalidade ocidental, de outro a obra de Jung que convida sempre a ouvir a voz romântica do irracional com seus abismos e florestas selvagens. Jung sempre nos convidou uma tarefa racionalmente impossível, a de sustentar em nosso peito os opostos sem contradição, a dar igual espaço a racionalidade consciente e ao caos do inconsciente, porque ambos têm o direito a existir e da junção de ambas as fontes, das águas claras e das águas turvas é que brota a vida. Assim como todos ou, ao menos, uma grande quantidade de pessoas sensíveis, me sinto profundamente afetado pela onda de barbárie e irracionalidade demoníaca, associada a uma racionalidade perversa e mecânica que procura a tudo e a todos arrasar e destruir, converter nossos corações em algo feito de engrenagens de metal. Não é possível passar incólume por esse tempo de profunda escuridão, tampouco é possível compreendê-lo apenas pelo viés da consciência, muito menos tratá-lo como uma pura aparição do caos inconsciente a luz do dia, como se os monstros de nossos pesadelos subitamente deixassem as sombras e passassem a se mostrar em plena luz com todo o seu horror. É preciso entender o que se passa por um olhar de quem se encontra em uma encruzilhada.

Jung, certa feita afirmou que nenhum de nós pode enunciar a Verdade, com letra maiúscula, mas ao ser travessado por um problema contemporâneo, se pudermos identificar como ele nos afeta, podemos enunciar uma verdade, mas uma que reverbera. Estamos numa encruzilhada, e é preciso reconhecer essa posição, pois estamos navegando entre Sila e Caribidis, em meio as Simplégades, estamos coletivamente em nosso estreito de Bósforo, ou, para usar uma metáfora ainda mais antiga, mas que muito me apetece, caminhamos ao lado de Gilgamesh em nossas 12 léguas de escuridão. Falei a princípio em pessoas sensíveis, pois é preciso reconhecer que muitos de nós não percebem a escuridão a nossa volta e, diferente de nós, dão boas vindas e se regozijam nas trevas. Seja por sempre terem vivido na escuridão, na noite primordial do inconsciente, por viverem sob a influência de conteúdos nefastos do inconsciente desde sempre, estarem à vontade no caos. Outros, talvez, por viverem vidas insípidas e estagnadas, sentem-se finalmente vivos diante da destruição e da loucura. Alguns, talvez, apenas caminhem como leminges seguindo a multidão em direção ao abismo, muitos estão simplesmente enganados, mas uma boa parte é apenas perversa.

Para entender os tempos em que nos encontramos, uma das categorias racionais possíveis, como bem me recordou meu filho Ícaro de apenas 14 anos, se encontra no sétimo capítulo da obra máxima de Maquiavel. Nesse capítulo, ele discorre sobre principados novos conquistados com as armas dos outros ou pela sorte. Principados conseguidos devido à fortuna são fáceis de conseguir, mas difíceis de manter, pois a fortuna, ou a concessão do poder por outrem são duas coisas instáveis. “Eles também não têm a sabedoria necessária para manter a posição, pois, ao menos que sejam homens de grande valor e habilidade, não é razoável esperar que deveriam saber como comandar, tendo sempre vivido fora do governo; além disso, eles não podem manter o poder, pois não têm forças que possam manter fieis e amigáveis”. Maquiavel parece descrever o nosso atual presidente, e seus aliados que já o abandonaram e o acusaram de ser aquilo que ele sempre demonstrou ser, um tolo grosseirão, como: João Doria, Lobão, MBL, Alexandre Frota, Raquel Sherazade, Reinaldo Azevedo et caterva. Bolsonaro não deitou os alicerces de seu governo, e precisaria ter a habilidade para fazê-lo agora, sob grande risco, mas não possui habilidade ou sabedoria para tanto. Concordo com Zizek que a comparação com a década de trinta não nos leva muito longe, mas nesse ponto se faz necessária, pois assim como os nazistas, seu discurso não é simples propaganda, mas um delírio real. Assim como o manco Joseph Goebbels de fato nutria ódio irracional contar o meu povo, os judeus, e nisso era ombreado por quase todos no círculo íntimo de Hitler, que de fato, acreditavam nas mais estapafúrdias teorias conspiratórias, Bolsonaro e sua família realmente acreditam em suas rocambolescas teorias conspiratórias.

Felizmente o nosso Goebbels tupiniquim, Carluxo, não tem sequer uma fração do gênio maligno do original. O primeiro fez uso extremamente inovador do rádio e do cinema, praticamente inventou o que hoje chamamos de fake news. A novidade do nosso caso, que extrapola a comparação com a década de trinta, é o uso inovador e quase diabólico das redes sociais para disseminar mentiras, e a absoluta falta de qualquer controle republicano sobre isso, além da incapacidade dos políticos mais tradicionais de compreender e agir, nem que fosse para tentar barrar essa estratégia. Sua única resposta, a torto e a direita, foi a estupefação e incredulidade, este escritor incluso. No capítulo dezenove, Maquiavel alerta sobre a necessidade de evitar ser desprezado ou odiado, “[...] ele deve evitar ser ladrão e usurpador dos bens e das mulheres dos súditos, pois isso o tornará odiado [...] Ser considerado volúvel, leviano, efeminado, miserável e irresoluto o tornam desprezível [...] ele deve procurar mostrar, em suas ações, grandeza, coragem, gravidade e fortaleza [...] pois aquele que conspira contra o príncipe sempre espera agradar com a remoção dele, mas, quando o conspirador só pode avançar ofendendo o povo, ele não terá coragem de seguir adiante”.  A todos os que estudaram História e Ciência Política, fica evidente que Bolsonaro faz justamente o oposto do que é preconizado por Maquiavel, e ainda assim vem se sustentando no poder, e aqui encontramos os limites das categorias racionais.

Bolsonaro certamente não possui uma estratégia, ele é um tonto e um boçal, mas há algo aqui a ser percebido, se não como estratégia consciente, como algo de inconsciente que reverbera sem ser percebido em todos nós, desde seus opositores a seus mais aguerridos apoiadores, o ódio e o desprezo não são empecilhos, mas ferramentas de seu governo. Zimmer traduziu um texto da tradição hindu em que dois irmãos ofenderam Shiva, e pediram uma penitência. O grande deus lhe deu duas opções: passar 20 encarnações como seus mais fieis devotos ou apenas 10 como seus piores e mais virulentos inimigos, pois quem odeia dedica mais tempo e atenção ao objeto de ódio do que quem ama e admira. Nosso ódio e desprezo é o alimento que tem engordado o poder macabro do presidente, nossos ataques a ele são tão descoordenados quanto seus atos, dedicamos nossa libido ao aspecto odioso, desprezível e irracional de seu governo como a tresloucada Damares, o desprezível Weintraub, seus filhos que sempre surpreendem pela infantilidade e grosseria. Estamos hipnotizados pelo ódio, e esquecemos da racionalidade perversa que está nos bastidores e que destrói tudo o que toca, arrasando a Amazônia, matando índios, aprovando venenos variados para a nossa comida e queimando sem pudor as garantias constitucionais. Estamos todos dançando ao som da música insana que Bolsonaro rege. A mesma que ele mesmo dança há décadas sem nem mesmo saber.

O que eu sinto diante dos ataques mais óbvios aos nossos preciosos marcos civilizatórios é ódio e raiva, misturados a um nojo indizível. Eu não sei como lidar com esse horror que faz do meu peito pesado, e que sinto nas minhas entranhas como se uma bílis corrosiva estivesse aos poucos em devorando por dentro. Nós estamos sendo atacados de dentro pra fora e nem percebemos, há um mal indizível em nós que reage ao mal que grassa lá fora e nos consome por dentro, e nos paralisa. Diante dessa maré de insanidade, de alguma maneira, precisamos lidar com esse ódio em nós, para estarmos inteiros e impor o nosso ritmo e a nossa razão as ações que devemos e podemos tomar. Estamos paralisado, pois o ataque de Bolsonaro desperta o pior em nós, e coloca em xeque a imagem de superioridade moral que a esquerda sempre nutriu acerca de si mesma. Se eu pudesse, certamente mataria Bolsonaro com requintes de crueldade, mas é justamente isso o que me consume, pois me torna não mais do que um espelho para o horror que ele representa. Temos de aprender a lidar com o poço de piche de irracionalidade que é esse desgoverno, para podermos enfrentar a racionalidade perversa que ameaça a todos nós, pois assim como os nazistas usaram da razão técnica europeia para massacrar meu povo com extrema eficiência, tudo aquilo pelo qual lutamos duramente vem sendo destruído sistematicamente sem que haja qualquer reação organizada. Depois de tantos anos discutindo coisas tão bobas quantos adereços de cabelo, ou palavras adequadas ou indequadas, o verdadeiro horror nos paralisou. Há um cano de fuzil apontado para as nossas cabeças, e não o vemos por estarmos nos afogando em ódio. O ódio é uma taça de veneno que eu bebo esperando que o outro morra, a cada dia que eu bebo um pouco mais dessa taça, nossos inimigos se fortalecem, e urge que os derrotemos.

sábado, 20 de abril de 2019

Coaching, Psicologia e tudo o mais...



O eleitor sergipano William Menezes utilizou a plataforma digital do senado E-Cidadania, para propor uma ideia acerca de uma lei que criminaliza o coach, com o intuito de coibir o charlatanismo praticado por esses profissionais, em resumo suas justificativas são: eles não possuem um diploma válido, seu trabalho é um desrespeito ao cientificamente orientado de outros profissionais, e a utilização de propaganda enganosa. Seus argumentos são convincentes, e creio que poucas pessoas diriam que são equivocados, eu, porém, creio que merecem uma análise mais cautelosa, assim como a referida proposta.

Pra começo de conversa, minha posição pública em relação ao coaching sempre foi crítica, nunca me furtei de tecer considerações duras com relação a essa prática e as suas evidentes fragilidades tanto práticas quanto teóricas, porém, no que concerne a uma lei proibindo a sua prática, eu tenho que levantar sérios questionamentos antes de pensar em concordar com essa ideia, então me permitam fazer o papel de advogado do diabo aqui.

Primeiro uma discussão de princípios, em que pese que minha visão do coaching não difere muito da de William, apesar de eu também ser bastante crítico quanto a Psicologia... O primeiro ponto é que o proibicionismo não é exatamente um método dos mais eficazes para se impedir uma prática como essa, a rigor, a atuação do estado no sentido de proibir ou coibir determinadas práticas me soa tanto pouco prática quanto problemática. Apesar de não ser um pensador liberal, e acreditar na importância de marcos regulatórios de cunho estatal, eu partilho da crença liberal de que o estado não deve intervir nos costumes, mas creio nisso por motivos diversos. Jung, em um livro importante, porém pouco lido, Presente e Futuro, advoga que a substituição da razão de estado pela razão individual resulta apenas em coletivismo, na impossibilidade da diferenciação moral individual, o que resulta em estagnação coletiva, pois é da diferenciação do individuo que vem o progresso coletivo. No caso de uma lei que simplesmente proíba o coaching, eu me pergunto se não estaríamos justamente substituindo a razão individual pela coletiva. No que concerne ao charlatanismo e propaganda enganosa, não sou exatamente um expert, mas acredito que já existem leis que são suficientes para coibir tais práticas. Obviamente o projeto ainda é embrionário, mas perguntas práticas devem ser feitas: quem fiscalizaria? Quais as penas? Que tipificação legal teria de ser criada para que essa prática seja um crime?

Jung certa feita asseverou que o efeito psicológico não é exclusivo da Psicologia, e há algo que parece que os psicólogos ainda não se deram conta, a de que a psicologia é apenas mais um discurso sobre a alma humana, e não creio que seja sequer um discurso privilegiado. A psiquiatria constitui também um discurso sobre a alma, bem como a literatura, a poesia, o cinema, a filosofia, o teatro, a psicanálise e mesmo religiões como o budismo ou o hinduísmo possuem sofisticadas reflexões sobre a alma, só para citar alguns exemplos. Desses todos que eu citei, apenas a Psiquiatria é um discurso científico, e nem de longe é o mais potente e fecundo deles, de longe, creio que o mais poderoso dos discursos sobre a alma venha da arte. Não que eu acredite que o coaching possua algo como um discurso sobre a alma humana, senão uma colcha de retalhos de elementos disparatados tomados de empréstimo de diversos campos, em especial das psicologias de viés mais ortopédico. Ainda assim, em termos de princípios, uma lei como essa toma como justificativa um noção vaga de ciência e cientificidade que me parece almejar um estatuto de “verdade” que a ciência já abandonou desde Popper.

No que concerne ao diploma, talvez julguem que o meu olhar seja enviesado pelo fato de ser professor universitário, de um curso de Psicologia ainda por cima, e, não fosse isso suficiente, ter fundado e lecionar e coordenar uma pós-graduação em Psicologia Junguiana. Com essas credenciais obviamente sou a favor do diploma. Como bom junguiano minha resposta é um sim e um não simultâneo. Foucault estava correto ao afirmar que o diploma serve apenas para constituir uma espécie de valor mercantil do saber, ele prossegue afirmando com precisão cirúrgica que todos que adquirem um diploma sabem que ele nada lhes serve, não tem conteúdo, é vazio. O diploma me garante apenas que alguém possui um diploma, qualquer um que tenha passado pelos bancos de uma universidade sabe muito bem que é perfeitamente possível sair de uma universidade sem nem mesmo um mínimo de conhecimentos acerca de sua área, especialmente nos cursos de Psicologia. Como na piada dos professores de engenharia que convidados a andar de avião, quando foram avisados que a nave fora projetada e construída por seus alunos fugiram em disparada, menos um, que nem se moveu e disse “conhecendo os meus alunos, essa porcaria nem levanta voo”. Mas estou sendo cínico, não sou exatamente a favor do diploma, mas sou a favor daquilo que as pessoas subentendem no diploma e que ele não garante: um rigoroso treinamento para se tornar terapeuta. Coachs não são terapeutas, nem se dizem terapeutas, mas se comportam cinicamente como se fossem, aliás, todo o discurso deles é pautado pelo cinismo, é quase perverso em sentido lacaniano, pois se colocam na posição de gozo do outro, são capazes de, sem pestanejar, lhe prometer o céu a lua e as estrelas – perdoem-me o uso da Psicanálise, ela se presta melhor do que a ciência de Jung a enxovalhar.

Antes de proibir o coaching, também teríamos de nos perguntar, como tantas pessoas gastam tanto dinheiro com gente que possui um discurso tão claramente perverso, e que em geral adquirem seu treinamento em cursos de fim de semana e livros tontos de autoajuda? Creio ser evidente que nossa sociedade padece de enormes problemas, alguns deles estruturais em virtude de nosso sistema político e econômico, problemas estes que não têm solução de curto prazo, alguns até parecem insolúveis. O coaching surge, junto de diversos outros discursos pautados pelo individualismo burguês, propor saídas fáceis e individuais, que são obviamente impossíveis, mas que estão em linha com as narrativas mais corriqueiras no capitalismo que sempre exigem pressa, sucesso e felicidade agora e com base apenas em si mesmo. Como Jung assevera, o individualismo não passa de uma acrobacia da vontade, e como o velho Freud já sabia, não somos senhores em nossa própria casa, logo esse otimismo é bobo e, em si enganoso. Além desses elementos, vivemos um momento de profundo reacionarismo e anti-intelectualismo, momento esse que vem se construindo na última década e parece ter atingido seu auge, e poucas respostas são mais anti-intelectuais do que o coaching. Não é de espantar, igualmente, que aquilo que os coachings digam, soe tão similar à doutrina neo-pentecostal da prosperidade, mas embalada em papel de presente laico.

Outro aspecto da ascensão do coaching, que não mudará em nada com sua proibição, é o do fracasso da Psicologia em se firmar como uma via possível do debate público. Não temos grandes intelectuais psicólogos, como temos grandes intelectuais psicanalistas, isso se dá porque no geral os psicólogos se rendem epistemologicamente de maneira muito fácil e rápida a qualquer outro saber que eles possam macaquear de maneira imprecisa e fácil, seja a Filosofia, as Ciências Sociais, as Neurociências, a Psiquiatria, a Administração etc. O local mais improvável de se encontrar um discurso propriamente psicológico é justamente um curso de Psicologia. Proponho um exame simples e fácil, procurem a ementa de psicopatologia de algum curso de Psicologia, e verão que não há ali um debate psicológico, mas sim estritamente psiquiátrico e, no geral, sem sequer pensar nas críticas que mesmo os psiquiatras se fazem. Como diziam os medievais “a natureza possui um horror vacui”, esse vácuo deixado pela psicologia é preenchido por toda sorte de coisas, desde discussões muito estranhas sobre “física quântica” até o coaching.

Do que tenho visto até agora, esse projeto me parece ter chamado a atenção de algumas pessoas mais lúcidas que percebem que o coach pode ser pouco mais do que um pensamento mágico que custa caríssimo – em que pese que eu acredito que devam existir pessoas sérias nesse meio em número não negligenciável, que se prejudicam do charlatanismo e certamente também são contra esse estado de coisas – e de psicólogos que veem nele uma oportunidade de revanchismo. Tenho sempre muitas reservas contra qualquer coisa que me soe como reserva de mercado e corporativismo, e a mim me parece que, no fundo algo que pesa para os psicólogos no que concerne a essa proposta tem a ver com essas duas coisas. Pouca coisa de realmente importante mudaria com essa proibição, e como Jung asseverava, as pessoas esquecem que existe uma inteligência para o mal, como o coaching pode ser qualquer coisa, seria complicado cerceá-lo, ainda por cima, como não há qualquer rigor, basta mudar de nome e voilà! Penso que seria mais útil e produtivo tentar pensar nas falhas da psicologia, da psiquiatria e discutir com seriedade as grandes questões do nosso tempo que a prática do coaching tenta responder com pensamento positivo: o individualismo, a falta de empatia, o significado de sucesso, o materialismo, a pressa, o ocaso das grandes saídas espirituais, as agruras do capitalismo etc. A lista é longa, e urge que criemos alternativas reais ao coaching, ou que ao menos, em nosso desespero existencial, sejamos um pouco mais exigentes, que ao menos as pessoas que vendem “sucesso” sejam realmente bem sucedidas e não gente que fracassou em outra profissão qualquer e virou coach, que possuam de fato algum expertise, com ou sem diploma, e que possam comprovar esse conhecimento ao invés de acreditarmos em qualquer promessa perversa, será pedir demais que pessoas desamparadas pensem duas vezes antes de agarrar a primeira mão que surge para lhes arrebatar das águas em que se afogam? Talvez seja, talvez seja demasiado, mas não vejo saídas simples para problemas complexos, afinal não sou coach.

domingo, 7 de abril de 2019

Sérgio Moro



O ministro Sérgio Moro é um fenômeno peculiar a ser analisado, especialmente sua ascensão e queda, que acompanha o surgimento e ocaso do “governo” que ele desavergonhadamente ajudou a eleger.
Visto em retrospecto, quando ele sai da seara jurídica, onde de fato ele tinha super-poderes, devido a uma incapacidade do judiciário seguir suas próprias regras e se auto-regular, em virtude de suas ligações intestinas com os poderes políticos e econômicos, bem como com suas ligações íntimas com a religião, especialmente as neo-pentecostais ou com o catolicismo mais tacanho, justo em sua atuação política, seus limites tornam-se auto-evidentes.
Moro é politicamente incapaz, tacanho, sem a menor compreensão de como funcionam os meandros de nossa república, ele é um perfeito representante de sua classe social, o funcionalismo público de classe média alta: um sujeito incapaz de fazer uma leitura precisa da sociedade onde vive, que desconhece a história da nossa nação, sem qualquer traquejo político, e que se julga o parâmetro real da sociedade em termos de ideias e comportamentos. Ele é alguém para quem seus privilégios se convertem em uma venda, que o impedem de aceitar, admitir ou compreender a diversidade e desigualdade de nossa nação. É sempre bom lembrar, somos uma nação marcada pela violência, exclusão, pela mancha indelével de nossos 300 anos de escravidão, e pelo nosso lamentável racismo estrutural. Moro é uma amálgama de tudo isso. Basicamente ele é um medíocre com delírios de grandeza.  Ele é um homem médio, e Jung definia psicologicamente o homem médio como alguém que tem apenas uma coisa na cabeça. Talvez Moro entenda de direito, se ele realmente entender terá sido profundamente desonesto e venal como juiz, mas talvez nem disso ele realmente entenda.
Moro é medíocre, mas assim como muitos iguais a ele, se aproveitou da nossa pretensa meritocracia, pois passar no concurso para juiz federal exige uma dedicação exclusiva, vários anos estudando em cursinhos especializados em dar dicas certeiras sobre os tipos de prova e que mais cai, que é algo possível apenas em que pode se dar ao luxo de passar de 3 a 5 anos sem trabalhar e estudando não para ser juiz, reparem, mas para passar no concurso, coisas distintas. Moro é o resultado de um acúmulo de privilégios e profundas desigualdades sociais, e foi preparado para ter autoridade e não a sabedoria para exercê-la. Além de tudo, ele tinha uma certeza quase paranoica de sua própria grandeza, ele almejava não simplesmente acabar com a corrupção, mas fundar uma nova república, estava quase numa missão divina, embriagado pela própria vaidade e orgulho. Essa mesma miopia parece ser um traço comum em seus pares, uma cegueira que os faz observar o mundo como um construto subjetivo, porém desconhecido, suas ações e discurso mostram que ele lidava com suas fantasias sobre o Brasil e sobre si-mesmo, e não com a maneira como as coisas se comportam, mas a realidade objetiva está aí para nos cobrar um preço inelutável.
Como ministro de um governo pífio e pusilânime ele deparou com a complexidade kafkiana de nosso presidencialismo de coalisão, onde sua vontade não impera soberana, teve de lidar com o humor mercurial das massas, que já não o vê como herói salvador da pátria, e com o humor perverso dos brasileiros que rapidamente ao notar suas óbvias falhas as transformou em piada. Moro não passa de um exemplo do “senso comum ilustrado”, ele é um tolo diplomado, algo que grassa em um país tão desigual como o nosso, um técnico sem qualquer visão de mundo para além dos preconceitos tacanhos de sua classe, mas com delírios de grandeza. Moro esperava ser obedecido, mas acabou sendo apenas escarnecido. Ao se tornar ministro ele uniu a sua pusilanimidade ao ridículo desse governo, ele é apenas mais um piada de mal gosto. Mas Moro é legião, milhares de jovens de classe média alta, racistas, tacanhos, burros e limitados estão viajando para fazer concursos, e sendo adestrados como cães para passar em algum deles e depois desfrutar de sua ignorância numa posição de poder e prestígio, que apenas confirma seus preconceitos afetivos e quimeras. Moro só mostra o resultado nefasto da nossa proverbial desigualdade, um tolo togado, sem o menor traquejo político, sem erudição, nem mesmo erudição jurídica, sem a menor compreensão sociológica da nossa realidade, e inflado pela sua persona de Juiz. Moro se identifica com o cargo que ocupa, mas sabe ele que sua personalidade tacanha e ignóbil foi apenas engolida pelo manto de autoridade de juiz, que não depende de sua personalidade, mas da sociedade que o cerca. Jung chamava essa condição de neurose de identificação com  a persona, ele não é uma pessoa tridimensional, mas um juiz apenas, em geral que se identifica com sua posição social o faz justamente por ser pusilânime e isso o leva a crer que o poder e a majestade da toga não sejam da sociedade, coletivos, mas uma aquisição individual, ele é poderoso e majestoso.
Seu cargo de ministro desvelou para todos a pequenez de sua alma, e são esses homens pequenos e ridículos que nos governa, são esses micróbios morais e intelectuais que passam nos concursos para juiz, devido aos privilégios atávicos e horrendos que os 300 anos de escravidão nos legaram, quase como uma maldição a pairar sobre nossas cabeças, o sangue dos escravos que está até hoje em nossas mãos nos amaldiçoa a sermos para sempre atrasados e provincianos, pois até hoje matamos a criatividade e o talento daqueles que não têm a cor ou o sotaque correto, precisamos urgentemente entender que Moro é a cara do Brasil que não queremos: uma nação escravocrata, desigual, violenta, machista e elitista. A permanência dessa maldição interessa a muito poucos, é preciso lembrar Deleuze ao dizer que a minoria somos todos e a maioria não é ninguém, mas apenas um forma vazia que vez ou outra é preenchida por alguém: homem, macho e cidadão. Moro por algum tempo foi essa maioria, mas só se pode ser maioria ao se abdicar de si mesmo, e isso tem um preço elevado que ele agora paga com sua própria carne.

sábado, 30 de março de 2019

O Futuro do governo Bolsonaro


Hoj em dia, tenho muito receio de fazer análises e previsões acerca do governo Bolsonaro, porque errei em quase todas as que fiz, eu e todos os demais analistas políticos. Todos nós subestimamos o poder das redes sociais e de fake news absurdas, do anti-petismo, dos movimentos neo-pentecostais pautados por um irracionalismo surreal, e, principalmente, o subestimamos o espírito reacionário de uma parte considerável de nossa gente. Para piorar super-estimamnos o poder da mídia tradicional, a influência econômica nas campanhas (sempre tão caras) e, pior de tudo, super-estimamos a realidade... Mesmo diante de todos esses erros, cometemos ainda outros equívocos acerca da atuação de Bolsonaro no poder, nós acreditávamos que ele seria um novo Hitler, que seria fascista e autoritário, que teríamos uma segunda republica de Weimar, mas o que vemos é simplesmente um novo Jânio Quadros, ainda mais patético, nós subestimamos grosseiramente a incompetência de Jair e seu clã.
O destino do governo Bolsonaro parece incerto, mas me arrisco a novas previsões, ao menos compreendo que os velhos modelos nos servem pouco para entender o que se passa. A primeira coisa a se compreender é que Bolsonaro não é um governante autoritário. Ele é um grosseirão, que gosta de exaltar a ditadura e vocaliza os mais horrendos preconceitos atávicos de nossa avelhantada república escravocrata, mas fora isso, ele sequer consegue controlar os filhos, não é capaz de unir seus aliados, seu governo não possui nem o menor traço de coesão e coerência, ao invés disso, seus aliados vivem uma constante guerra por território e prestígio o que denota justamente uma ausência de comando. Algo básico, quando não há uma hierarquia clara, ela vai se estabelecer por conflito, e é isso o que vemos. Alguém realmente autoritário já teria sido, bem, autoritário, e colocado ordem na casa. Pelo contrário, Bolsonaro é fraco, vacilante, incapaz, para além de incompetente, ele é incapaz, diria até que preguiçoso. Talvez as três palavras que melhor o definam sejam burro, incapaz e preguiçoso.
Para piorar ainda mais, ele não faz nem ideia do que significa ser presidente, e herdou uma presidência fraturada, ferida de morte pelo impeachment, e com sua eficácia simbólica duramente abalada, quase destruída. Nós achávamos que ele seria um Trump, que iria usar a tática do Fire Housing para nos confundir e passar as reformas, mas creio que ele nem sabe o que significa tática. Jair permanece o mesmo, como parlamentar ele foi ineficaz, como candidato suas “qualidades”, de ser tão estúpido que dizia coisas indizíveis bem ao gosto do espírito escravocrata e assassino do nosso povo, o elegeram, mas agora essas qualidades o destroem. Quem esperava uma metanóia, que de súbito ele se tornasse um presidente, esperava por um milagre, que, obviamente, não aconteceu.
O mercado, o verdadeiro deus do Messias de araque que se sente na cadeira da presidência, está insatisfeito. Guedes, o Chicago boy, é um incompetente e um lunático. Moro é o que sempre foi, um homem de elite, acostumado aos seus privilégios de nascença, que super-estimou suas próprias qualidades e agora deve estar percebendo que não passa de um amador, sem a menor pista, o menor laivo de compreensão de como a nossa complexa república funciona, e junto do governo que ele descaradamente ajudou a eleger, seu mito e sua imagem desmoronam. Em três meses sobram escândalos e constrangimentos, há uma paralisia causada pela incompetência generalizada de todos os membros importantes do governo. Caçar comunistas inexistentes pode ser bom para dar votos, mas não serve de nada quando se está no poder, Olavo pode xingar e berrar o quanto quiser, mas não se governa sem um mínimo de habilidade.
Ciro Gomes acredita que Jair será de fato um Jânio Quadros, que diante da impossibilidade de governar irá renunciar. Os militares não parecem tão interessados em um golpe, e Jair é um fraco, não tem culhões pra isso. Um impeachment parece improvável, pois o PSDB ao destruir Dilma se consumiu no processo, e, ao contrário dos Bolsonaro, os nossos parlamentares são raposas velhas e aprendem com os erros. A cada dia um aliado se afasta, a lista já está longa: Feliciano, Pondé, Lobão, Frota, Rodrigo Maia... O fato é que um governo tão comprometido com os rentistas e o “mercado”, é melhor mesmo que não funcione, ao mesmo tempo, aqueles que mais precisam do governo, os mais pobres, ficarão à míngua por quatro longos anos. De qualquer sorte, o mais provável é que aconteça algo muito improvável, só o tempo dirá.