domingo, 23 de dezembro de 2012

O Lugar da Psicologia


Em breve o curso de Psicologia da Universidade de Fortaleza (UNIFOR), será transferido do Centro de Ciências Humanas (CCH) para o Centro de Ciências da Saúde (CCS). Essa é uma decisão que foi tomada pelas instâncias superiores da administração da Universidade e parece irrevogável, mesmo assim parece que uma tal mudança torna fortuito e até mesmo urgente discutir o lugar da Psicologia entre essas duas grandes áreas das Ciências Naturais e das Ciências do Espírito, debate que não é novo, mas que se torna atual diante dos recentes acontecimentos.
Um empreendimento como esse não é isento de vicissitudes, que não podem ser negligenciadas ou escamoteadas, mas precisam ser encaradas, pois não podem impedir que se faça essa reflexão. Talvez a maior dificuldade em se pensar o que me proponho aqui seja a falácia contida no termo “Psicologia”. Ora, não há, como bem aponta Antônio Gomes Pena, uma, mas várias Psicologias. Ao falar do lugar da Psicologia entre esses dois campos científicos, estamos subsumindo essas diferenças de que a suposta “Psicologia” na realidade está eivada.
Thomaz Kuhn, em seu “A estrutura das revoluções científicas” propõe o termo “Paradigma”, hoje muito em voga e bastante vulgarizado. Esse termo foi pensado para as ciências da natureza, como, em linhas gerais, uma maneira unificada de enxergar o mundo e resolver problemas científicos. Thomaz Kuhn usa até mesmo a metáfora do paradigma como óculos que o cientista usa para enxergar o mundo. O próprio Thomaz Kuhn admite, todavia, que seu conceito não se aplica as Ciências do Espírito, mesmo os termos “ciência não paradigmática” “crise” e “ciência normal” se tornam complicados ao se pensar esse campo. A Psicologia, seja ela pertencente a um campo ou outro, ou ambos (talvez até nenhum) não possui um paradigma unificado, existindo na realidade muitas Psicologias. Essas “Psicologias” na maioria das vezes possuem pressupostos epistemológicos completamente diversos entre si, e suas teorias são absolutamente contraditórias.
Isso torna complicada, para dizer o mínimo, qualquer metodologia que se arvore a se aproximar de tema tão espinhoso. A saída que pretendo utilizar aqui, e que talvez não seja a melhor, mas é a saída possível, é falar a partir dos pontos de vista de duas dessas “Psicologias” – nesse caso as aspas são absolutamente necessárias – a Psicanálise e a Psicologia Analítica. A escolha recai sobre essas duas teorias por uma razão de extrema importância e outra das mais prosaicas. A primeira é a inegável importância e rigor epistêmico de ambas, e o fato de as teorizações desses dois campos poderem lançar luzes sobre nosso dilema. A segunda, mais prosaica, é a de que eu não me autorizo a falar de nenhum outro dos muitos campos da Psicologia, não os estudo com a devoção e profundidade com que me dedico aos dois campos já citados e que um estudo dessa ordem exige. Logo, se algum de meus leitores se sentir incomodado com alguma ausência que julgue importante para esse debate, peço um pouco de paciência para com as minhas limitações teóricas e atenção para a enormidade de um empreendimento que ambicionasse trazer todos os mais importantes pontos de vistas da Psicologia(s). Dito isto, é importante deixar claro logo de início que se trata de um empreendimento que parte de um ponto de vista histórico/epistemológico, Ne sutor supra crepidam!
A Psicanálise surge em meio justamente ao debate entre as assim chamadas Ciências da Natureza (Naturwissenchaften) e as Ciências do Espírito (Geisteswissenschaften), que foi chamado de “querela dos métodos” (Methodenstreit) que eclodiu em 1883 – justamente no momento em que Freud esboça sua prática médica. Por essa época surgiam às chamadas ciências do homem ou do espírito, ou ainda, ciências morais. O debate se dava justamente na separação entre a esfera da natureza susceptível aos métodos galileanos, e a esfera da história e do homem que necessitava de uma metodologia sui generis. Como podemos contemplar com clareza, nosso problema não é novo. Duas palavras são cruciais para se compreender essa diferença no que concerne aos métodos: o explicar (erklären) e o compreender (verstehen) – Jung retoma essa diferença fundamental em seu ensaio de 1957 Presente e Futuro, como veremos adiante – a história se encontra no centro desse debate, pois foi um dos grandes historiadores alemão do século XIX Gustav Droysen (1808-1884) quem introduziu essa distinção, em 1854 em seu Grundriss der Historik. Foram os historiadores os primeiros a abordar a hermenêutica como especificando um saber próprio. A “querela dos métodos” (Methodenstreit) aparece em virtude da discussão em torno de algumas obras importantes: a reedição de A Economia política de um Ponto de Vista Histórico de Karl von Knies; Considerações sobre os Métodos das Ciências Sociais de Karl Menger; e talvez o mais importante, Introdução às Ciências do Espírito de Wilhelm Dilthey, grande teórico das Ciências do Espírito (Geisteswissenschaften).  Em outro momento, também contemporâneo do nascimento da “jovem ciência” de Freud, Heinrich Rikert e Wilhelm Windelbrand produzem As Fronteiras da Formação Conceitual nas Ciências da Natureza e História e Ciência da Natureza (Assoun, 1983).
Com Rickert e Wildebrand fica estabelecida a demarcação entre ciências da cultura e ciências da natureza, “ciências nomotética” (capazes de estabelecer leis regulares para os fenômenos) e “ciências idiográficas” (ciências que lidam com fatos singulares e que são irrepetíveis, das quais a História é o melhor exemplo). Em 1913 Karl Jaspers introduziu no campo da Psicologia a distinção entre explicar e compreender/interpretar (Deutung). As ciências ditas nomotéticas se esforçam para reduzir o devir a leis universais, que subsumem o particular ao universal e geral. Nesse sentido, estão essas ciências em acordo com a episteme ocidental fundada por Aristóteles, que já em sua Metafísica declara que toda ciência é ciência do geral, e coloca a História abaixo da poesia, justamente por sua vocação para lidar com o singular. As ciências idiográficas, por outro lado, tentam apreender o objeto em sua idiossincrasia, enquanto singularidade. Não se trata de dissolver o particular no geral como no primeiro caso, mas de transcrever o individual sem dissolvê-lo em uma mediação conceitual. Além disso, as ciências da natureza se atêm a juízos de realidade, já as ciências da cultura implicam a valorização (Assoun, 1983). Anos depois, o grande historiador Marc Bloch, em seu livro escrito durante seu cativeiro em poder dos nazistas na França A Apologia da História, afirmou sobre a cientificidade da démarche historiográfica que o que a torna uma ciência autêntica é a possibilidade de estabelecer ligações explicativas entre os fenômenos, uma inteligibilidade. É preciso estar atento àquilo que é a fraqueza da ciência historiográfica e, paradoxalmente, sua fortaleza: ser poética.
 Freud obstinadamente evita tomar parte nesse debate e desde o início denomina a Psicanálise de Naturwissenchaft, para Freud não se tratava de uma questão de escolha, mas para ele Naturwissenchaft era praticamente sinônimo de Wissenchaft. Não há lugar na episteme Freudiana para um Dualismo, a psicanálise se caracteriza por um Monismo radical, não há lugar para a distinção ontológica entre “alma” e “corpo” e sem ela a distinção epistemológica carece de sentido. Freud não realiza uma interiorização desse debate metodológico, não há na démarche psicanalítica uma dicotomização em que uma parte dela seria explicativa (ciência da natureza) e outra interpretativa (ciência do espírito) – é interessante notar, como exporei adiante, que Jung faz justamente isso ele interioriza essa distinção – para Freud a Psicanálise é inteiramente Ciência da Natureza. O que nos coloca, estimado leitor, diante de uma pergunta das mais incômodas, como anota Assoun, “Não nasce a psicanálise, de certa forma, com a Traumdeutung?”.
O Deutung Freudiano não está em nenhum momento dissociado do erklären, sendo até mesmo a interpretação uma variante da explicação, o Deutung é visto como um procedimento intelectual que explica fornecendo a causa. Na ciência dos sonhos de Freud o ato interpretativo não está livre do ato explicativo pela qual remonta o efeito à causa. O mesmo se observa na psicopatologia Freudiana. Freud recusa todo o Dualismo e permanece ligado ao ideal científico do início de sua carreira, a anatomia e a fisiologia que tendem a alinhá-lo com o campo físico-químico. A psicanálise em Freud mantém-se irredutivelmente Monista, uma Naturwissenchaft que é sinônimo de Wissenchaft. A ciência do espírito constitui não mais do que uma parte da ciência da natureza (Assoun, 1983). Em seu Projeto para uma Psicologia Científica, Freud tentou fundar uma Psicologia como Ciência Natural, sobre as bases da neurologia, em consonância com as aspirações positivistas de seus mestres (Brüke e Meyert, por exemplo), nesse sentido ele tentava submeter às leis da mente as leis do movimento e introduzir um ponto de vista quantitativo. Mesmo inacabado, e tendo sido abandonado o “Projeto”, a ambição de Freud de fundar uma Psicologia científica nunca foi totalmente abandonada. Em seu último escrito, o Esboço de Psicanálise ele sustentava a ideia de que no futuro a Psicanálise poderia exercer uma influência direta sobre as quantidades de energia e sua distribuição no aparelho mental através de substâncias químicas, ideia essa que remonta tal e qual ao seu programa ao escrever o Projeto em 1895 (Gay, 2008).
Freud não ignorava o termo Geisteswissenschaft, mas o campo da ciência do espírito só era evocado por Freud para melhor frisar que por vocação a Psicanálise era uma Naturwissenchaft, ou então para tratar de uma espécie de dualidade de competências. Assoun cita um texto de Freud de 1927 sobre a formação do analista para ilustrar esse fato.
Comungo com a expectativa de que todos os problemas que se referem às conexões (Zusammenhänge) entre os fenômenos psíquicos e seus princípios orgânicos, anatômicos e químicos só podem ser abordados por pessoas que estudaram uns e outros, portanto, por analistas de formação médica. Não obstante, não deveríamos nos esquecer de que tudo isso não pertence à psicanálise e de que, por outro lado, não podemos prescindir da colaboração de pessoas que foram formadas nas ciências do espírito. (Freud, apud ASSOUN, 1983, p.57).
É extremamente interessante notar também que Freud, em sua insistência em não tomar parte nesse debate metodológico e de resolver abruptamente a questão do pertencimento da Psicanálise a Naturwissenchaften, negava a possibilidade para a psicanálise de ter conceitos fundamentais claros com contornos precisos, tal clareza só seria possível nas ciências do espírito e seria supérflua ou impossível para a Psicanálise (Assoun, 1983), nesse ponto Freud e Jung são absolutamente diferentes, pois Jung faz a defesa dessa clareza e precisão justamente como uma base fundamental, conditio sine qua non, de qualquer ciência psicológica.
A questão da cientificidade em Freud é ardentemente desejada e acenada, mas não ficou demonstrada nem garantida, é Lacan que a põe como uma problemática genuína. A nova orientação psicanalítica oriunda de Lacan surge de um diálogo apaixonado com a linguística e a antropologia. Diferente do intrincado e confuso Dédalo que é a episteme da Psicanálise em Freud (nascida, mutatis mutandis, da confluência entre a neurologia e a biologia), com sua paixão positivista por uma ciência da natureza e sua insistência teimosa em situar a sua jovem ciência nesse campo, Lacan com sua leitura absolutamente inovadora de Freud pôde tornar a Psicanálise uma teoria bem posicionada epistemologicamente. Diferente de Freud, Lacan escapa ao cogito cartesiano estrito por uma visão que estabelece a relação entre um ego “cogitante” e um sujeito desejante, entre o imaginário da sua cognição e a verdade do seu desejo. Nenhuma ação humana encontra-se fora do campo do inconsciente, nenhuma práxis humana escapa ao inconsciente, epistemologicamente a visão de Lacan parece enxergar o campo da ciência inclinar-se a evidência do inconsciente. A pergunta crucial em Lacan já não é mais a pergunta sonegada e recalcada em Freud “é a Psicanálise uma ciência?”, essa questão com a qual, de maneira insidiosa, Freud se debateu e, paradoxalmente, não se debateu, carece de vigor ou importância na postura assumida por Lacan para o fato de que o inconsciente não deixa nenhuma de nossas ações fora de seu campo. (Beividas, 2002). Para Lacan “Permanente donc restait La question qui fait notre projet radical: celle qui va de: La psychanalyse est-elle une science? À qu’est-ce qu’une science qui incluit La psychanalyse?”.
Segundo Beividas, existe em grande parte dos teóricos pós-lacaniano uma forte tendência a se acomodar a crença da impossibilidade da Psicanálise ser uma ciência, com um corpo de argumentos difusos e de pesos desiguais, alguns francamente opiniosos. Entre esses argumentos o conceito de Foraclusão – impugnado como a estrutura psicótica da ciência, viria a provar no discurso de Lacan a irredutibilidade da Psicanálise a ciência, em virtude da eliminação do eu do discurso da ciência, nesse sentido o neo-positivismo de Russell é apontado como um dos elementos que exorciza o sujeito do desejo do discurso científico, e ao critério de falseabilidade de Popper é referido como mera ficção.
Em Lacan a cientificidade não se tornou uma solução, mas um problema, “o que é uma ciência que inclua a psicanálise?”. Em uma comunicação feita em Madri em 1936 e retomada em Zurique em 1949, Lacan lança a hipótese do estádio do espelho (o momento inaugural da socialização da criança), e uma de suas conclusões é que o estádio do espelho imprime à cognição humana ab ovo um caráter paranoico de todo o conhecimento. O conhecimento paranoico é uma das “pré-condições” do conhecimento humano, a experiência que a criança atravessa no estádio do espelho precipita um efeito de alienação do sujeito, tal efeito de captura especular imaginária se mostra como a forma de organização mais arcaica do conhecimento humano. O discurso científico estaria destinado a reproduzir na captura e descrição de seus objetos um modelo calcado paranoicamente no estádio do espelho. Tal constatação engendra uma postura reservada diante da ciência, a psicanálise não poderia enredar-se precipitadamente no discurso científico, mas trata-se precisamente de denunciar sua infrapatologia de origem. A despeito de uma hipótese de tal envergadura e alcance epistemológico, Beividas afirma que toda a produção inaugural de Lacan pode ser dita como inspirada no espírito científico, ou, ao menos, compatível com ele.
Na década de 50 do século XX, Lacan vincula-se a linguística, especialmente a linguística de Saussure, pois a estrutura da linguagem era capaz de dar suporte teórico a hipótese do inconsciente freudiano, além de representar, a época, um catalisador epistêmico das várias disciplinas humanas. O discurso de Roma, de 1953 foi o manifesto de integração da Psicanálise na nova ordem conceitual que se estabelecia no campo das ciências humanas. É possível perceber nesse momento da obra de Lacan, uma visível aproximação da Psicanálise as ciências do espírito, a despeito da recusa Freudiana de sequer cogitar a Psicanálise como Geisteswissenschaft, outro médico, Lacan a vincula ao movimento mais geral das ciências do homem em direção ao estruturalismo linguístico. Beividas anota que esse movimento em Lacan e em sua Psicanálise, de encontrar uma equivalência da terminologia de Freud a nova linguagem da antropologia, da linguística e da filosofia, faz com que a sua cientificidade seja efetivamente apontada, mas não significou que ela tenha sido ostensivamente perseguida e pregada. O movimento cíclico de aproximação e afastamento de Lacan da cientificidade aproxima-se de sua maturidade epistêmica na década de 60 do século XX com o texto “ciência e verdade”. O discurso científico caracteriza-se por procurar apagar as marcas da enunciação, trata-se de uma estratégia de persuasão, da obtenção de um efeito de verdade. Esse objetivismo é a forma de persuasão do discurso científico. Há no discurso científico uma “decência”, uma camuflagem que serve justamente para suprimir o sujeito do desejo, existe aqui uma clivagem importante, para Lacan, há na Psicanálise justamente uma centralidade do desejo. Lembremo-nos, todavia, da questão de Lacan, “o que é uma ciência que inclua a psicanálise?”, o caminho de Lacan não foi o de se antagonizar simplesmente ao discurso científico. Lacan coloca o desejo no centro de sua teoria e simultaneamente, força essa questão a ser reconhecida pelas disciplinas científicas.
Lacan, em seu ensino, também comparou à ciência a histeria, mostrando que possuem estruturas semelhantes. Para ele a histeria é um tipo de discurso, um tipo de laço social que ele designa como fazer desejar. Lacan aponta que o sujeito histérico faz o outro desejar saber, assim a histérica procura um mestre que deseje decifrar o enigma que ela mesma representa. Em uma inversão do esquema Freudiano, Lacan afirma que quem seduz não é o outro, mas sim a própria histérica, que no fim das contas se esquiva do ato sexual, mas acentua no outro a quem atribui o lugar de mestre o desejo de saber. Ela acaba por castrar o mestre ao mostrar que o saber dele é sempre incapaz de desvelar o mistério que ela mesma representa. Toda a forma de laço que envolve sedução e engodo, e toma o outro como suposição de saber está no discurso histérico. (Quinet, 2005).    
A despeito de Jung frequentemente ocupar um lugar imaginário de “outro abjeto” para os seguidores da Psicanálise, ou de mera deturpação, ele não era nem uma coisa e nem outra. Esse é um ponto que precisa ficar claro desde o início: Jung é outra coisa. Que há um parentesco entre a Psicologia Analítica e a Psicanálise, ou dívidas teóricas da Psicologia fundada por Jung para com as descobertas feitas por Freud, isso é inegável, mas Jung funda uma outra possibilidade de compreensão dos fenômenos da alma que não mais se confunde com a Psicanálise. Além disso, diferente de Freud, Jung valorizava a discussão epistêmica e nunca se furtou a fazê-la, dedicando uma parte considerável de sua obra a esse fim. Ao contrário da intrincada e ambivalente epistemologia da Psicanálise de Freud, a Psicologia Analítica possui uma epistemologia mais solidamente fundamentada, elegante e amplamente discutida e tematizada por seu criador. De início não é ocioso deixar claro que para Jung a Psicologia Analítica tratava-se de uma ciência.
Em conferência realizada em 1935, Jung discorreu sobre a prática da psicoterapia, e principia por tratar das características peculiares do objeto da Psicologia, comparando a situação da psicologia a da física, comparação que, como veremos, era cara a Jung. Ao comparar algumas das correntes da psicoterapia de seu tempo e apontar as contradições evidentes entre elas, a conclusão a que ele chega tem a ver com o objeto comum de estudo de todas elas.
As contradições em qualquer ramo da ciência comprovam apenas que o objeto da ciência tem propriedades, que por ora só podem ser apreendidas através de antinomias; como a natureza ondulatória e corpuscular da luz. Só que a psique é de natureza infinitamente mais complicada do que a luz, razão certamente do grande número de antinomias necessárias à descrição satisfatória da essência do psiquismo. (Jung, 1981, p.2).

Duas ponderações importantes devem ser feitas aqui, a primeira tem a ver com a comparação entre a psicologia e a física, que encerra graves consequências epistemológicas para Jung, e, dentre as antinomias apontadas uma em particular interessa de perto para se compreender a posição do opus junguiano entre as Geisteswissenschaften e as Naturwissenschaften, a antinomia é a seguinte: “O individual não importa perante o genérico, e o genérico não importa perante o individual”. Por ora me aterei a essa antinomia para em seguida retornar a comparação entre a psicologia e a física.
As reflexões acerca dessa antinomia vão, em última instância determinar uma atitude do terapeuta no caso da terapia individual (segundo Jung, e isso permanece uma verdade inatacável, a única que se justifica cientificamente). O que está em jogo aqui, e Jung estava bem ciente desse fato, é a velha querela entre o nominalismo e o realismo que se estende por quase dois milênios na filosofia ocidental, mas nesse caso, tratada na seara científica de uma psicologia que não possui ambições especulativas, mas práticas. O exemplo utilizado por Jung do elefante ajuda a compreender a questão. Não existe um elefante genérico, apenas elefantes individuais, todavia se o genérico não existisse e houvesse uma constante multiplicidade de elefantes, um elefante individual seria extremamente inverossímil. A atitude do analista, não pode ser a de uma autoridade diante do paciente capaz de fazer afirmações corretas sobre a totalidade de sua personalidade – nesse caso fica-se no “o individual não importa perante o genérico” e trata-se de terapia por sugestão – isso significa falta de espírito crítico, afirmações de cunho universalizante só podem ser feitas com relação ao ser humano genérico, ou ao menos, relativamente genérico, nesse ponto se revela a notável influência do romantismo alemão (notadamente Goethe) no espírito de Jung, ele afirma “mas como tudo o que vive só é encontrado na forma individual, é visto que só posso afirmar sobre a individualidade de outrem, o que encontro em minha própria individualidade, corro o risco, ou de violentar o outro, ou de sucumbir por minha vez ao seu poder de persuasão” (Jung, 1981). Nesse sentido ele aponta para a necessidade prática de um método clínico dialético e, em termos epistemológicos, nos traz pistas para a pergunta que norteia esse escrito se a psicologia de Jung seria a Ciência do Homem ou da Natureza.
Em um curto, mas decisivo, ensaio publicado em 1957, intitulado “Presente e Futuro” Jung aponta com maior clareza as consequências epistêmicas da antinomia entre genérico e individual. O argumento principia por discutir o termo “autoconhecimento” com o objetivo de discutir a possibilidade de uma teoria capaz de constituir um fio condutor para o autoconhecimento, que normalmente é tido, erroneamente na perspectiva de Jung, como o conhecimento da personalidade consciente do eu. O eu, todavia, só conhece seus próprios conteúdos desconhecendo os conteúdos inconscientes. Nesse caso o autoconhecimento é medido pelo que o meio social sabe ao seu respeito, mas o fato psíquico real é desconhecido, logo o que é chamado de autoconhecimento é um conhecimento muito restrito e dependente de fatores sociais. O sentido do argumento está em mostrar que esse tipo de “autoconhecimento”, digamos, de “senso comum” não alcança o inconsciente e isso encerra graves consequências, pois o campo vasto do inconsciente não alcançado pela crítica consciente se acha desprotegido para receber todo o tipo de infecções psíquicas. Certa feita, ao se questionar sobre as razões da natureza de ter criado o milagre cósmico da consciência Jung afirmou que “sem consciência as coisas vão menos bem”, nesse sentido ele anota no referido ensaio “(...) só podemos nos proteger das contaminações psíquicas quando ficamos sabendo o que no está atacando, como, onde e quando isso se dá”. Nesse ponto de sua argumentação fica evidente o método de argumentação de Jung que se baseia na articulação elegante de antinomias e paradoxos em consonância com a natureza de seu objeto de estudos que, cum grano salis, podemos dizer que é a alma (seja em que idioma usemos essa palavra: Seele, ψυχή etc), é importante recordar que para Jung a psique é um fenômeno e não um dado arbitrário, mais ainda, trata-se de um fenômeno natural e, como todo fenômeno natural, é um dado irracional. Novamente referindo-se ao autoconhecimento ele afirma que uma teoria que se limitasse estritamente a essa perspectiva seria de pouca valia por se tratarem de fatos individuais, por outro lado, eis o paradoxo, quanto mais uma teoria aspira à validade universal, menor sua possibilidade de aplicação a uma conjuntura de fatos individuais.
Para Jung, toda a teoria que se baseia na experiência é necessariamente estatística. Ela estipula uma média ideal, que elimina todas as exceções, em cada extremidade da escala, substituindo-as por um valor médio abstrato. Este valor figura na teoria como um fato fundamental mesmo quando não ocorre sequer uma vez na realidade.
O método estatístico proporciona um termo médio ideal de uma conjuntura de fatos, e não o quadro de sua realidade empírica. Embora possa fornecer um aspecto incontestável da realidade, pode também falsear a verdade factual, a ponto de incorrer em graves erros. Isso acontece, de modo especial, nas teorias baseadas em estatísticas. Os fatos reais, porém, evidenciam-se em sua individualidade; de certo modo, pode-se dizer que o quadro real se baseia nas exceções da regra, e a realidade absoluta, por sua vez, caracteriza-se predominantemente pela irregularidade. (Jung, 2011, p.14).
 A conclusão de Jung é que não há nem pode haver autoconhecimento baseado em pressupostos teóricos, pois o objetivo do autoconhecimento é um indivíduo, em outras palavras, uma exceção e irregularidades relativas, não é o universal e o regular que caracterizam o indivíduo, mas sim o único. Novamente, Jung argumenta de maneira elegante e paradoxal, pois para ele o indivíduo (a noção de indivíduo aqui tem relação com a possibilidade de ampliação da consciência ligada à superação daquilo que ele chama de inconsciências parciais e da superação, ao menos relativa da psicologia que caracteriza a consciência da criança, do primitivo e o inconsciente do homem civilizado: a identidade arcaica) não pode ser compreendido como unidade recorrente, mas como algo único e singular que não pode ser comparado e nem mesmo conhecido, ao mesmo tempo, o homem pode e deve ser descrito enquanto unidade estatística, pois, do contrário, nenhuma característica geral lhe pode ser atribuída. Desse modo tem início uma antropologia e uma psicologia de validade universal segundo um quadro abstrato do homem médio que perde todos os traços singulares. Chegamos aqui ao ponto nevrálgico da discussão.
Contudo, esses traços são justamente os mais importantes para a compreensão do homem. Se pretendo conhecê-lo em sua singularidade, devo abdicar de todo o conhecimento científico do homem médio e renunciar a toda teoria de modo a tornar possível um questionamento novo e livre de preconceitos. Só posso empreender a tarefa da compreensão com a mente desembaraçada e livre (vacua et libera mente) ao passo que o conhecimento do homem requer sempre todo o saber possível sobre o homem em geral. (Jung, 2011, p.15, grifo meu).
Mais uma vez vemos o método de pesquisa e argumentação de Jung por paradoxos e a utilização de uma distinção entre Compreender e Conhecer que, como demonstrarei adiante, é fundamental para entender a posição epistêmica do opus Junguiano. Fundamentalmente, visto Jung ter afirmado reiteradas vezes (para ouvidos moucos ao que me parece) que não era filósofo, mas empirista e médico e não podia se dar ao luxo da especulação abstrata que não tivesse qualquer relação com sua atividade prática como médico ou com o bem estar de seus pacientes “(...) nossa psicologia é uma psicologia prática. Não pesquisamos apenas por causa da pesquisa, mas sim levados pela intenção imediata de ajudar” (Jung, 2011a). Essa distinção estabelece simultaneamente uma atitude clínica e uma atitude de pesquisa. Na clínica – assim como na introspecção daqueles que pensam por si mesmos sobre os conteúdos inconscientes que lhe assomam a consciência, ou seja, na busca do autoconhecimento como definido por Jung – uma postura teórica, que supõe de antemão um saber, esmaga a possibilidade genuína de compreender, pois a compreensão tem como alvo o único e singular enquanto o conhecimento teórico fala do homem médio ideal e visa não à compreensão, mas o Conhecimento. Todavia, estamos diante de mais um dos muitos paradoxos com que Jung elegantemente se defrontou, talvez seja possível formulá-lo assim: “a Compreensão não importa perante o Conhecimento, e o Conhecimento não importa perante a Compreensão”. A despeito dos termos, temos aqui uma equivalência entre o compreender (verstehen) e o que Jung denomina compreensão (nesse caso os termos parecem ser os mesmos, mas preciso ainda checar no texto original em alemão) e explicar (erklären) com relação ao que Jung denomina Conhecimento. Diferente de Freud, Jung se defronta decididamente com o problema central da querela dos métodos (Methodenstreit), que se impõe a prática clínica em virtude do interesse do analista ser um sujeito individual, e do papel do analista ser o de espelho dialético, o que significa estar ciente e atento a antinomia entre individual/genérico. Além disso, o desafio da clínica impõe essa postura em virtude da hipótese de um inconsciente psíquico, ora se eu postulo a existência de um dado irracional existencial inalienável, uma instância que me é desconhecida como posso me arvorar um saber sobre o não sabido a não ser diante de suas manifestações a consciência? A postura tipicamente médica, do especialista que pode dizer do indivíduo mais do que ele mesmo pode, não se sustenta diante da constatação de que o quantum de energia psíquica da consciência não representa a somatória total da energia psíquica da alma. A constatação seguinte, de que o inconsciente de manifesta de maneira compensatória e complementar a consciência, além da existência de um psiquismo objetivo, que se manifesta criativamente (aquilo que Jung chamou de neoformações criativas do inconsciente) tiram definitivamente a ilusão de poder e autoridade do analista, pois no fundo, quem dá a direção do processo analítico não é nem o analista e nem o paciente, mas o inconsciente.
A antinomia que formulo aqui a partir da compreensão já presente em Jung “a Compreensão não importa perante o Conhecimento, e o Conhecimento não importa perante a Compreensão” pode ser compreendida à mesma luz que a metáfora anteriormente citada do elefante, troquemos o elefante pelo homem (visto elefantes não serem encontrados com frequência em análise), Não existe um homem genérico, apenas homens individuais, todavia se o genérico não existisse e houvesse uma constante multiplicidade de homens, um homem individual seria extremamente inverossímil. A “teoria” (em Jung o termo deve vir entre aspas) lida com o um valor médio abstrato, com um homem genérico ideal e racional, enquanto a realidade empírica do homem individual é caracterizada pela irracionalidade e a impossibilidade de se conhecer ou comparar. Mas a atitude de Jung consiste em encarar a antinomia e o paradoxo como tal, sem fazer pender a balança para um lado ou outro. Jung sempre se intitulava médico, e nele esse termo tem a acepção de alguém que deve por dever de ofício se preocupar em primeiro lugar com o bem estar de seus pacientes, a “ciência pura” ou a especulação filosófica têm pouco interesse ao médico que deve ter sempre em mente de modo pragmático que tem seres humanos reais que sofrem aos seus “cuidados”.
Se o Psicólogo em causa for um médico que não apenas pretende classificar seus pacientes segundo as categorias científicas mas também deseja compreendê-los, ficará, em certas situações, exposto a uma colisão de direitos entre duas partes opostas e excludentes: de um lado, o conhecimento e, de outro, a compreensão. Esse conflito não se resolve com uma alternativa exclusiva – “ou ou” – e sim por uma via dupla de pensamento: fazer uma coisa sem perder a outra de vista. (Jung, 2011, p.15).
A Compreensão diz respeito ao individual, enquanto o Conhecimento ao genérico. Em certa medida, há aqui um paradoxo irremediável em termos práticos, pois tudo o que vive, vive individualmente, outra comparação feita por Jung torna-se útil aqui. Um rosto possui uma configuração genérica universal em T – dois olhos nariz e boca – essa configuração genérica, universal, coletiva, só pode ser deduzida da multiplicidade de fenômenos individuais, todavia ela não existe por si mesma, como fenômeno, só o que existe realmente são os rostos individuais.
Para a compreensão, o homem em sua singularidade consiste no único e no mais nobre objeto de sua investigação, sendo necessário o abandono de todas as leis e regras que, antes de tudo, encontram-se no coração da ciência. O médico principalmente deve ter consciência desta contradição. Por um lado, ele estará equipado com as verdades estatísticas de sua formação científica e, por outro lado, ele se depara com a tarefa de cuidar de um doente que, principalmente no caso da doença mental, exige uma compreensão individual. Quanto mais esquemático o tratamento, maiores as resistências no paciente e mais comprometida a possibilidade de cura. O psicoterapeuta ver-se-á obrigado a considerar a individualidade do paciente como fator essencial, a partir do qual deverá ajustar os métodos terapêuticos. (Jung, 2011, p.16, grifo meu).
As verdades científicas se baseiam em conhecimentos abstratos que transmitem uma cosmovisão (weltanschauung) irreal, embora racional em que o individuo é um fenômeno marginal que não desempenha nenhum papel. As teses científicas se referem a um homem irreal ou “normal”, mas o fenômeno vivo é o indivíduo, um dado irracional que é o verdadeiro portador da realidade. Segundo Jung, e aqui ele é bem claro “As ciências naturais, em oposição as ‘humanidades’, impõem, portanto, uma imagem de mundo que exclui a psique humana real” (Jung, 2011). O fato das humanidades virem aspeadas tem a ver com a comparação entre a Psicologia Analítica e a Física, como demonstrarei adiante.
Em palestra proferida na Inglaterra em 1924, no Congresso de Educação em Londres, Jung expressa com clareza a posição epistemológica que assume em seu opus. Não se trata simplesmente de realizar uma dicotomização interna a teoria dos dois modos de atuar da ciência o explicar e o compreender, mas de assumir uma posição epistemológica radical baseada na noção de realidade psíquica, bem como de assumir muitas das críticas filosóficas a impossibilidade de uma Psicologia e, ao invés de simplesmente escamotear o problema ou contorná-lo com uma prestidigitação intelectual, encarar a questão com rara lucidez o que, paradoxalmente, permite que as noções de inconsciente e realidade psíquica possam ser assumidas em sua radicalidade. Para Jung sua Psicologia considera o homem tanto em seu estado natural (biológico) como em seu estado modificado pela cultura (espiritual). O médico em virtude de sua formação exclusivamente orientada para as ciências naturais tende a encarar o fenômeno psíquico apenas do ponto de vista bilógico. Jung considera que a atitude que caracteriza as ciências da natureza é empírica fenomenológica (convém salientar que o que Jung chama aqui de fenomenologia nada tem a ver com a tolice pré-kantiana que hodiernamente se chama “fenomenologia”) e que esta, por sua vez, possui grande valor heurístico. O método que as ciências naturais e biológicas empregam é de enorme importância, graças a ele conhecemos os fatos e sabemos o que ocorre e como ocorre, esse método lhe permite chegar mais perto da realidade através da descrição pormenorizada dos fenômenos. Há, todavia, problemas ao se empregar esse método descritivo, empírico fenomenológico à psicologia, pois “não existe nenhum outro campo experimental em que a visão do real se encontre tão turvada como na percepção que nosso mundo psíquico deve ter a respeito de si mesmo” (Jung, 2011a). Em nenhum outro campo ocorre que o observador perturbe tanto o experimento como na Psicologia. Há ainda para além do fato de que na observação do psíquico se interpõe entre o “observador” e seu “objeto” toda a sorte de projeções, preconceitos, juízos que dependem do humor do momento, muito mais radicalmente, o fato de que na psicologia é a psique que observa a si mesma. Em aula inaugural pronunciada na Escola Politécnica Federal de Zurique em 1934, Jung torna essa posição epistêmica ainda mais clara, segundo ele, nenhum pesquisador pode se abstrair de seus próprios complexos, pois eles gozam da mesma autonomia que o das outras pessoas (o fato dele ser um cientista não o torna menos susceptível a ação perturbadora de seus complexos), os complexos fazem parte da constituição psíquica, e é a constituição psíquica que decide inapelavelmente a pergunta de saber que concepção psicológica terá um determinado observador, qualquer observação psicológica para ser válida pressupõe a equação pessoal do observador, uma teoria psicológica expressa antes e acima de tudo uma situação criada pelo diálogo entre um determinado observador e um certo número de indivíduos observados.
Ora, é esta justamente a maior crítica à possibilidade de existir uma psicologia científica, mesmo em Kant, pois a condição de possibilidade de toda observação, o sujeito, se encontra impossibilitado de se observar a si mesmo de um ponto de vista objetivo. Como demonstrei antes ao falar do ensino de Lacan, há na ciência um objetivismo que é estratégia de convencimento para estabelecer seus enunciados como verdade através da obliteração do sujeito da enunciação, há uma “decência” na ciência que oculta o sujeito, mas o que Jung aponta com clareza, muito antes de Lacan, é que, assim como bem apontaram seus críticos, essa manobra intelectual é impossível em psicologia. Ao invés de enxergar tal fato como obstáculo intransponível, de perceber que em termos filosóficos toda afirmação psicológica não passaria de falácia de contradição performativa, Jung abraça essa contradição e ao assumi-la assume também a radicalidade de seu empreendimento.
O que ocorre é que existe uma impossibilidade de se transpor para qualquer outro meio o conhecimento psíquico, a física pode traduzir os fenômenos empíricos para a linguagem matemática, ou seja, o que o físico faz é a reconstrução psíquica do processo físico, mas tal procedimento é impossível ao psicólogo. Isso gera uma dúvida sobre a possibilidade mesma de qualquer conhecimento psíquico, entretanto nesse ponto a vinculação do médico com as ciências naturais lhe serve de salvaguarda ao invés de converter-se em dificuldade, e a perspectiva Kantiana de Jung torna-se ainda mais clara.
Também neste particular o médico se sente satisfeito por estar solidário com as ciências naturais. Ele não se sente obrigado a filosofar, mas se alegra por ter um conhecimento vivo do interior do psíquico, em outras palavras: a psique certamente não pode conhecer nada além da psique (...), mas é bem possível que dois estranhos se encontrem no interior do psíquico. Não saberão jamais o que cada um é em si, mas apenas o que cada um parece ser para o outro. (Jung, 2011a, p.97).
O que Jung percebe e afirma é que o processo psíquico não pode ser reproduzido em outro meio, a conclusão radical é que não existe conhecimento acerca do psíquico, mas unicamente no psíquico! Nesse ponto nevrálgico surge a similaridade e a disparidade entre a ciência natural e os procedimentos da psicologia, pois para a ciência natural, como a física, por exemplo, é possível essa reconstrução psíquica do processo físico a psicologia, todavia, possui uma sutil diferença. Quando a psicologia faz uso do método empírico fenomenológico (aqui o que Jung denomina de empiria depende diretamente de sua concepção de realidade psíquica, pois para ela a empiria genuína é aquela que aborda fatos psíquicos, pois todo conhecimento é mediado pelo psíquico e o único conhecimento imediato possível é o conhecimento no psíquico) enquadra-se mutatis mutandis no escopo da ciência natural “Contudo, se distingue da ciência natural por efetuar a reconstrução (conhecimento/explicação) não em um meio de outra natureza, mas em um meio de natureza igual” (Jung, 2011a).
Nesse sentido, o saber produzido pela psicologia é um fenômeno psíquico de mesma natureza e idêntica dignidade aos fenômenos que estuda. Indo à radicalidade dessa proposição Von Franz afirma mesmo que a psicologia é, no fundo, um mitologema explicativo, é a maneira contemporânea que temos de lidar com o fenômeno psíquico real, o inconsciente objetivo. O que isso indica de maneira clara, em minha opinião, é que a verdade da psicologia é a verdade do inconsciente, sendo ela a possibilidade de enunciar de alguma maneira o sujeito inconsciente em toda a sua paradoxalidade, pois este algumas vezes se manifesta apenas como dado natural objetivo e cabe a nós fazer o julgamento de valor daquilo que emerge do inconsciente. Outras vezes, não poucas, se revela de maneira mercurial e mefistotélica, dotado de humor e ironia e seus conteúdos já carregam o julgamento de valor em si mesmos. Se é que se trata de uma reconstrução, é a reconstrução na linguagem da consciência do discurso do inconsciente, sem que com isso se possa anular ou domar a natureza irracional e inalienável do inconsciente. Toda e qualquer manobra intelectual que busque de alguma maneira obnubilar essa verdade em prol de um objetivismo como é o método mais corriqueiro de convencimento do discurso científico, finda por mitigar ou mesmo anular a radicalidade da cientificidade da psicologia complexa de Jung. O que muitos não percebem, nesse caso é que em virtude desse projeto radical a psicologia complexa fundada por Jung não se confunde, nem pode se confundir, com uma filosofia, ou mesmo, com algum tipo de racionalismo aplicado. Nesse ponto é fecunda a utilização por Jung do método empírico fenomenológico descritivo (eu acrescentaria), é a isso que se deve a necessidade de trazer entre aspas o termo “teoria” em Jung, e que se deve rejeitar com veemência toda a tentativa de subtrair da psicologia complexa justamente sua “complexidade”. O método descritivo como proposto por Jung não deve ser sobrecarregado com pressupostos teóricos ou filosóficos. Nesse ponto, ao analisar a formulação epistêmica de Jung naquilo que apresenta de mais radical, ou seja, já formulando, para usar a expressão de Lacan “uma ciência que inclua a psicanálise”, ou, para se mais fiel ao húmus do solo epistêmico de Jung “uma ciência que inclua o inconsciente”, percebo que o termo Psicologia Complexa é bem adequado do que o termo “analítico”. Mas retornando a “teoria”, não é ocioso citar o próprio Jung, em texto de 1936, intitulado “O Arquétipo Como Referência Especial ao Conceito de Anima”:
(...) Por mais desejável que seja a avaliação quantitativa – é impossível prescindir do método descritivo qualitativo. A psicologia médica reconheceu que os fatos decisivos são extraordinariamente complexos e só podem ser apreendidos através da descrição casuística. Este método porém exige que se esteja livre de pressupostos teóricos. Toda ciência natural é descritiva quando não pode proceder experimentalmente, sem no entanto deixar de ser científica. Mas uma ciência experimental torna-se inviável quando delimita seu campo de trabalho segundo conceitos teóricos. A alma não termina lá onde termina um pressuposto fisiológico ou de outra natureza. Em outras palavras, em cada caso singular, cientificamente obervado, devemos levar em consideração o fenômeno anímico em sua totalidade.
Essas ponderações são imprescindíveis para a discussão de um conceito empírico como o da “anima”. Contrariando o preconceito frequentemente exteriorizado de que se trata de uma invenção teórica ou – pior ainda – de pua mitologia ressalto que o conceito de anima é experimental. Este tem por único objetivo nomear um grupo de fenômenos análogos e afins. O conceito não significa mais do que o de “artrópodes” que inclui todos os animais de membros articulados, designando assim um grupo fenomenológico. (Jung, 2003, pp. 113 e 114, grifo meu).
A longa citação foi necessária para exemplificar nas palavras do próprio Jung o sentido de seus conceitos e as consequências de seu uso tão peculiar do método descritivo das ciências naturais.  Esse ponto foi abordado por Jung igualmente em texto anterior (de 1929), onde ele afirma que “A ciência depende da precisão dos conceitos verbais”, isso significa que uma das tarefas primeiras do psicólogo é estabelecer conceitos-limites e conferir nomes bem definidos a determinado conjuntos de fatos psíquicos, considerando como fundamental se o termo empregado concorda ou não com o conjunto de fatos por ele designados. Esses conceitos-limites devem utilizar nomes tomados ao máximo da linguagem usual, mas com a preocupação de escapar o máximo possível ao preconceito geral de que o nome determina a natureza das coisas (Jung, 1986).
Como vimos antes, ele mesmo afirma a impossibilidade de um método experimental em psicologia, e mesmo, a possibilidade de uma quantificação exata do fenômeno anímico, todavia, a descrição empírico fenomenológica ainda mantém, cum grano salis, a psicologia na seara das ciências e no campo das ciências naturais. Temos aqui, contudo, uma sutil inflexão apontada com clareza por Jung em sua palestra sobre educação proferida em 1924 em Londres, retornemos, pois a ela. A psicologia faz uso do ignotium per ignotius, ela explica o desconhecido por algo mais desconhecido ainda, já que apenas pode reconstruir o processo observado recorrendo ao próprio meio. Todo o processo psíquico na medida em que pode ser observado já constitui em si uma teoria, isto é uma concepção (Anschauung), pois a reconstrução desse processo não passa de uma variante da mesma concepção. Ora, se uma teoria é justamente a reconstrução psíquica de um processo de outra ordem (físico, por exemplo, como a teoria da relatividade ou da gravitação de Newton) e não é possível existir um conhecimento a cerca do psíquico em virtude da impossibilidade de reconstruir o fenômeno em outro meio, a própria descrição, como aponta Jung já constitui “teoria”.
Surge nesse ponto, ex exposistis, uma decorrência metodológica dessa reflexão epistemológica que marca uma diferença fundamental entre Freud e Jung e que explica o abandono por parte de Jung da associação livre como método de interpretação (lembremo-nos que o método da Psicanálise consiste em associação livre e atenção flutuante). A interpretação deve ser uma variação da mesma concepção (em outras palavras amplificação) do contrário ela é uma compensação ou polêmica, ou seja, uma eliminação do processo que deve ser reconstruído. A interpretação, nessa perspectiva deve estar precavida contra ao emprego de quaisquer outros pontos de vista que não sejam manifestamente indicados pelo conteúdo. É nesse sentido que Jung gostava de citar o ditado árabe “o sonho é a sua própria interpretação”, Jung utiliza-se do exemplo de um leão (não um elefante): se sonho com um leão a interpretação correta só pode ser orientada para o leão, pois a imagem do leão constitui por si só “uma concepção inequívoca e suficientemente positiva”. A interpretação que se justifica cientificamente não é apenas uma tautologia, mas uma ampliação (algo que amplia o sentido para formar uma concepção mais geral). Nesse ponto é que a psicologia está situada além da ciência natural, apesar de partilhar com ela o mesmo método de observação e averiguação empírica dos fatos. Como a psicologia carece de um ponto arquimediano, da possibilidade de uma medição objetiva, está em desvantagem com relação à ciência natural. Por outro lado, a psicologia é também uma ciência do espírito, pois todas as ciências do espírito têm seu campo dentro do psíquico.
A psicologia moderna e empírica pertence às ciências da natureza, quando considerada do ponto de vista do objeto e do método; mas faz parte das ciências do espírito, quando considerada do ponto de vista de seu modo explicativo. (Jung, 2011a, p.102).
Passando a comparação entre a física e a psicologia, que nos ajudará a compreender a inovadora posição epistêmica que Jung imprime a Psicologia Complexa, é preciso primeiro dar um passo atrás e entender a posição do opus junguiano em relação à filosofia. Jung costumeiramente citava a posição de Nietzsche de que a filosofia um dia se tornaria ancilla psychologiae. Ex exposistis, fica mais do que claro que na perspectiva de Jung o pesquisador, cientista ou filósofo não pode “subir em suas próprias costas para ver mais longe”, para usar suas próprias palavras, nenhum filósofo pode se abstrair de seus próprios complexos ou privá-los de sua autonomia, o uso da razão não permite que o filósofo (sendo ele um homem, e, desconfio que o mesmo se dá com leões e elefantes) escape aos seus próprios condicionamentos e transportar-se para um estado racional e suprapsíquico “subir nas próprias costas”. Isso é impossível, pois, nolens volens, estamos sujeitos todos (mesmo os filósofos, leões e elefantes) ao fato psíquico real, ao dado existencial irracional inalienável, ao confronto com a objetividade psíquica. Não bastasse isso, todas as doutrinas filosóficas nada mais são do que fenômenos psíquicos, só não o seriam se fosse possível alçar esse estado racional suprapsíquico. Jung assume a radicalidade de seu empreendimento ao afirmar que qualquer observação psicológica para ser válida pressupõe a equação pessoal do observador, o que acontece na filosofia (e na ciência) é que a “decência” que existe nesses campos insidiosamente nega essa premissa, afirmando o seu oposto “qualquer observação filosófica (científica) para ser válida deve prescindir da equação pessoal do observador”. Nietzsche ao atacar a filosofia de Kant atacava, igualmente, a Kant chamando-o de “cristão insidioso”. Fica claro que a Filosofia depende de premissas psicológicas. Em ensaio de 1946 chamado “Considerações Teóricas Sobre a Natureza do Psíquico” fala das mudanças ocorridas no desenvolvimento da psicologia enquanto ciência que se liberta da Filosofia e da Teologia e assume para si o método das ciências da natureza. A libertação da Filosofia se faz premente pela adoção de uma perspectiva Kantiana não apenas pelo que aponta Pena “Na perspectiva Kantiana, o eu, sujeito de todo julgamento, é uma função de organização da experiência mas do qual não pode haver uma ciência, de vez que ele é a condição de toda ciência”. (1991, p.36). Mas igualmente pela negação Kantiana da metafísica, da impossibilidade de se conhecer a alma como substância, de se chegar ao que ele chamou de das Ding an sich.
Ela (a psicologia) teve de desvencilhar-se da definição racional de verdade dos filósofos, porque se tornava cada vez mais claro que nenhuma filosofia possuía aquela validade universal que faça uniformemente justiça à diversidade dos indivíduos. Como nas questões de princípio era possível também um número indefinidamente grande de enunciados subjetivamente diferentes, cuja validade, por sua vez, só podia ser confessada subjetivamente, tornou-se naturalmente necessário abandonar o argumento filosófico e substituí-lo pela experiência. Com isto a psicologia se tornou uma ciência natural. (Jung, 1986, p.101, grifo meu).
Nesse ponto a comparação com a física pode ser trazida a baila com maior propriedade, ela se articula em dois níveis, ambos ligados a mesma argumentação que Jung fez para compreender a desvinculação da psicologia da filosofia que finalmente leva a radicalização do vaticínio de Nietzsche de que a filosofia será “ancilla psychologiae”.  Um dos níveis da comparação com a física diz respeito à similaridade entre alguns achados da física quântica e certos aspectos da Psicologia Complexa, notadamente a incerteza de Heisenberg. Para Jung qualquer ciência é função da psique, e qualquer conhecimento nela se radica. Ex exposistis, para Jung a psicologia se encontra em desvantagem com relação as ciências naturais por não possuir um ponto arquimediano externo, em situação análoga a essa, entre as ciências naturais está apenas a física atômica, em cujos domínios o processo de observar é modificado pela observação. Isso parece constituir uma grande vantagem para a psicologia, por fornecer “ao menos uma leve esperança de existir para ela o tal ponto de apoio reclamado por Arquimedes”. O mundo microscópico, a intimidade da matéria, apresenta traços de afinidade com o psíquico, disso decorre, a leve insinuação de que talvez no futuro seja possível a reconstrução do processo psíquico em outro meio: a microfísica da matéria (Jung, 2011). Além disso, uma das fronteiras de conhecimento para Jung era a relação entre a psique e a matéria, que o leva a pensar na hipótese da sincronicidade e que se beneficia do profícuo diálogo que ele manteve com eminentes físicos.
Em outro nível, para Jung a física é uma ciência basilar, e, assim como a física, a psicologia ocupa essa posição em virtude de que qualquer conhecimento se radica na psique. A psicologia possui, nesse sentido uma dignidade epistemológica especial, um estatuto próprio que Jung denominou de esse in anima. Em artigo de 1926, denominado “Espírito e Vida” Jung dá um passo para além da ciência natural e estabelece um “ponto de vista psicológico”. Nesse artigo Jung argumenta que é possível duvidar seriamente da legitimidade exclusiva do ponto de vista realista do pensamento científico, pois “(...) aquela certeza sumamente real que chamamos de experiência é um aglomerado complicadíssimo de imagens psíquicas mesmo em sua forma mais simples. Assim, em certo sentido, da experiência imediata só nos resta a psique mesma” (Jung, 1986).  Tão espessa é a névoa que nos cerca que foi preciso inventar uma ciência exata para termos apenas um mero vislumbre da “natureza real” das coisas, tal ciência é a física, e aqui vemos a importância da comparação. Tudo o que sabemos a respeito do mundo e que temos uma consciência imediata são os conteúdos inconscientes que fluem de fontes obscuras. Na perspectiva de Jung, o ponto de vista realista esse in re (ser do real) e o ponto de vista idealista esse in intellectu solo (ser apenas do intelecto) possuem validez relativa, mas esses dois opostos extremos podem ser unidos pelo ponto de vista psicológico esse in anima (ser na alma), pois vivemos imediatamente apenas no mundo das imagens. Temos novamente a percepção de que não é possível um conhecimento acerca do psíquico, mas no psíquico, ergo não é possível submeter a validade dos fatos nem a crítica epistemológica e nem a verificação científica, importa apenas se existe ou não um conteúdo consciente, se existe então ele é válido em si mesmo. Isso se liga diretamente a afirmação de Jung de que tudo aquilo que age, que atua é real, além disso, engendra tanto uma postura clínica quanto uma postura metodológica. Em certo sentido essa noção está intimamente ligada à postura kantiana de negar a metafísica e de impor um limite ao conhecimento.
Finda a longa digressão, e o passeio pela epistemologia de Freud, Lacan e Jung, devemos nos perguntar seriamente qual o lugar da psicologia? Seria uma ciência humana ou da natureza? Lembrando que todos os três eram médicos. Creio que dos três, Freud seria o mais propenso a concordar com a mudança do curso de psicologia para o Centro de Ciências da Saúde, todavia, ele certamente ficaria de cabelo em pé ao se dar conta do lugar ignomioso que se costuma assestar a psicologia na “saúde”. Jung, apesar de sempre se autodenominar médico, de chamar, em seus escritos seu opus de uma “psicologia médica”, no sentido em que hoje diríamos uma “psicologia clínica”, muitas vezes expressou a opinião de que a formação médica era extremamente lacunar e insuficiente para os que se dedicavam a psicologia e de que, na verdade, os médicos é que se beneficiariam grandemente de um maior conhecimento psicológico. Jung não cansou de criticar nosso atroz materialismo, e certa feita sobre as tentativas reducionismo biológico no campo da psicologia (ainda tão em voga hoje) afirmou:
As relações causais dos acontecimentos psíquicos entre si, que podemos observar a qualquer momento, contradizem o ponto de vista epifenomenológico que possui uma semelhança fatal com a concepção materialista segundo a qual a psique é uma secreção do cérebro, tal como a bílis, que é uma secreção do fígado. Uma psicologia para a qual o fato psíquico é um epifenômeno melhor faria se se denominasse fisiologia do cérebro, contentando-se com o magro resultado que uma tal psicologia oferece. O fato psíquico merece ser considerado como um fenômeno em si, pois não há motivo nenhum para concebê-lo como um mero epifenômeno, embora esteja ligado à função cerebral, do mesmo modo como não se pode considerar a vida como um epifenômeno da química do carbono. (Jung, 2002, p.10).

Lacan certa feita afirmou que a psicanálise o salvara da medicina, mesmo assim creio que talvez ele fosse indiferente a essa pequena querela, visto a psicanálise não ser psicologia, mas talvez se importasse ao menos um pouco ao perceber o quanto da psicanálise foi apropriado pelo curso de psicologia. Mas, no frigir dos ovos, creio que todos eles teriam, no mínimo, reservas teóricas, éticas e epistemológicas em denominar tudo o que passa pelo nome de “psicologia” como ciência da natureza, e, com certeza, não aceitariam para suas próprias obras um rótulo tão apressado. Em entrevista sobre Lacan um ano após sua morte Foucault disse ao ser perguntado se Lacan fora um revolucionário:
Acho que Lacan teria recusado este termo "revolucionário" e a própria ideia de uma "revolução em psicanálise". Ele queria apenas ser "psicanalista". Isso supunha, aos seus olhos, uma ruptura com tudo o que tendia a fazer depender a psicanálise da psiquiatria, ou a fazer dela um capítulo sofisticado da psicologia. Ele queria subtrair a psicanálise da proximidade da medicina e das instituições médicas, que considerava perigosa. Ele buscava na psicanálise, não um processo de normalização dos comportamentos, mas uma aparência de discurso extremamente especulativo, seu pensamento não é estranho a todos os esforços que forma feitos para recolocar em questão as práticas da medicina mental.
Creio que é preciso refletir que devemos refletir que a mítica “psicologia” no singular, que supostamente se ensina nas faculdades de psicologia onde se aprende um pouco de tudo e muito de nada, no fundo não é nada, é uma quimera no máximo. De nada para passar a ser qualquer coisa é fácil, dificilmente estaríamos nos perguntando a mesma pergunta para cursos como história, ciências sociais, filosofia, ou mesmo jornalismo e, certamente, tal desmando seria plenamente injustificado. Nem a psicanálise (de Freud e Lacan) é parte dessa quimera, nem tão pouco o opus de Jung, o refinamento teórico e epistêmico desses autores, seu rigor, seu gênio, seu compromisso ético, não combina com qualquer coisa.
A proximidade da saúde pode condenar a “psicologia” a ser mera coadjuvante, “ciência auxiliar”, ou “tecnologia leve”. Ou a se preocupar com tolices como a tão propagada “humanização”, termo estranho e que supõe um “humano” dos mais inverossímeis. Só faria sentido se os médicos fossem vacas (ou elefantes), mas sendo eles pessoas me parece uma sandice, além disso, o termo revela miopia e unilateralidade, pois do humano também fazem parte grandes horrores, não apenas o que é sublime e belo. Jung, Freud e Lacan, com suas vidas e suas obras se afastaram da medicina e de visões unilaterais e reducionistas do psiquismo, eram pesquisadores sérios e dedicados e aqueles que se dedicam a estudar suas obras deveriam, ao menos, parar e refletir criticamente sobre que tipo de ideologia insidiosa se revela nessa escolha, nesse desmando.
Há que se pensar também nas consequências, da maneira como as coisas estão já se constituía enorme desafio estudar na academia as obras desses autores, ou o que Lacan chamaria de psicanálise em extensão apenas um dos tripés da formação do analista. Psicanálise e Psicologia Complexa visam formar analistas, não se forma analistas na faculdade de “psicologia” formam-se “psicólogos” que depois de conseguirem seu diploma se veem obrigados a tentar aprender alguma coisa (os que são sérios). Para os três médicos que discuti aqui, a formação do psicólogo/psicanalista depende em larga medida do conhecimento e do estudo com afinco e dedicado, mas não apenas isso. Foi Jung quem primeiro sugeriu a Freud que todos aqueles que praticam a arte da análise em outrem devem eles mesmos se submeter a ela por dever de ofício, afirmou ele certa feita que só podemos levar o paciente até onde fomos nós mesmos. A tal humanização parece ainda mais tola diante desse imperativo ético, como pode um aprendizado superficial sobre “empatia”, ou como segurar na mão do paciente e os passos para parecer mais simpático ao transmitir uma má notícia se comparar ao trabalho árduo sobre si mesmo que a análise representa? Podem mesmo alguns manuais e um pouco de conversa fiada anular a autonomia dos complexos? Trazer o autoconhecimento necessário para suportar as agruras das profissões que lidam constantemente com vida, morte e sofrimento? O papel da psicologia genuína, seja ela qual for, e não essa quimera é o de problematizar e questionar esse tipo de coisa e não o de simplesmente se converter numa “técnica” capaz justamente de fornecer uma “mentira piedosa” que vá justamente poupar os profissionais de saúde de seus dilemas morais e de seu dever ético de encarar seus próprios demônios.
Qual é o lugar da psicologia afinal de contas? Meu dileto amigo Filipe Jesuíno gosta sempre de citar algo que Jung falou em seu aniversário de 80 anos, disse ele que aqueles que realmente poderiam continuar sua obra não eram os grandes luminares que tinham vindo lhe render homenagem, mas as pessoas simples que sofrem e em silêncio labutam para conseguir a difícil meta da completude para poder ajudar os outros. Assim como Jung, creio que o lugar da psicologia é com essas pessoas, sejam elas quem forem, estejam onde estiverem.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

OS NOMES DOS FURACÕES

Recentemente um amigo postou no Facebook a seguinte notícia acerca da maneira como os metereologistas escolhem nomes para os tornados, tempestades e furacões que assolam o mundo:

Curiosidade: o serviço de meteorologia dos EUA tem duas listas de nomes femininos e masculinos para batizar furacões e tempestades, como o Sandy. Uma das listas é para eventos climáticos na costa Oeste, e outro para costa Leste. O nome oficial é homologado por uma organização mundial de meteorologia que fica em Genebra.Recebe o próximo nome da lista de A a Z o fenômeno que tiver ventos superiores a 60 milhas por hora, algo em torno de 100km/h. Daí a lista vai se repetindo no clico de nomes que compõem a lista.

Algumas tempestades que causam grande trauma ou dano na sociedade, como o Catrina, em 2005 (ou foi 2006, não tenho certeza), têm seus nomes retirados da lista; depois se põe outro nome com aquela letra descartada. A cada temporada de tormentas também são acrescentados novos antropônimos.
A maioria dos nomes, mais de 90%, das tempestades são femininos. Daí você pergunta: por quê? Eu respondo: não sei.
O que chama a atenção, principalmente em virtude da atual calamidade causada pelo poder dos ventos do furacão Sandy, é justamente o fato aparentemente insólito desses fenômenos naturais serem batizados quase sempre com nomes de mulheres. Esse fato, no mínimo curioso, me leva a refletir. Minha reflexão acerca dessa temática procura inicialmente entender a necessidade de nomear tais fenômenos, ou seja, de personificar esses eventos naturais e, em seguida, compreender a razão, ou razões, de a maioria dos nomes de tempestades serem femininos.

A princípio me vem à mente a possibilidade de interpretação dos mitos que já se inicia na própria antiguidade e que ficou conhecida como alegoria. Em primoroso artigo, a professora Loraine Oliveira discute o sentindo desse termo em Plutarco e explica seus significados mais correntes, nesse caso me interessa mais o segundo.  O substantivo alegoria (ἀλληγορία) é formado por ἄλλος “outro” e ἀγορεύω “falo”, no sentindo de que ao falar de uma coisa na realidade fala-se de outra. Na escola de Pérgamo já no século I a alegoria era utilizada como recurso exegético dos mitos inspirado na doutrina estoica, seu principal representante foi Crates de Malos que alcançou renome ao interpretar Homero. Crates interpretava em termos físicos as figuras divinas presentes na poesia Homérica, para ele Homero tinha a intenção de instruir sobre o cosmos através da alegoria. Nesse sentido, as figuras divinas não passavam de fenômenos astrológicos ou meteorológicos. Zeus era na verdade o raio e assim por diante.

Vemos um fenômeno algo similar aqui? Diante de grandes calamidades atmosféricas e climáticas como furacões e tempestades temos a invencível necessidade de nos referir a elas através dessa curiosa prosopopeia? A fúria da natureza precisa ser personificada e nomeada com um nome humano? Como o furacão mais recente, um dos mais poderosos jamais vistos, Sandy. Ao invés de termos deuses ou homens de estatura divina ou semidivina sendo representações semióticas de fenômenos físicos como o raio, a chuva, o sol, o trovão, temos fenômenos naturais que precisam ser nomeados como se fossem gente, ou, ao menos, imbuídos de algum espírito ou vontade, dito de outra maneira, personificados. Se é que existe alguma similaridade ela se pauta por ser um avesso especular, o que só torna a comparação ainda mais interessante.

Tolkien, em seu excelente ensaio On Fairy-stories, faz uma análise das mais interessantes sobre o fenômeno da alegoria. Segundo Tolkien, em algum ponto das interpretações dos mitos começou-se a pensar que os olímpicos eram personificações do sol, da aurora, da noite e assim por diante, todas as histórias sobre eles eram mitos (ou melhor alegorias) das grandes mudanças elementais e dos processos da natureza. Épicos, heróis, sagas, lendas e então essas histórias foram humanizadas ao se atribuir tais feitos e histórias a heróis ancestrais (poderosos, mas ainda homens) e tendo ocorrido em lugares reais. E finalmente, tendo essas histórias decaído e enfraquecido, se tornaram contos populares, contos de fadas, Märchen. Para o autor da trilogia The Lord of the Rings, a alegoria parece ser a verdade quase de cabeça para baixo. A inflexão proposta por Tolkien é das mais interessantes, imaginemos que por trás dos mitos, como a alegoria sugere, não há nada que realmente corresponda aos deuses da mitologia: nenhuma personalidade, apenas objetos astrológicos e metereológicos. Então, esses objetos naturais só poderiam ser revestidos com um significado pessoal e glória através de uma dádiva, a dádiva de uma personalidade, de um homem. Personalidade, afirma Tolkien, só pode ser derivada de uma pessoa. Os deuses derivam seu poder e beleza dos altos esplendores da natureza, mas foi o homem que obteve isso para eles, os abstraiu da lua, do sol, das nuvens, mas a sua personalidade eles conseguem diretamente dele, do homem. Sua centelha de divindade os deuses obtém através do homem.

Temos aqui uma necessidade quase invencível de nomear esses fenômenos tão grandiloquentes e poderosos, de personificá-los, de, como afirma Tolkien, conferir a eles essa fagulha de divindade, a dádiva de uma personalidade. Isso é um indicativo interessante para se perceber aquele pano de fundo psíquico inexpresso que se faz sempre presente, seja convidado ou não, em nossas ações. O inconsciente é um dado irracional existencial inalienável. Nossa era o nega veementemente, iludida pela quimera de uma preferência irracional (ironicamente inconsciente) de cunho sentimental pela matéria, aquilo que Jung denominava de maneira jocosa de “metafísica da matéria”. Ao virarmos as costas a esse aspecto de nossa natureza findamos colocando nomes em furacões, e mais, nomes de mulher, “o princípio básico do inconsciente é o Eterno Feminino”, afirmou certa vez Jung. Esse costume aparentemente ingênuo de nomear furacões e calamidades com nomes de mulher certamente revela uma ideologia insidiosa relacionada à mulher, ao feminino, mas ao invés de simplesmente apontar esse fato evidente, pretendo pensar, isso sim, o pano de fundo anímico que permite seu surgimento. Temos aqui um indício da relação conflituosa que temos com nossa alma, com o feminino que se manifesta não apenas em sonhos, visões e ideias, mas igualmente na natureza e no corpo físico da mulher (na matéria). Alguém poderia objetar, de uma maneira um tanto ingênua, que essa nomeação é um ato consciente, tal objeção se esquece de que, como dado existencial inalienável, o inconsciente é anterior, simultâneo e posterior a consciência.

Campbell faz uma discussão acerca do feminino que pode nos ser útil aqui – também creio que não seja ocioso recordar que feminino não se restringe apenas a mulher assim como masculino não igual a homem. No hinduísmo todo o poder, sakti, é feminino, e o feminino representa a totalidade do poder. Segundo Zimmer, o poder feminino no hinduísmo, a Deusa, Jaganmayi (que consiste de todos os mundos e seres), é a perfeita representação da alegria e da destruição da vida, dois polos dotados de maior tensão, mas em eterna fusão. Só ela conhece a energia secreta onimovente dos mundos, pois ela mesma é essa essência, sakti, ou brahman. Toda a dualidade, sejam os aspectos ameaçadores ou benfazejos, são facetas de sua essência, ela toma a forma em todas as coisas. Além disso, curiosamente, no hinduísmo o sol é feminino (Parvati) e a lua é masculina (Shiva). Na perspectiva hindu, personificada pela Deusa Kali, a Deusa dá luz às formas e mata as formas. Diferente do conhecido princípio chinês em que Yang é ativo, masculino, agressor, claro; e Yin é feminino, passivo, receptivo, escuro; na Índia temos o oposto (apesar de que convém lembrar que no Japão o sol é feminino e a lua masculina). A mulher é o princípio energético vital, ela é a ativadora. Nos sistemas míticos da Era do Bronze a mulher era a grande divindade e a fonte de todo o poder, no Egito o trono que conferia autoridade ao faraó era a deusa Ísis, temos algo similar na imagem do cristo menino sentado no joelho da virgem, ela é o seu poder.

O poder masculino surge com os semitas, pois onde a agricultura é o principal sustento há poderes terrenos e deusas, onde a caça predomina é a iniciativa masculina que justifica a matança dos animais. A tradição semita (judaico-cristã) há um medo do corpo feminino, que é o principal símbolo antropomórfico da atração do poder da natureza. Vemos nas tradições mais primitivas dos ritos de iniciação – prioritariamente masculinos – a imperiosa necessidade de libertar a psique masculina da influência feminina e de ter acesso à magia e ao poder feminino. Os homens são levados a sofrer e a suportar o sofrimento (uma característica feminina), e nos rituais dos aborígines australianos os jovens são alimentados exclusivamente com o sangue dos homens e, além de serem marcados com uma circuncisão, recebem uma subincisão no pênis, para que agora sangrem como as mulheres. Nas sociedades onde predomina a iniciativa masculina existe esse medo do corpo feminino e a necessidade de subjugá-lo, assim como na tradição judaico-cristã a natureza foi feita para ser usada e governada pelo homem.

Isso chegou a tal extremo no cristianismo que as freiras sequer tinham permissão para contemplarem seus próprios corpos. No islamismo, a mais masculina de todas as religiões modernas, a mulher não é mais do que um veículo para a produção de filhos e a função masculina é, em grande parte, a proteção das mulheres. (Campbell, 2003, p.222).

O masculino está relacionado à ordem social, enquanto o feminino a ordem natural. Spengler expressou certa vez que “O homem faz a história, a mulher é a história”. A mulher é a vida. Podemos perceber, pela amplificação objetiva fornecida pela cultura hindu que não é tão estranho assim que o aspecto destrutivo da natureza seja compreendido como feminino, isso não é novo, mas há uma singular inflexão que precisa ser reconhecida, pois certamente há um fenômeno psíquico basilar em ação no que concerne as majestosas imagens da Índia e as tormentas que nos assolam hodiernamente e seus nomes. Campbell afirmou que “Demônio é a palavra que usamos para designar os deuses de outras pessoas”, ainda baseado na filosofia hindu ele afirmava que os demônios são, em verdade, obstruções à expansão da consciência, um demônio é um poder interior que ainda não recebeu expressão plena, um deus reprimido e que ao não ser compreendido é visto como demônio. A percepção dos poderes femininos como a totalidade do existir, do ser, da natureza, tanto em seus aspectos horrendos quanto agradáveis nos mitos aqui apresentados é algo que se situa no campo de um saber consciente, representa um arcabouço simbólico, representações coletivas, para dar conta de um mistério. O símbolo, nesse sentido, funciona como transformador de energia, como promotor de cultura, operacionalizando o inconsciente na consciência e protegendo a consciência da experiência direta e arrasadora das potências inconscientes, diminuindo o campo das inconsciências parciais e tendo uma ação apotropáica.

No caso do nome dos furacões vemos em ação a mesma função psicológica básica, mas sem qualquer mediação simbólica, ou, se é que existe, é mínima. Manifesta-se mais como sintoma, como efeito mefistotélico, sintomático de nossa relação problemática com o psiquismo objetivo. Enxergamos, ou associamos, a fúria destruidora dos elementos, a natureza em seu aspecto indômito como feminina, ao mesmo tempo, ainda grassa em nossa sociedade (mesmo que em nossa sociedade a mulher já tenha se emancipado de maneira muito mais significativa do que em outras como as sociedades islâmicas) um profundo machismo que reprime e teme a mulher e seu corpo (representado muito bem pelas tendências cristãs de extrema direita), ou, seu avesso especular a exploração abusiva e desrespeitosa (dessacralizada) do corpo da mulher. O corpo exibido como mero pedaço de carne, como algo a ser tomado, explorado e usado, como nas rudes metáforas de um Francis Bacon sobre a natureza. Psicologicamente, nesse sentido, compartilhamos do destino de Acteon, que ao encarar a castíssima e terrível Artemis desnuda a viu não como deusa, mas como carne e foi transformado numa besta, um cervo, e foi impiedosamente despedaçado por seus próprios cães de caça.

Quando o lado sentimental da vida desaparece, o relacionamento se degenera em sexo puro como a única forma de interagir com o outro. (...) Do mesmo modo, sempre que a vida sentimental se degenera, em todas as civilizações decadentes, vemos essa evidente e rude exibição de sexualidade. Em civilizações vivas ela é mais oculta e se mistura ao sentimento. (Von Franz, 2010, p.33).

O fenômeno da nomeação dos furacões – que possui certo parentesco com a alegoria como exporei em maiores detalhes adiante – fundamenta-se em um funcionamento psíquico basilar que Jung chamou de identidade e projeção. A identidade significa uma igualdade psicológica e é sempre um fenômeno inconsciente, e que é o fundamento da participation mystique, resíduo da primitiva indiferenciação psíquica entre sujeito e objeto. Na medida em que se não tiver tornado um conteúdo da consciência permanece preso a um estado de identidade com o objeto. O estado de identidade arcaica possui alguns inconvenientes. A identificação com a psique coletiva leva o indivíduo a tentar impor aos outros as exigências de seu inconsciente, pois esse tipo de identificação acarreta um sentimento de validez geral (inatacável por meios racionais), como consequência ignorará por completo as diferenças da psique pessoal dos demais, com um menosprezo implacável pelas diferenças individuais que pode levar a asfixia do elemento de diferenciação da comunidade: o indivíduo. Essa atitude coletiva pressupõe a mesma psique coletiva nos outros. Como fica claro pela exposição do fenômeno da identidade, ela está relacionada fatalmente a projeção. Projeção é uma transferência inconsciente de um fato psíquico subjetivo para um objeto exterior.

O estado de identidade caracteriza a primeira infância, e o inconsciente do adulto civilizado, bem como aquilo que Von Franz certa feita chamou de “estado espiritual originalmente mítico”, no qual não se distinguia os acontecimentos naturais externos dos internos. Setores isolados da psique humana ainda eram em grande parte ignorados e encontravam-se fora, de maneira objetiva e “encontrá-los significava um evento mágico ou um impulso para o bem ou para o mal” (Franz, 1997). Um exemplo interessante de uma percepção intuitiva desse fato está em Monteiro Lobato, quando o li aos nove anos de idade, uma passagem da minha história favorita “Os Doze Trabalhos de Hércules” se marcou fortemente em minha memória. Pedrinho, Visconde e Emília foram a uma floresta para ver as ninfas e sílfides, os gregos do tempo dos heróis que os acompanhavam podiam se regozijar ao ver os espíritos da natureza, mas os heróis “modernos” não, e eles chegam a essa conclusão, que sendo de outra época já não podem mais enxergar a natureza dessa mesma maneira. A intuição genial de Monteiro Lobato (que uma vez mais me mostra o quanto a Psicologia Analítica vem sendo desperdiçada com os psicólogos) dá conta justamente desse estado “inconsciente primordial”. Para ser mais preciso, nesse caso das ninfas, sílfides e etc.; já se desenha o começo da segunda etapa do processo de retirada da projeção como descrita por von Franz, em que os objetos naturais já se distinguem em parte dos seres míticos que os animavam (esse é um processo constituído ao todo de cinco estágios sucessivos).

Para compreender meu argumento (na verdade, assim como a comparação do início, um reverso especular da abordagem histórica da projeção nas ideias religiosas de Von Franz), é preciso compreender minimamente o processo a que aludi anteriormente, para em seguida compreender como esse processo (de ampliação da consciência) se deu através do exemplo histórico, e por fim, chegar a nossa curiosa nomeação dos poderes elementais hodierna.Von Franz se utiliza de um exemplo interessante para ilustrar o processo de retirada de projeção – a rigor só se pode falar de projeção quando a identidade começa a se tornar problemática – o exemplo em seu livro Reflexos da Alma, é o de um soldado nigeriano que desertou por ter escutado uma árvore lhe chamando, ao se estudar o seu interrogatório fica claro que para ele a árvore a voz eram idênticas, a segunda etapa é a distinção entre a árvore e a voz, como a crença em que um espírito habita a árvore (uma dríade por exemplo), a terceira etapa é a necessidade de uma avaliação moral, na perspectiva de julgar se trata-se de um espírito bom ou mal, a quarta etapa vai mais longe rejeitando a vivência como uma ilusão, e na etapa posterior reconhecer o fenômeno como algo psiquicamente real, nesse caso, a avaliação moral torna-se de extrema importância.

Na quinta etapa ocorre a ampliação da consciência, pois o conteúdo subjetivo projetado pode ser integrado à consciência. A energia investida nos objetos exteriores retorna para a personalidade do eu. Esse processo não se restringe a experiência individual, mas pode ser percebido, igualmente, na história das ideias religiosas, como demonstra Von Franz. No mundo grego arcaico predominava o estado de identidade arcaica. Por volta do início das tradições históricas surgem imagens do começo da segunda etapa, o início da diferenciação, os deuses e espíritos podem se manifestar através da natureza, mas eles possuem uma existência própria. Já se vislumbrava também o início da terceira etapa, uma distinção moral, o homem julgava as ações dos deuses e se permitia julgá-las moralmente. Com o início da filosofia natural pré-socrática alterou-se a imagem do mundo mítico religioso dos helenos cultos, procurava-se o divino em um princípio do mundo (arché), e os deuses passaram a coexistir com essas ideias filosóficas ou a ter suas existências negadas. Essa postura iluminística caracteriza a quarta etapa e culminou com a doutrina de Euhemeros, para quem os deuses não passavam de personalidades históricas mortas e divinizadas. Em seguida vemos o esforço de um Teogenes de Region que tenta salvar a “antiga verdade” concebendo-a “alegoricamente” (simbolicamente na opinião de von Franz). Ele procurou traduzir os antigos mitos em uma linguagem filosófica nova, os deuses passaram a ser vistos como símbolos de objetos materiais, ou representariam características e estados psíquicos do homem (início da quinta etapa), Athena seria a sabedoria, Ares a paixão insensata, Afrodite o desejo, Hermes a razão e assim por diante. Esses estados que hoje veríamos como endopsiquicos eram percebidos ainda como “poderes externos”, como essas interpretações não estabelecem limites entre a substância psíquica e a substância material do mundo, elas recriam em parte, junto com a quinta etapa (da reflexão assimiladora), a primeira etapa da identidade arcaica.

Como se pode perceber, existe o processo de ampliação da consciência até o estabelecimento de um novo mito, uma nova identidade que passa a ser a nova verdade, mas a consciência resultante desse processo é mais ampla, todavia o processo aqui apresentado é uma via de duas mãos. A consciência assim como pode se ampliar, também pode, em termos coletivos, acontecer uma regressão. Nos contos de fadas essa regressão pode ser representada por conteúdos da psique que já teve forma humana e passa a possuir uma forma animal ou demoníaca. Von Franz cita como exemplo um conto Irlandês, ao perceber a aproximação dos cristãos, um chefe tribal jurou que eles jamais colocariam as mãos sobre suas filhas, por isso lançou uma rede mágica sobre elas e as transformou em sereias, que até hoje nadam pelos mares atraindo homens. Como se pode ver, essas sereias já foram humanas, mas em virtude de uma atitude errada da consciência foram aprisionadas em uma forma instintiva. De acordo com Von Franz, a vida erótica na antiguidade tardia era relativamente diferenciada, mas esse desenvolvimento foi bruscamente interrompido pela chegada do cristianismo. A chegada do cristianismo representou um enorme avanço da consciência, todavia no campo da Anima, do Eros, isso representou um completo isolamento. Na antiguidade existiu um nível de relacionamento consciente com a Anima muito mais diferenciado e elevado do que na Idade Média.

Eros, na Idade Média, regressou ao sexo puro, sem sentimento – apenas o ato animal. A implicação espiritual das relações sexuais não era vista; regressou ao inconsciente na forma de sereias, fantasias, bruxas etc. (von Franz, 2010, p.52).

E o que significa psicologicamente o fenômeno que foi o mote para esse escrito? Os nomes femininos dados aos furacões como Sandy e Catrina? Esse fenômeno é o reverso especular da alegoria, que representa em termos coletivos o início da quinta etapa do processo de retirada de projeção, a reflexão assimiladora, o que o seu oposto especular indica é o estado inicial de identidade, sintoma dessa regressão da consciência que remonta aos primórdios do Cristianismo e da qual somos herdeiros e, a mim me parece, encontra-se em estado ainda mais deplorável, como atestam dois fatores. As tentativas dos cristãos de extrema direita de “congelar” o mundo numa mentalidade, quando muito, medieval, negando o óbvio depauperamento simbólico das majestosas imagens do cristianismo. A tentativa deliberada de barrar e obstacular mudanças importantes e o discurso extemporâneo desse segmento que, por mais diversificado que pareça, falam em uníssono quando se trata de manter uma imagem do mundo avelhantada. Outro indício de que nossa civilização, em termos espirituais, está decadente e carente de Eros, é um tipo de relação que se estabelece com o sexo e o corpo feminino, vulgar, grosseira e desprovida de sentimento. Mesmo aquelas que se colocam a protestar contra isso, apelam para a vulgaridade da exibição do corpo como mero fenômeno biológico, exposto e sem Eros genuíno. Além é claro, o fato de o poder do dogma cristão estar cada vez mais combalido nos expõe ao retorno de Wotan, que nos espreita e que fez sentir seu poder na erupção psíquica catastrófica que foi o nazismo na Alemanha.

O conteúdo psíquico “projetado” nos furacões e na fúria indômita da natureza é a Anima. E isso é sintomático de nossa relação coletiva com nossa alma, com o sentimento e com o Eros, e a raiz psíquica do preconceito arraigado contra a mulher e o corpo feminino. Nossa relação coletiva com esse dado do psiquismo objetivo se dá de maneira indiferenciada, inconsciente e presa de atroz identidade. Nosso grau de liberdade empírica é proporcional à extensão da consciência. Quanto mais alguém é inconsciente, tanto mais se conforma aos cânones do comportamento psíquico, sendo amplamente inconscientes das diferenças reais entre ele e os demais. O inconsciente ao ser renegado reage de maneiras violentas, e o comportamento do inconsciente é compulsivo e autônomo, capaz de gerar terríveis catástrofes no funcionamento consciente cotidiano. Ao ser negado o inconsciente é sentido como algo de terrível, incontrolado, indômito e tenebroso, como um demônio ou uma tempestade.

A anima é o arquétipo da vida, no terreno humano as mulheres dão e preservam a vida. Os primitivos evitavam sempre que possível encarar o problema da anima/animus com complexos tabus relacionados ao casamento, e as tendências à endogamia e exogamia, dessa forma a anima/animus permanecia no reino dos deuses, não se misturando a vida cotidiana. Não existia entre os primitivos a escolha individual pelo parceiro do sexo oposto, essa escolha era coletiva, muitas vezes o jovem rapaz era apresentado a sua futura esposa logo após o término dos rituais de iniciação masculina, não existia espaço para a escolha individual. Nós, ao contrário, em nossa “queda livre em direção ao futuro”, para usar o termo de Campbell, nos defrontamos com esse problema constantemente, ao nos relacionarmos individualmente (ou tentarmos) com outro ser humano na tentativa de encontrarmos um parceiro amoroso. Para os primitivos isso sempre resultava em desastre em virtude de uma fraqueza do complexo do eu, por isso era evitado e prevenido através de rituais apotropáicos, em nosso caso, como o primitivo vive ainda em nós, o desastre nunca está assim tão longe.

Segundo Von Franz, nos contos de fadas a anima é constantemente representada como a “filha do diabo”, isso acontece em decorrência do princípio feminino estar ausente nos países protestantes. Entre os protestantes há a ausência da anima inteira, mas nos países católicos só falta o lado escuro, pois a Virgem Maria representa o lado luminoso. Como vimos pelas imagens da mitologia hindu, a anima é paradoxal, possuindo tanto aspectos positivos e benfazejos quanto aspectos negativos e destruidores.

No século XIII, a introdução do culto a Maria deu ao homem cristão uma figura feminina idealizada para a qual poderia projetar sua anima. Se por um lado isso foi bom, havia, no entanto, a desvantagem de que a escolha individual de uma projeção da anima já não mais existia – só havia a única anima idêntica para todos os homens. Nos tempos da cavalaria, cada cavaleiro escolhia servir a uma senhora em particular. Depois, quando o cristianismo e o culto a Maria se estabeleceram, a perseguição as bruxas aumentou, à medida que os homens viviam o fascínio por uma mulher específica. (Von Franz, 2010, p.78).

A imagem da Anima é uma entidade psicológica, mas existe igualmente uma experiência humana, quando a anima está ligada a um ser humano ela se torna um desafio na vida de um homem. Em carta destinada a um certo “senhor N.” um americano de 76 anos, datada de 1956, Jung afirmou que o arquétipo feminino que todo homem traz em seu inconsciente, a anima (fato já conhecido na idade média omnis vir feminam suam secum portat) atua na escolha do parceiro do sexo oposto de uma maneira muito peculiar, isso significa na prática que a mulher de sua escolha representa para o homem uma tarefa, justamente por se tornarem encarnações da anima. Esse arquétipo está ligado a forma como nos relacionamos também com a natureza e a matéria, e, idealmente, é uma estrutura psíquica que atua como função de relação entre a consciência do eu e o inconsciente, mediando essa relação que pode ser tão problemática, mas absolutamente vital! Precisamos nos recordar, nesta análise de um fato dos mais importantes, que os símbolos arquetípicos possuem uma enorme carga de energia, são fatores altamente explosivos. A vivência arquetípica não é sentida como apenas intelectual, mas também, e eu diria principalmente, como uma vivência sentimental, que mobiliza o ser humano todo.

Vemos no caso que está em questão aqui que a relação de nossa consciência coletiva com o inconsciente é turbulenta e “intempestiva”, e isso encerra graves consequências, principalmente ao percebermos que nossa relação com essa imagem tão poderosa se encontra em estado de identidade arcaica, e representa uma fraqueza da parte da consciência, por isso encaramos essa parte de nossa vida anímica como algo que causa terror e destruição. Tal reflexão deve nos alertar para esse estado de coisas, mas, infelizmente ou felizmente, a única fonte de progresso moral da sociedade é o indivíduo e não creio que existam meios coletivos de lidar com esse problema, senão o vivermos de maneira genuína e completa em nossas vidas e lutarmos com sinceridade e coragem para termos mais consciência e podermos ser mais livres.