terça-feira, 25 de setembro de 2012

Às vezes é chato...


Hoje eu vou me permitir algumas coisas as quais eu normalmente não me permito, uma delas é autopiedade, é preciso haver exceções, mas veja trata-se aqui justamente de uma queixa a exceção.

Nessa sexta, em meu grupo de estudos sobre Psicologia Analítica, aproveitei para conversar sério sobre o compromisso de estudo dos meus “alunos”, não como um “rela” ou “esparro”, mas por que genuinamente me preocupa que eles não encontrem um caminho individual e genuíno no que concerne a teoria. Não quero discípulos, até porque não sou mestre de nada... Mas o universo se vingou de mim de maneira implacável.

Estava eu em meu calvário cotidiano de retornar a faculdade depois de velho, assistindo a aula mais tediosa (em cujo assunto em considero quase um expert por ter feito meu mestrado nisso e ter estudado por anos a fio) quando ao final, motivado por uma pergunta meio ingênua o professor aproveitou para fazer algo parecido com o que eu fizera na sexta. Ele pediu a todos que assumissem uma postura de alunos de ensino superior, que soubessem ao menos falar inglês, entre outras coisas, como que lessem mais... Isso me remeteu ao meu último semestre do curso de História. Fazia uma disciplina de Epistemologia da História e a professora, Adelaide Gonçalves (ótima professora por sinal) nos passou um texto fenomenal de um autor português chamado Fernando Catroga. Eu conhecia a maioria das referências, já tinha lido os autores que ele citava, e sabia de onde ele tirava as ideias mesmo quando não estava explícito no texto, por sinal um texto fenomenal! Li com entusiasmo. Na aula seguinte encontrei meus colegas conversando sobre o tal texto e eu compartilhei com eles meu entusiasmo, eles me olharam como seu eu fosse um marciano... Todos estavam perplexos com a leitura, não compreenderam patavina, bom isso foi só o começo...

Começa a aula e a professora pergunta quem entendeu, eu levanto o braço e começo a falar, ela me interrompe “agora não querido”, eu trouxera três dos livros que o Catroga citava, tinha percebido conexões para além do texto, mas sempre que eu falava era interrompido com um “agora não querido”. Enquanto isso ela esculachava a turma por não ter entendido nada, nem ter se esforçado e etc, e eu lá, com cara de tacho. Até que por fim, em virtude da minha insistência em realmente debater o texto ela se virou para mim e disse “Querido, eu sei que você leu e entendeu, mas fique quietinho um pouco, tá?”, e continuou passando um sabão na turma... Semanas depois, ao me emprestar um livro ela disse “querido, procure não ler demais, eu sei que você é inteligente, mas é preciso ter um foco”, dias antes, ela havia instado meus colegas a lerem mais...

Hoje, novamente eu me vi em situação semelhante, mas pior, eu acho. Confesso que nem sei ao certo o que me entristeceu tanto, me senti mais do que com a Adelaide, completamente excluído e extemporâneo... Creio que esse episódio com a Epistemologia da História foi há uns dez anos, posso estar errado, mas é mais ou menos esse tempo. O fato é que esse episódio não me preparou para o que aconteceu hoje, principalmente a minha reação, não consegui ser cínico como sempre... Diabos eu falo inglês e mais uma pá de outros idiomas, eu leio alucinadamente... Mas lá estava eu, escutando o sermão que não se dirigia a mim, tendo acabado de ler um complicadíssimo capítulo de um livro sobre epistemologia Freudiana para uma disciplina que estou lecionando... E mesmo achando a aula tediosa, não gostando da postura do professor, eis que sou tomado de estranha tristeza...

Onde estou eu em meio aos outros? Quem são meus pares? Onde eles estão? Já dizia Jung que a todo conhecimento temos associado uma culpa prometeica, que todo conhecimento leva a algum grau de isolamento... Meu cinismo de velho caiu por terra com um discurso dos mais bobos, será o instinto gregário assim tão forte? Não sei, só sei que já não posso mais viver na ilusão de que eu sou apenas a minha inteligência, não sou, sou parvo em muitas coisas, mais parvo até do que os medíocres, ainda assim permaneço no meu Cáucaso, na minha ilha particular, tristemente contemplando as ondas em silêncio... O resto é complicado, pois sempre há um resto nisso tudo, e o tom sentimental desse escrito é prova inconteste de que a sombra que eu projeto não pode ser negligenciada, mas os fatos me mostram que eu ainda a negligencio, ou não estaria assim tão sentido com um discurso bobo que não era pra mim...

Meu silêncio auto-imposto tem se mostrado um tanto útil em me ensinar, a duras penas, paciência (se bem que normalmente eu tenho isso de sobra) e um pouco de humildade (isso me falta, a despeito do judaísmo e do budismo), e no processo de lidar com as demandas da alma, somente os humildes progridem, lenta e penosamente, em meio às pequenas e grandes tragédias... Essa foi minha pequena tragédia de hoje, ser ferido por essa farpa tão insignificante... Dizem os chineses “atiça uma abelha e ela te atacará com fúria de dragão”, imagino que pequenos demônios eu tenho atiçado em meu peito para que meu humor mudasse de maneira tão repentina... Como disse certa feita Jung, “que temos complexos todos sabemos, o que parecemos não saber é que os complexos podem nos ter”...

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Eleições em Fortaleza: O eminente retorno da política Oligárquica


Faz-se necessária e urgente, em vista da situação de indefinição das atuais pesquisas de intenção de voto para o executivo municipal, pensar a política cearense de maneira mais ampla. Nesse sentindo é mister discutir a posição dos Ferreiras Gomes nesse cenário. É evidente que Roberto Cláudio (atual postulante a prefeitura de Fortaleza pelo PSB) não passa de um títere, um fantoche, e o titeriteiro, quem movimenta as cordas desse fantoche político é o governador Cid Ferreira Gomes. Em virtude desse fato, é nele que devemos centrar essa análise.

Cid Gomes é filho bastardo de Lula e do petismo no Ceará, em tempo, Cid antes de seu primeiro mandato como governador já fora deputado e prefeito de Sobral, mas era praticamente desconhecido no estado fora do reduto político de sua família e um nome dos mais secundários no cenário político. Em virtude de ser um ator secundário em nossa política a estratégia adotada em sua primeira eleição foi a de associá-lo a dois nomes muito conhecidos: Lula e Ciro Ferreira Gomes. Cid era o candidato de Lula e o irmão de Cid. Hoje em dia Cid Gomes é Cid Gomes, a tal ponto que, em certa medida, já pôde freudianamente matar o pai e se ver livre do incômodo PT.

Cid é um político extremamente habilidoso, e por quase oito anos governou com mais poder e tranquilidade do que o Tasso Jereissati jamais sonhou em possuir. Praticamente sem oposição, com o PT ao seu lado, Cid se impôs como um dos protagonistas mais destacados da política em nosso estado. Diferente de seus irmãos Ivo e Ciro, de caráter mais destemperado e de pouco traquejo diplomático, Cid demonstrou sempre o oposto, tranquilidade e frieza ao tratar da política. Ciro é sem sombra de dúvidas um homem de grande inteligência, e talvez um dos maiores oradores que o Ceará já viu, mas ao mesmo tempo, seu destempero e a língua solta o transformaram numa caricatura de si mesmo, um “seu Lunga” da política de quem sempre se espera alguma declaração bombástica ou ato de descontrole, isso já é parte integrante de sua persona política. A tranquilidade e frieza de Cid e sua maior habilidade de bastidores contrasta com o comportamento dos irmãos, principalmente por ter colocado sob seus calcanhares alguns setores do PT.

O exemplo mais bem acabado desse fato é o Professor Pinheiro, que sacrificou sua história de construção partidária e militância para se manter docilmente sob as asas de Cid. Dentro do PT, existiu a ideia equivocada de que a aliança com o PSB trouxe os Ferreiras Gomes para um campo de centro esquerda, doce ilusão essa, não mais do que uma quimera ou mentira piedosa para justificar aliança tão estranha. Cid soube lidar com essa aliança inconveniente muito melhor do que o PT. Em seu segundo mandato, em jogada de mestre, tornou inócua a figura de Antonio Carlos na assembleia ao torná-lo seu líder de governo, e mesmo setores do PSDB (reduzido a quase nada depois da derrota de Tasso) aderiram alegremente ao seu governo, assim como o PMDB que emplacou o Vice e um Senador. Além disso, com a imprensa no bolso, construiu para si a imagem de administrador jovem, moderno e arrojado. Essa mesma imprensa atacou incansavelmente a administração petista na capital, criando para a classe média uma imagem das mais desfavoráveis para a prefeita Luiziane Lins, imagem essa que ela, algumas vezes, inadvertidamente ajudou a cristalizar.

Diferente do governo do estado, a prefeitura de Fortaleza faz parte de um projeto nacional que se iniciou com Lula e que possui um compromisso social que não é compartilhado pelos partidos de direita. Certamente o PT se afastou do “espírito do Zion”, das máximas políticas que nortearam sua fundação, mas ainda assim foi capaz de realizar reformas fundamentais para reduzir o abismo entre ricos e pobres e tirar da pobreza uma parcela significativa de nossa população. Com seu fetiche pelas grandes obras, o compromisso dos Ferreiras Gomes e de Cid são outros, como fica claro pelos nomes de grandes empresários que cercam Cid e Roberto Claudio, sua descendência e afinidade com Tasso fica cada vez mais clara, com a diferença crucial de que Cid é mais habilidoso e inteligente do que Tasso e Ciro jamais foram. Nossa consciência é efêmera e ao ouvirmos as promessas de Roberto Cláudio, respaldadas por Cid, para a educação, não nos recordamos da catástrofe que foi a educação no governo Ciro em Fortaleza. Ciro implantou o famigerado Sistema de TV, que reduziu os professores a meros operadores de controle remoto e prejudicou uma geração inteira de alunos.

Caso Roberto Claudio chegue efetivamente ao poder, veremos na realidade a ascensão da mais poderosa oligarquia que já se viu nesse estado, os Ferreiras Gomes, capitaneados por Cid. Algo que mesmo para a direita é daninho. Em nosso estado vemos a ascensão de novos protagonistas na política, como o vice-governador Domingos Filho e o Senador Eunício Oliveira, esses atores rapidamente passarão ao segundo plano no caso de uma vitória dos Ferreiras Gomes na capital. Os Ferreiras Gomes terão em seu poder o estado, a capital e inúmeras prefeituras, com essas cartas poderão facilmente ditar sua política a direita (PMDB, DEM, PSDB e companhia) e com maior facilidade submeter à esquerda do PT. Convém recordar, que uma parte considerável do PT já está no bolso de Cid, mesmo agora durante esse momento crucial. Importa salientar aqui uma diferença importante, O PMDB compôs o atual bloco político com o PSB, mas o PSB é secundário, pois os Ferreiras Gomes são antes de tudo uma família. Ciro já passou por sete partidos e ele e os demais membros do seu clã primam por estar no poder, seja em que partido for, atualmente estão no PSB, mas quem sabe o que o futuro lhes reserva? Qual partido será mais conveniente amanhã?


Esse é um perigo real, do retorno efetivo da política oligárquica em nosso estado numa roupagem nova, mais dinâmica e moderna, logo, muito mais difícil de combater e mais propensa a se eternizar no poder. O PCdoB de Inácio com sua candidatura aventureira, o Psol com seu maniqueísmo e discurso franciscano, e mesmo os setores do PT que se alinham a Cid, tornam desse futuro nefasto algo cada vez mais próximo. Com a proximidade do desfecho eleitoral é preciso que aqueles que não desejam o retorno a uma política oligárquica e que almejam que o projeto nacional representado pelo governo do PT possa ser efetivado em nosso estado repensem suas posições, pois a fragmentação da esquerda, historicamente, sempre favoreceu o tipo de política representado em nosso estado por Cid e companhia.

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Uma análise psicológica do mito moderno do Zumbi


O que pretendo com esse texto é realizar uma leitura psicológica do zumbi. Vemos hoje uma imensa atenção dada a essa figura, em filmes, quadrinhos, vídeo games livros e séries de tevê. Desde o aclamado “The Walking Dead”, até o filme que apresenta como protagonista um zumbi adolescente apaixonado por uma humana e que procura pegar carona no sucesso de “Twilight”. Os exemplos do aparecimento dos zumbis na cultura pop poderiam se estender muito mais, desde a série de quadrinhos que transformava todos os heróis da Marvel Comics em zumbis (Marvel Zombies), até o Anime nipônico “Hig School of the Dead” (existe até mesmo um cardgame baseado em “Resident Evil”). Em vista desse enorme interesse sobre essas criaturas desmortas me vi impelido a pensar sobre o que significa um tal interesse por parte de tantas pessoas. É importante salientar de início que esse esforço deve ser entendido apenas como um esboço inicial, um torso inacabado por assim dizer.

Um dos pontos interessantes da atual “mitologia” dos Zumbis diz respeito ao “apocalipse zumbi”, que seja um acontecimento, por vezes inexplicável, em que a maior parte da população da terra é repentinamente transformada em zumbis comedores de carne humana. Na maioria dos exemplos atuais – como “The Walking Dead” – não há qualquer explicação para esse fenômeno, importam seus efeitos, já em “Resident Evil” a origem dos zumbis é o que movimenta toda a trama. Toda a sociedade como a conhecemos é destruída por essa praga de mortos vivos e os sobreviventes se veem obrigados a lutar incansavelmente para se manterem vivos e tudo o que antes era dado como garantido se desfaz como fumaça. Nesse cenário macabro, mesmo outros humanos (vivos) premidos pela fome, medo e instinto de sobrevivência, se tornam antagonistas fatais e toda a possibilidade de laço social fica impedida ou, ao menos, seriamente ameaçada. Nesse quesito, apocalipse zumbi, temos como o exemplo mais bem acabado a revista em quadrinhos, posteriormente adaptada para a tevê “The Walking Dead”, bem como a série de filmes baseados nos jogos de videogame “Resident Evil”.

É extremamente importante salientar, que em todos os casos atuais de aparecimento de zumbis eles não são criaturas mágicas, mas o resultado de uma doença, um vírus (como no caso de Resident Evil), ou algo do gênero. Há sempre uma causa física, material, biológica para o surgimento dos monstros. O despretensioso anime “Kore ha Zombie Desuka” é uma exceção, seu protagonista zumbi é uma criatura criada por magia, bem como um filme da década de oitenta em que os zumbis apareciam em virtude da profanação de um cemitério indígena, ou ainda, os “zumbis originais” da cultura pop, que eram criaturas desmortas criadas pela magia do Vodu haitiano. Nos casos atuais, todavia, como já salientei, há sempre uma causalidade material, orgânica e pseudocientífica para o aparecimento da praga de zumbis, mesmo que isso seja algo que aparece sous entendu na trama.

Antes de analisar esse aspecto, do apocalipse associado aos zumbis, ou causado por eles, é preciso que a criatura seja caracterizada. Em suas encarnações mais recentes os zumbis são cadáveres animados, terrivelmente desfigurados, capazes de se mover (algumas vezes de maneira desajeitada, outras vezes com agilidade sobre-humana) que perdem toda e qualquer memória ou vestígio da personalidade que tiveram em vida, que são impelidos unicamente pela fome. Os zumbis da década de oitenta, que apareceram nos filmes e na tevê, tinham um predileção especial por comer cérebros humanos, já os atuais são bem menos exigentes e comem carne humana de uma maneira irrestrita. Os zumbis parecem não se interessar por presas mortas (convenientemente eles não se devoram uns aos outros), mas comem de maneira voraz e horrenda apenas presas vivas, com o coração ainda pulsando. Algumas vezes, na realidade na maioria dos exemplos, o zumbi é contagioso, se alguém for mordido, mesmo que escape a sanha assassina do monstro, ficará infectado e morrerá em pouco tempo, para logo se juntar a legião dos mortos. Esse aspecto está presente praticamente em todos os exemplos hodiernos do zumbi na cultura pop, creio que uma das poucas exceções seja o zumbi protagonista do anime de ação, romance e comédia “Kore ha Zombie Desuka”, que mantém suas memórias e não é contagioso (é simplesmente um morto que anda e fala).

Marie-louise Von Franz ao analisar as fantasias apocalípticas em sonhos e imaginações ativas de seus pacientes, ou seus paralelos em mitos e principalmente conto de fadas, chega a duas interpretações psicológicas que me parecem pertinentes para esse estudo. Certamente essas interpretações não são as únicas possíveis, mas em termos heurísticos são as que mais nos fornecem uma possibilidade de estabelecer conexões de sentindo entre os fenômenos que estou analisando. A primeira dessas duas interpretações que sublinho aqui está em seu livro O Gato, um conto de redenção feminina. O contexto psicológico é um pouco diverso, por isso precisamos nos aproximar dessa interpretação com cuidado, mas, cum grano salis, ela nos é útil para começarmos a pensar. A interpretação de Von Franz é a de que todo o inconsciente coletivo está agitado, há uma desarmonia entre o comportamento consciente do coletivo e o que o inconsciente está pensando em destruição. Significando, igualmente, que o incosciente coletivo foi tão maltratado por nossa incompreensão que se rebela contra nós, se irrita com a falta de atenção que recebe. Ou dito de outra maneira, não temos acompanhado as tendências significativas do inconsciente, se você peca contra o inconsciente, ele se apossa de você. Estamos falando aqui da força numinosa das dominantes do inconsciente coletivo, aquilo que Jung denominou de arquétipos. Devemos compreender esses conteúdos arquetípicos como potências coletivas psiquicamente reais e objetivas – lembrando que para Jung tudo o que age que atua é real – com as quais não podemos nos identificar, mas as quais devemos tentar tornar favoráveis, nos relacionando com elas. A identificação da consciência com essas forças significa apenas presunção e inflação.

A relação da consciência com o inconsciente se dá de maneira compensatória e complementar – essa é uma das hipóteses basilares de Jung – nesse caso, por meio das fantasias apocalípticas que se manifestam criativamente na cultura pop sob a forma do fim do mundo invadido por zumbis vorazes, devoradores de carne humana, temos a oportunidade de perceber, em termos coletivos, a quantas anda a relação com esse pano de fundo inconsciente inexpresso, com o fato psicológico real.  Ex exposistis, o inconsciente responde de maneiras compensatórias as disposições e atitudes da consciência. Ergo, a maneira como essas figuras se apresentam dependem da atitude consciente. Uma atitude negativa para com o inconsciente gestara imagens assustadoras, uma atitude positiva engendrará o contrário, seres prestativos. No presente caso, a fantasia criativa se expressa de maneira horrenda e pavorosa, com cadáveres putrefatos animados por uma avidez lunática, desprovidos de qualquer consciência humana, irracionais e selvagens como animais predadores e sedentos por sangue e famintos por carne humana. A figura do zumbi, e seu apelo tão forte em nossos dias, fazendo vibrar em tantos de nós uma corda comum em nossa alma é, ao meu ver, sintoma de nossa relação com o inconsciente coletivo.

Como salientei anteriormente, é significativo que nossos zumbis atuais sejam tão marcadamente materialistas e desespiritualizados, são pessoas infectadas por um vírus, ou em filmes mais antigos, uma substância química capaz de trazer os mortos de volta a vida nesse estado lastimável, ou mesmo, em filme recente chamado Chernobyl, cadáveres animados pela radiação proveniente do acidente nuclear. Todo e qualquer aspecto espiritual está ausente dessas histórias (uma exceção são os Wights de Game of Thrones), e os personagens ainda vivos precisam lidar com a dor e o sofrimento de terem perdido tudo e ainda se verem acossados por tais monstros sem qualquer auxílio de ordem espiritual. Nesse sentindo, “The Walking Dead” é emblemático, pois lentamente a sanidade dos personagens vai sendo corroída, assim como sua humanidade e noções de moral. Nessa série televisiva, e nos quadrinhos que lhe deram origem (o mesmo se dá no anime “The Highschool of the Dead), vai se tornando cada vez mais patente que a situação em que se encontram é completamente amoral, e o desespero que isso acarreta passa a se traduzir num crescente individualismo, numa busca solitária e quase irracional de simplesmente viver mais um dia a qualquer custo.

Jung, ao analisar nosso Zeitgeist (espírito da época) conclui que nosso tempo foi varrido por uma onda irracional da preferência sentimental e universal pelo mundo físico. A metafísica do espírito foi suplantada pela metafísica da matéria. A despeito do fato, de que tanto uma explicação quanto à outra (materialista ou espiritual), são igualmente lógicas, igualmente metafísicas, igualmente arbitrárias e igualmente simbólicas. As duas “realidades” (material e espiritual) são vivências psíquicas que se sustentam num fundamento obscuro e incognoscível, não existindo realidade absoluta. Essa onda irracional é uma propensão sentimental, que por motivos inconscientes, age com poderosa força de sugestão sobre os espíritos mais fracos de nosso tempo. “Descobriu-se” no século XIX a verdade inquestionável de que tudo provem de causas materiais, anacronicamente descobrimos, ao nos debruçarmos sobre o passado, que era uma presunção intelectual de nossos antepassados supor que o homem possuía uma alma imortal, de natureza divina, que pode até mesmo levar uma existência independente do corpo, que existem espíritos incorpóreos e um mundo espiritual para além de nossa realidade empírica. Ainda assim, aqui estamos nós, acossados por fantasias apocalípticas onde zumbis (mortos que voltam à vida, não espíritos, mas cadáveres, meros corpos animados por algum quimismo) e podemos afirmar abobalhados, como em Goethe “se o ouvido em mim se fechar/No coração o medo vai medrar/A cada hora mudo a forma do meu ser/ E assim exerço meu despótico poder.”.

Tudo o que é extramundano se converte em realidades imediatas; o fundamento das coisas, a fixação de qualquer objetivo e mesmo o significado final das coisas não podem ultrapassar as fronteiras empíricas. A impressão que a mente ingênua tem é a de que qualquer interioridade invisível se torna exterioridade visível, e que todo valor se fundamenta exclusivamente sobre a pretensa realidade dos fatos. (JUNG, 1986, p.284, grifo meu).

Mesmo a mais profunda desconsideração da consciência para com o inconsciente não anula seu poder, apenas torna a sua manifestação mais mefistotélica, ou no nosso caso, pavorosa. Há, por certo, um medo generalizado do inconsciente, que parece ter se intensificado em nossos dias e que se manifesta na fantasia criativa sob a forma da ameaça dos zumbis. Persiste, todavia o fato autêntico de que nosso mundo real se encontra ameaçado por uma irrealidade fantástica, aqui reside uma superstição primitiva que encontra solo dos mais propícios para deitar raízes no coração do moderno homem civilizado: a tendência quase universal para concretizar as fantasias do inconsciente. Toda a aversão à fantasia, assim como a desvalorização crítica do inconsciente nascem do medo que se tem dessa tendência à concretização. Ao invés disso, deveríamos ser capazes de levar a sério as fantasias provenientes do inconsciente, encará-las como um desafio ao homem todo e ser capazes de interpretá-las ao invés de simplesmente tomá-las ao pé da letra, ou como diria Campbell, de maneira denotativa. É preciso ter em mente que a aparência não é a coisa mesma, mas apenas a sua expressão, na podemos confundir a imagem da fantasia com o que atua por detrás dela (JUNG, 1997). Me impressiona ver, por exemplo, serem veiculadas no Facebook imagens e piadas relacionadas ao “desejo secreto” que muitos alimentam de que ocorra uma hecatombe zumbi, vemos em ação essa tendência a concretização, isso, infelizmente não é sinônimo de se levar a sério o inconsciente.

A outra interpretação dada por Von Franz a esse tipo de fantasia apocalíptica é que as pessoas em geral se encontram num estado de tal tédio e mal estar que anseiam por qualquer coisa que possa tirá-las, mesmo que de maneira forçosa e violenta desse estado, mesmo que se trate de uma catástrofe, de uma guerra ou hecatombe, uma solução violenta para tirá-las da insuportável estase de seu dia a dia e do vazio intolerável de suas vidas. Isso casa perfeitamente com o fascínio provocado pela ideia de um apocalipse zumbi, ou mesmo com o fascínio que certas pessoas têm com relação a filmes e séries de prisão, com seus dramas terríveis e reviravoltas violentas. É uma reação à sensação que Campbell costumava chamar de “terra devastada”, o mesmo Campbell gostava de dizer que estamos todos em queda livre em direção ao futuro, pois nossa sociedade carece de mitos efetivos. É o mito que proporciona um campo onde podemos nos situar, o que os mitos fazem é apontar o transcendente além do campo do fenômeno, como um compasso com uma ponta na esfera do tempo e outra na eternidade. A eternidade a que o mito se refere é a dimensão transcendente do aqui e agora, a eternidade não tem relação com o tempo, na realidade o tempo nos exclui da eternidade. A “terra devastada” é estarmos excluídos da eternidade, desamparados diante dos fatos externos que parecem ter um poder absoluto sobre nós, nos esmagando sem que exista um contraponto na alma capaz de nos manter íntegros e nos conectar com esse aspecto da realidade que ultrapassa o campo empírico.

Deixando por hora de lado o apocalipse zumbi, nos fixemos na figura do zumbi. Confesso que tenho uma terrível aversão a ela. O zumbi não possui o fascínio do vampiro, que é um indivíduo preso num dilema existencial terrível de se manter humano ou ceder aos seus instintos bestiais de predador (ao menos em suas encarnações mais recentes), o fascínio do vampiro, ou mesmo do fantasma, vem do fato de que se tratam de indivíduos, personalidades, com conflitos e idiossincrasias, esse não é o caso do zumbi. O zumbi não passa de um corpo putrefato, incapaz de sentir dor, medo ou cansaço e movido unicamente pela fome, ela não possui alma ou personalidade. Seja lá quem ele foi um dia, isso se perdeu para sempre, suas roupas rotas e o que resta de sua carne são os únicos monumentos à personalidade que ele foi outrora. O zumbi carece inteiramente de qualquer conflito moral, carece completamente de liberdade e individualidade, ele não passa de mais um numa horda infindável de mortos famintos de aspecto repugnante. Fundamentalmente, o zumbi carece de consciência. Ele é uma personificação da fome e instinto predatório e nada mais. Em si mesmo, é uma criatura das mais desinteressantes.

Que paralelos poderíamos encontrar para o zumbi? Bem um dos primeiros paralelos a essa figura tão grotesca da cultura pop é outra criatura dos filmes apocalípticos: as máquinas destruidoras do “Terminator” o Exterminador do Futuro. Assim como os zumbis as máquinas são completamente inumanas (mas podem se assemelhar a nós), é curioso que no filme as máquinas soldados sejam esqueletos de metal, guiadas por uma espécie de consciência comum, como uma colmeia onde toda a individualidade é esmagada. Mutatis mutandis, assim como os zumbis, as máquinas são seres inorgânicos, feitos de metal frio. Ora, os zumbis estão mortos, não passam de carne putrefata, são autômatos feitos de carne podre. Nesse aspecto, de serem autômatos o paralelo é muito similar. Como seres contagiosos, e que seu contágio resulta na aniquilação da individualidade, me vem vivamente à lembrança o antagonista de Neo em Matrix, o agente Smith (sobrenome extremamente ordinário e comum no mundo anglo-saxão) capaz de infectar (ele próprio se converte em uma espécie de vírus no mundo virtual da matriz) qualquer um e transformá-lo em uma cópia exata de si mesmo, apagando qualquer traço de individualidade anterior.
Outro paralelo possível está na tradição budista. Baseio-me aqui nos ensinamentos de S.EMA. Chagdud Tulku Rinpoche, compilados por Chagdud Khadro. De acordo com os ensinamentos sobre os bardos, existe seis possibilidades de renascimento na crença budista: o reino dos infernos, o reino dos espíritos famintos (pretas, ou gakis em japonês), o reino animal, o reino dos deuses invejosos (titãs ou asuras), o reino dos deuses (devas), e o reino humano. Interessa-nos o reino dos espíritos famintos (ou espíritos carentes). Nesse reino as criaturas são consumidas por uma fome e sede insaciáveis, possuem corpos deformados com bocas minúsculas, ou pescoços estreitos e barrigas imensas e sofrem de horrendas privações, perpetuamente acossados pela fome e incapazes de aplacá-la. O karma que os conduz a esse renascimento tão desfavorável é a avidez, mesquinharia e o roubo. Nesse estado é impossível se alcançar o estado de liberação do sofrimento, o nirvana. Vários são os obstáculos a que possam saciar sua fome, alguns são queimados por dentro e por fora ao comerem qualquer alimento, outros enxergam a comida como substâncias revoltantes, enquanto outros conspurcam a comida ao seu toque. Assim como os zumbis de nossa cultura pop, essas criaturas são premidas por uma fome intensa e implacável, todavia o caráter mais espiritual desse estado salta aos olhos se comparado ao atroz materialismo do zumbi. Também não se caracteriza como um estado definitivo, mas assim que se esgota o karma, segue-se outro renascimento. Na moderna mitologia do zumbi, qualquer aspecto espiritual é completamente sonegado, a morte é um estado definitivo e grotesco, não há paz nem mesmo na morte.

Uma das fontes do horror dos zumbis é que eles são personificações do aspecto puramente material e desespiritualizado da morte: corpos putrefatos. Ainda assim, são corpos em decomposição que se movem, comem carne humana e nos ameaçam. São mortos inquietos e famintos que em sua avidez acabam por nos tornar como eles. Novamente temos aqui um indício da atividade compensatória do inconsciente coletivo. Todavia, esse não é, a meu ver, a principal fonte do horror e fascínio dos zumbis. Devo confessar que foi através de um pesadelo que me ocorreu o significado psicológico do zumbi, antes um completo mistério para mim. O zumbi representa um estado de absoluta massificação, de destruição do indivíduo e da possibilidade de vida individual, uma pungente metáfora para outra atitude muito comum no nosso tempo.

Em seu pequeno ensaio “Presente e Futuro” Jung reflete sobre a dificuldade da psicologia em se desembaraçar da antinomia “o individual não importa perante o coletivo, e o coletivo não importa perante o individual”, na realidade é totalmente impossível se desembaraçar dessa realidade, pois a própria alma é extremamente paradoxal, todavia, a psicologia precisa lidar com isso, pois é uma ciência (de linguagem universalizante e geral), mas que lida diretamente com o dado irracional que é o homem individual.

Uma formação em princípio científica baseia-se, essencialmente, em verdades científicas e em conhecimentos abstratos que transmitem uma cosmovisão irreal, embora racional, em que o indivíduo, como fenômeno marginal, não desempenha nenhum papel. Mas o indivíduo, como um dado irracional, é o verdadeiro portador da realidade, é o homem concreto em oposição ao homem ideal ou “normal” irreal, ao qual se referem as teses científicas. (...) as ciências naturais, em oposição às “humanidades”, impõem, portanto, uma imagem do mundo que exclui a psique humana real. (JUNG, 2011, p.16).

Vemos aqui o efeito daninho e perigoso do “pensamento estatístico”, pois sob o peso esmagador dos pressupostos científicos o indivíduo e a psique sofrem um nivelamento que distorce a imagem da realidade e a transforma em média ideal. Essa imagem estatística do mundo reprime o fator individual. Isso impede ou emperra toda a possibilidade de desenvolvimento moral do indivíduo. O mote romântico de que “tudo o que vive, vive individualmente” é esmagado aqui, mas permanece o fato de que a única vida real é a vida individual. A sentido e a finalidade da vida passam a ser imposto de fora para dentro do homem e decisão moral passa a ser progressivamente retirada do indivíduo, que passa a ser encarado como mera unidade recorrente, gerando uma caótica falta de identidade. “Quanto maior a multidão, mais ‘indigno’ é o indivíduo. quando este esmagado pela sensação de sua insignificância e impotência, vê que a vida perdeu o sentido (...)” (JUNG, 2011).

Disse certa vez Jung “O homem de hoje, que se volta para o ideal coletivo faz de seu coração um antro de criminosos”, lembrando ainda que há um complicador a mais, é preciso ter em mente que sem liberdade a moralidade é impossível, e que todo o progresso e todo o talento é individual, e a liberdade é diretamente proporcional a possibilidade de desenvolvimento individual. O complicador de que falava a pouco, consiste no fato de que tudo o que foi falado no que diz respeito a influencia da sociedade sobre o indivíduo é igualmente válido no que diz respeito a influencia do inconsciente coletivo sobre a psique individual, essa influência é invisível, diferente da primeira. Vemos aqui, na imagem do zumbi, a tendência do psique individual ao se deparar com problemas de ordens gerais, responder com motivos mitológicos, o zumbi me parece, pelo menos num primeiro momento, uma tentativa malfadada de compensação a essa ameaça que vem de “dentro e de fora” e que traz a promessa de aniquilação e esquecimento. Um zumbi não importa enquanto indivíduo, ele encontra na morte e reanimação uma espécie absoluta de massificação, de aniquilação da individualidade, ele representa uma ameaça real, e atua, cum grano salis, como um símbolo, pois parece que muitas pessoas se sentem atraídas por essa imagem justamente por esse motivo, mas de uma maneira apenas obscuramente pressentida.

Como disse no início, esse texto é apenas um torso inacabado e deve ser julgado dessa maneira pelos seus leitores, acredito que no futuro retornarei a ela para uma reflexão mais séria e profunda sobre o tema.

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

De volta à escola


Estou de volta à faculdade, dessa vez a faculdade de Psicologia. Nunca parei de estudar, seja no sentido da minha busca pessoal por conhecimento e erudição, minhas pesquisas, leituras e escritos, seja no sentido institucional, pois depois da graduação fiz mestrado e estou fazendo doutorado. Os franceses tem um ditado dos mais interessantes “plus ça change plus c'est la même chose”, muita coisa mudou desde que eu deixei os bancos universitários após a minha primeira faculdade, mas muita coisa permaneceu a mesma.

Antes de falar da minha experiência presente, não consigo resistir a me perder um pouco em reminiscências e lembranças dos meus “tempos de faculdade”, expressão que agora se torna ambígua, no mínimo. Minha primeira faculdade foi veterinária, cursei por três anos e depois desisti. Foi um período intenso, fiz muitas coisas, fui presidente do centro acadêmico, representante estudantil no departamento de veterinária, monitor, bolsista de iniciação científica, eu praticamente morava no campus. A veterinária era um curso exigente, algumas vezes tinha aulas o dia inteiro, conheci muita gente bacana, muitos dos quais perdi totalmente o contato, nessa época eu andava sempre de botas, nunca mais usei botas depois da veterinária.

Quando desisti da veterinária, fiquei em dúvida sobre que curso fazer, História ou Psicologia, bem, optei por História. Quando lembro dessa época é sempre com um sorriso no lábios, eu me diverti muito. Adorava ficar pelos corredores batendo papo, jogando conversa fora. Nessa época eu não bebia e era vegetariano, e costumava brincar dizendo que existiam dois tipos de alunos de história: os maconheiros e eu. Tinha poucos, mas bons amigos, tínhamos a nossas piadas particulares, as pessoas com quem fazíamos essas piadas (hoje seria bullying). Meu pai era professor da faculdade, na disciplina de história do Ceará, mas jamais fui aluno dele. Eu me vestia de maneira andrajosa, nunca usava calças compridas, usava sempre as mesmas camisetas brancas surradas (muito confortáveis), andava de ônibus e não tinha um centavo. Também fui bolsista, e presidente do Centro Acadêmico, mas isso não foi o mais legal. Encontrei um dos meus professores, o Régis, quando ele estava lançando um livro e trocamos algumas palavras, eu disse que agora que estava lecionando ia pagar meus pecados por ter sido um aluno tão chato. Para a minha surpresa ele disse que sentia falta de mim como aluno e que não me achava chato, e que os alunos atuais não discutiam mais nada em sala ou participavam. Eu tive sorte, nessa época tive professores brilhantes e gostava muito do meu curso e das coisas que estudávamos, foi uma época memorável.

O que me traz de volta ao presente, e a minha nova faculdade. Diferente da época da veterinária e da história, eu passo a maior parte do tempo de boca fechada. Sento-me na última fila, como sempre foi o meu costume, e fico lendo, coisa que às vezes eu fazia na época da história. A faculdade é estranha, ficamos na mesma sala, como num colégio. A despeito de ser um sujeito expansivo e extrovertido, fico só lá calado lendo. O curso de Psicologia é estranho e esquizoide, pois não há, a rigor, uma psicologia, mas muitas. Em virtude desse fato, se estudam teorias as mais diversas, sem relação umas com as outras e que com frequência se contradizem, dizer que se trata de um curso generalista é um eufemismo. Por sorte aproveitei várias disciplinas, mesmo assim tenho vários anos a minha frente antes de ter um diploma.

Quanto a mim, e o meu silêncio, tenho sentimentos confusos. Eu já sabia de antemão como seria o curso, não tinha ilusões, mas isso me faz ver como ilusões são importantes. Sinceramente não tenho disposição para aprender nem um terço das coisas que são ensinadas ali, das muitas psicologias. Não é para mim um tempo de aventuras e descobertas, já sei bem o que me interessa e já estudo isso há mais de dez anos, creio que quatorze para ser mais exato. Não participo das discussões em sala, não dialogo com os professores, não faço perguntas, só fico lendo. O que é bom por um lado, isso tem aumentado minhas horas de leitura, vinha lendo menos ultimamente (creio que quando eu leio pouco isso ainda deve contar como pelo menos 3 ou 4 vezes o tempo de leitura de uma pessoa normal). Seja lá como for, certamente não será um tempo memorável, não sou mais tão quebrado quanto era na época da história, e há tempos abandonei minhas confortáveis camisas brancas, não ando mais de ônibus e nem uso botas. Pelo que soube há um centro acadêmico, mas estou ocupado com a política em outras esferas, não fico de papo falando bobeira nos corredores e nem faço piadas. É interessante, no doutorado eu ainda faço todas essas coisas (não, não uso botas falo das conversas e piadas), mas não me permito fazer o mesmo na faculdade.

Quando eu fui estudante de história tinha a fama de ser arrogante, e eu era um cara meio desagradável mesmo pensando em retrospecto, mas mesmo nessa época sempre fui amigo dos meus amigos, e um sujeito sincero e direto. Passei muito tempo tentando lidar com essa história de eu ser arrogante, era uma fama estranha, pois eu era tão descolado e largado... Certa feita, conversei com uma amiga sobre a minha imagem na faculdade e ela me disse que poucas pessoas me conheciam, no sentido de serem próximas a mim e saberem como eu era mesmo. Não acho que eu fosse arrogante, mas uma coisa eu era e ainda sou: exibido. Creio que levarei esse pecado para o túmulo, o que é algo paradoxal ser ao mesmo tempo alguém exibido e reservado ao ponto de meus amigos se surpreenderem com fatos ao meu respeito, coisas que eu faço e gosto, aconteceu recentemente com um bom amigo meu de se espantar ao saber que eu fazia traduções (de textos e simultâneas), nos conhecíamos há tempos, e eu nunca falara sobre isso.

Nas duas vezes em que fiz faculdade anteriormente a universidade era o centro da minha vida, passava muito tempo por lá e tudo orbitava em torno dos meus estudos acadêmicos. Hoje eu faço muitas coisas ao mesmo tempo, e só passo o tempo necessário na faculdade, nem um minuto a mais, a família, o trabalho, a política, meus estudos e projetos não me permitiriam, nem que eu quisesse, ficar de bobeira por lá... Isso é um pouco mentiroso da minha parte, eu fico de bobeira no doutorado conversando, discutindo teoria, fazendo piadas e falando mal do povo. O fato é que não é um tempo interessante o que eu passo lá, e eu não permito que ele seja ou o torno interessante. Creio eu que devem ter pessoas legais com quem eu poderia falar bobagens e contar piadas ou ficar de bobeira ao invés de simplesmente ter saudades dos meus tempos de faculdade, mas eu estou velho, ou me sinto velho quando estou lá. Mais velho e mais cínico, é difícil não ser cínico quando não se tem ilusões... Me deu uma vontade repentina de usar botas...

domingo, 2 de setembro de 2012

Sobre a Paixão


Por incrível que pareça existem pessoas que não conseguem reconhecer o mais pujante dos sentimentos humanos, e ficam perplexas ao perceber que já foram, há tempos, tomadas por ele mesmo sem terem ciência desse fato. Ao que parece, algumas pessoas vivem como se não tivessem sentimentos, mas isso não impede os sentimentos e as possuírem, talvez até mais facilmente do que o normal nesses casos.

Confesso que por longos anos vivi assim, negligenciando uma parte das mais importantes da vida, racionalizando ou ignorando o que se passava em meu peito, um jeito estranho de seguir vivendo. Certamente a mudança não me converteu em poeta, ou bardo, mas me tornou mais humano, e mais completo. Longe de ter me tornado senhor de meus sentimentos, algo que ninguém é, apenas me tornei mais atento a eles e a seus efeitos sobre mim e sobre os outros. O amor, a paixão, é tema onipresente na música, poesia e romance, na verdade, é um tema onipresente na cultura, mesmo que sua presença seja demarcada por sua ausência.

A despeito de meus desejos, de minha vontade ou de meus planos, já me apaixonei por três vezes em 33 anos. Não sei exatamente quantas vezes isso pode acontecer, ou quantas vezes é aconselhável que aconteça, mas esse é o meu caso. A primeira coisa que compreendi sobre a paixão é que não há nada a ser compreendido, a paixão é algo irracional, uma força da natureza que simplesmente acontece. Quem poderia explicar os motivos de dois seres humanos se apaixonarem? Por que ela e não qualquer outra? Nada mais irracional que a paixão, tentar entender suas causas é como tentar elucubrar os motivos de termos sido pegos por uma chuva sem qualquer guarda-chuva a mão. Simplesmente não nos é dado saber, não perca tempo. Mas, para aqueles como eu fui outrora, que são cegos e surdos, convém explicar ao menos como reconhecer a paixão.

Você, meu caro amigo, está apaixonado por alguém quando a mera presença dessa pessoa o intoxica, como um copo de vinho forte tomado de um só trago, na presença dela todas as suas dúvidas e medos se esvaem como fumaça, toda a sua confusão desaparece e por um instante glorioso você se sente um e inteiro. Sem perguntas tolas, sem divagações ou racionalizações. Você está apaixonado quando passa rapidamente ao lado de outra mulher e seu delicado perfume o faz lembrar dela e num instante se vê assaltado por recordações e imagens que se prolongam por mais tempo do que a fragrância. A paixão é algo insistente, inconveniente e não tem qualquer consideração pelo que é correto, justo ou adequado. Você está apaixonado quando o mais simples dos gestos, ou algo de banal lhe faz pensar nela de uma forma que nada consegue exorcizar essa lembrança e, mesmo quando isso o entristece, a tristeza lhe traz algum alento.

Não saber que está apaixonado não priva a paixão de sua força, há algo de primevo e indômito na paixão que não pode ser contido e toda a tentativa nesse sentido é vã. A paixão não pode ser fabricada, ela é um dom, ou maldição, mas seja o que for, é algo espontâneo. Não depende de nossas escolhas ou gostos, é livre e feroz como jamais seremos ou talvez como jamais fomos um dia. Você caro amigo, está apaixonado quando se sente mais confuso e todas as suas certezas se esvaem, e você consegue contemplá-las como as quimeras que realmente são, pois no fundo há poucas certezas nessa vida. Você, caro leitor, está apaixonado quando, repentinamente, ao ouvir uma música de amor que achava tola e sem propósito, consegue entendê-la. Ou ao ler uma poesia, repentinamente é atingido por uma compreensão do que ela significa pelo simples motivo de que você sabe exatamente o que se passava no coração do poeta, o mesmo tumulto a mesma agonia se passa nesse instante no seu peito, você sabe.

Quando mesmo os defeitos dela o fazem sorrir, e uma estranha confusão de sensações toma o seu corpo a mera lembrança do som do sorriso dela, amigo você está perdido, já não há mais volta e mesmo que houvesse, acredite, você iria preferir estar perdido. Agora que você descobriu que está apaixonado, bem vindo ao gênero humano, a dor, a bagunça e a confusão que é isso aqui, e seja como for, é perfeito do jeito que é.