quinta-feira, 19 de maio de 2016

Desabafo, ou, "meu credo epistemológico"



Há um certo tempo, que eu tenho algo meio engasgado pra dizer, um desabafo. Na verdade, sempre me esquivei de fazê-lo, apesar de não parecer, sou uma pessoa reservada. Muitos conhecem meus posicionamentos políticos e intelectuais, mas apenas um número muito reduzido de pessoas pode dizer o mesmo acerca dos meus sentimentos, mas creio que já é chegado a hora de fazê-lo. O motivo de fazer algo que, no fundo, me desagrada tanto, é a reação de duas pessoas queridas ao se aproximarem um pouco mais de mim, e sua expressão de um certo receio no que concerne a mim, o que me entristeceu profundamente. A primeira foi uma reação a uma frase banal pra mim, quando afirmei desconhecer algo e tive, dessa pessoa querida, a seguinte resposta “então você admite que não sabe de tudo?”. O intuito das palavras não foi o de ferir, mas esse foi o resultado, e me senti na obrigação de me explicar. Certa feita, meu amigo Filipe, me disse que quando eu estou falando, lecionando ou proferindo uma conferência eu sempre mostro o melhor, não titubeio, não duvido, sempre tenho uma resposta rápida e sagaz, e que isso é algo um tanto demoníaco e assustador, pois o tropeço é justamente o que desperta a nossa compaixão, ou, para usar a expressão de outra pessoa querida, sou “assertivo”. Levei a sério essa admoestação, e acrescentei uma dose maior do humor judaico ao meu repertório, mas creio que a impressão causada foi duradoura. Quando me expliquei a essa amiga, lhe expus algumas das minhas mais caras convicções, o que lhes faço agora.
Eu não creio que qualquer teoria seja capaz de dar conta do mundo, assim como Popper, creio que nosso conhecimento é finito enquanto nosso desconhecimento é infinito, e que a postura intelectual e moral adequada ao cientista é aquela expressa pelo racionalismo crítico “eu posso estar errado e você estar certo”, tenho fé na minha razão, mas maior é a minha fé na razão dos outros. Acredito na tolerância, que deve ser dada aos outros a oportunidade de expor seus pontos de vista mesmo que sejam opostos aos meus, e, o mais importante dessa postura, acredito firmemente que, mesmo alguém culto e inteligente, ou bem preparado ou o que seja, deve rejeitar qualquer pretensão de autoridade, ninguém deve ser o seu próprio juiz. Nenhum conhecimento genuíno vem da autoridade e todo ele é conjectura. Assim como Aristóteles expos em sua retórica, eu creio firmemente que o papel do professor não é convencer, mas ensinar. Assim como William James, um dos meus heróis intelectuais, não creio na existência da “Verdade”, única e com v maiúsculo, não penso que o universo seja um enigma que possui uma resposta, uma palavra de poder que ao ser encontrada me permite descansar, os “nomes dos demônios” que Salomão possuía. Ao contrário, acredito em verdades operacionais que servem até o momento em que puderem ser veículos para me levarem mais longe, como atalhos conceituais que organizam o caos da experiência e geram mais trabalho. Assim como Jung, de quem sou discípulo póstumo, creio que há um limite existencial, e inalienável a toda e qualquer pretensão de saber, que há coisas que ignoramos e ignoraremos (e essa postura ele retira, em parte, de Kant), que por melhor que seja o meu ponto de vista, as minhas teorias, ele depende, em larga medida, da minha equação pessoal, logo, é necessariamente limitado. O que me anima como professor, especialmente de Psicologia Junguiana, é saber que há coisas que eu jamais seria capaz de formular e que apenas outras equações pessoais, poderão. Assim, me anima a esperança de ver meus alunos, ao descobrirem quem são, serem capazes de formular sua verdade a partir de sua individualidade, dizendo coisas novas para mim e ampliando, assim, o meu horizonte. Muitos são os fatores que me limitam, eu sou um homem, falo da perspectiva do logos, e, há coisas que eu não vejo e nem sinto, e que devem ser ditas e formuladas não por mim, mas pela alma das mulheres, pelo eros. Assim como acreditava outro dos meus heróis, Marc Bloch, também creio que só posso afirmar aquilo que o tempo em que vivo me permite, sou limitado por uma mentalidade coletiva, e dela posso escapar apenas sutilmente. Mas, fundamentalmente, eu acredito nos outros, que sentido haveria em ensinar se assim não fosse? Há na vida um aspecto artístico, as grandes verdades devem ser ditas novamente a cada geração, de uma maneira adequada a essa geração, nas palavras que eles possam compreender, assim, o trabalho da cultura é um que jamais cessa. Creio, assim como Jung, que se eu tento formular uma grande verdade, mas finjo que não sou atingido por ela, que ninguém está a falar eu falho miseravelmente, mas que se falo a partir da maneira como um problema que atinge a todos, também me atingem, estando visceralmente implicado nisso eu posso enunciar uma verdade, que é minha, mas é uma experiência comunicável que pode traduzir a experiência dos meus semelhantes.
Aprendi poucas coisas úteis com o meu pai, uma delas foi a postura de educador. Há muitos anos, o governo do estado fez um curso para velhas professoras, para que tivessem o diploma de curso superior, e meu pai lecionava para elas, mas era muito atarefado. Como tinha muitas ocupações, vira e mexe mandava o filho, estudante de história lecionar para elas, e ele (eu) se esforçava para falar tudo o que podia e dar uma ótima aula, e, invariavelmente tinha uma resposta plácida das senhorinhas, que diziam que eu falava coisas bonitas e interessantes, porém entendiam pouco ou nada. Nunca me queixei disso ao meu pai, mas um dia, depois de uma dessas aulas, meu pai se queixou, não das alunas, mas de um colega professor. Esse colega, sempre falava mal delas, e não tinha pudores em considerá-las um caso perdido, ao me narrar isso, ele se virou pra mim e disse que retrucou ao tal colega desdenhoso “falar mal delas é fácil, o difícil mesmo é trazê-las para o seu nível”. Desde esse dia, eu tomei como regra jamais subestimar meus alunos ou meus ouvintes, evitar pedantismos, mas, igualmente evitar me colocar num patamar de superioridade, sempre que eu falo, sou animado pela crença na inteligência do meu público. Ainda mais novo, meninote, vi o meu pai lecionando nas salas vazias da UFC da década de oitenta. Havia 5 alunos, duas o ouviam com atenção falar sobre a Grécia, uma se sentava mais distante e alheia, e um outro lia um jornal. Ao final da aula eu perguntei a ele o motivo de não ter ralhado com o sujeito do jornal, achava a atitude acintosa, sem pestanejar, ele disse “é problema dele, assiste aula quem quer”. Nenhum de nós pode ser coagido, fundamentalmente somos livres, e isso implica a liberdade de não querer estar ali, ou não ouvir, por mais que seja o meu dever tentar tornar as coisas o mais interessante possível.
Por fim, ainda com Jung, tenho descoberto de novo e de novo, a verdade de que tudo o que julgamos saber sobre nossos semelhantes é um preconceito ou uma projeção. As pessoas são muito mais do que julgamos, nosso julgamento é limitado e só podemos ver nos outros o que medra em nosso coração, dependemos da trave em nosso olho para ver o cisco no olho do nosso próximo. Eu tenho tido, sempre, a grata surpresa de me espantar com as pessoas que me cercam, ou com aqueles que só via ao longe, há ali tanto que desconheço, que seria uma pretensão genuinamente diabólica crer que meu preconceito sobre alguém pode ser a verdade daquele sujeito. Cada ser humano com que me deparo, por melhor que seja a minha intuição ou percepção é um grande mistério, e, igualmente, um milagre irrepetível. Sim, minha querida, eu não sei de tudo e nem pretendo saber, apesar de saber bastante, paradoxalmente, quanto mais eu sei, mais devo compreender que não sei. O mundo pode não ser um enigma, mas, certamente, é um mistério.
O outro motivo desse pequeno desabafo, dessa confissão subjetiva dos valores que me animam, do meu “credo epistemológico”, é que outra pessoa muito querida, ao se avizinhar mais de mim e do meu coração, disse do receio de que a minha postura arrogante ser a base para uma atitude grosseira ou desrespeitosa, e isso me feriu ainda mais. Não é à toa que escrevi um livro sobre Naruto, todos os meus heróis empalidecem diante dele. O garoto idiota, sem talento e odiado, não reconhecido e que, contra tudo e contra todos afirmou sua individualidade, não para se vingar desses que o desprezavam, mas para ser o maior bastião para defendê-los (o hokage). Poucas imagens poderiam descrever melhor aquilo em que acredito quanto à narrativa de Naruto, a pistis, a fé confiante em si mesmo, necessária a consecução de quem se é. Eu posso ser assertivo, muitas vezes duro, pois quem quer ser professor deve abrir mão da necessidade de agradar sempre, mas jamais teria coragem de desencorajar ou humilhar. Por anos e anos minha maior luta foi para alcançar algum grau de Ahimsa (não violência), justamente para que minhas palavras pudessem encorajar e não desencorajar. Eu já traí o meu herói, e, como se trata de expor os meus sentimentos, que eu exponha também esse fato insólito da minha vida. Eu estudava com o Wilson, Psicologia Analítica, há época era um dos únicos que o fazia devido a sua antipatia (que ele mesmo admitia) e a minha proverbial teimosia em não ser desencorajado por nada nem ninguém, mas um dia eu me calei. Estava justamente falando sobre Naruto e o usando como metáfora, e ele me dizia como já estávamos derrotados de antemão, como a psicologia analítica estava morta e ninguém era capaz de compreendê-la e aceitá-la. Eu retruquei “que dizer que eu não posso ser hokage?”, sua resposta foi um sonoro não, seguido da poesia de Augusto dos Anjos “Vês, Ninguém assistiu ao formidável enterro de tua última quimera, somente a ingratidão – essa pantera – foi tua companheira inseparável”. E eu me calei, nos afastamos depois, mas, fosse eu fiel a mim mesmo, teria dito, como Naruto diria que “esse é o meu jeito ninja, e ninguém vai me dizer que eu não posso ser hokage”. Minha postura é a antípoda dessa, sou um incorrigível otimista, e espero muito dos meus alunos, espero que eles sejam muito melhores do que eu, se assim não fosse, qual o sentido de ensinar? Não minha querida, eu jamais seria grosseiro de maneira gratuita, ou pedante e pernóstico, saber de algo não lhe faz melhor ou pior do que alguém, são nossas decisões e posicionamentos morais que nos fazem melhores do que nós mesmos. Jung, disse, acertadamente, que inteligência em gente ruim é defeito e não qualidade, eu preferia abrir mão da minha a ser alguém que trata mal as pessoas ou se sente superior. Minha vida é uma sucessão de erros e fracassos, não estou em posição de julgar ninguém, e, mesmo que estivesse, esse julgamento pertence apenas ao altíssimo e não a qualquer homem de carne e sangue.
Tenho ouvido, das pessoas que se aproximam de mim (tenho me tornado menos reservado), a rapidez com que essas quimeras que rodeiam a minha imagem se dissolvem, ou, como me disse uma pessoa, como isso se desfaz de maneira “espetacular”, mas ainda me dói um pouco que haja isso, e, me dói ainda mais saber que, por um longo tempo, a minha postura fomentou essa desconfiança. Eis um pedaço da minha alma exposta à luz do dia, um pouco da minha verdade, não fossem essas duas feridas, jamais teria tido estímulo para deitar a pena ao papel para deixar transparecer tanto assim de mim, mas aqui está, esse é o meu jeito ninja.

sábado, 14 de maio de 2016

O papel do humor no fascismo à brasileira




Poucos temas se revestem de tão grande importância em nosso país, nos sombrios dias que vivemos, quanto o fascismo. Autores melhores do que eu, como Adorno, Reich e Jung, se debruçaram longamente sobre essa temática e eles serão os proverbiais gigantes em cujas costas tentarei escalar para ver um pouco mais longe. Os três que citei de início são justamente aqueles que se preocuparam com a psicologia do fascismo, e essa é a inflexão específica da minha reflexão, especialmente no tocante ao ponto que já anunciei no título, e que considero uma característica peculiar do fenômeno como hodiernamente se manifesta no Brasil.
O humor faz parte de nossa política desde longa data. Desde o Barão de Itararé no primeiro quartel do século vinte, até o colunista da folha José Simão, auto intitulado o “esculhambador geral da república”, a crônica política vem sendo encarada com bom humor e galhofa, tendo o mesmo Simão imortalizado o epíteto de “país da piada pronta” para a nossa nação. Mais recentemente, nesses tempos velozes de internet, o site Sensacionalista, produz notícias de primeira capa absurdas, que tem tido cada vez mais verossimilhança em virtude do caráter absurdo e surreal pelo qual nossa política tem, cada vez mais, enveredado. No Youtube, o grupo Porta dos Fundos é outro exemplo, porém, minha reflexão se dirige a outros atores no que concerne ao humor, atores esses que, suspeito, são tanto o público quanto a inspiração desses e outros comentadores jocosos da cena política.
O “homem comum”, ou o eleitor, o homem médio, a massa silenciosa, ou como queiram chamar os anônimos que observam de maneira mais ou menos distante o circo de horrores de nossa política também se manifestam desde há muito com escárnio, galhofa e ironia. Nos tempos idos do voto em cédula de papel, muitos dos eleitores tornavam o momento cívico do voto em uma piada coletiva. No meu Ceará, terra famosa pela gaiatice, o bode Ioiô, boêmio e andarilho famoso de Fortaleza no primeiro quartel do século XX, foi eleito vereador, e teria sido morto em um atentado político, pois se julgava que o bode poderia vencer a disputa para o cargo de governador, ridicularizando os políticos de duas patas. Em São Paulo, no ano de 1959, sob o governo do venal Adhemar de Barros, o rinoceronte Cacareco (que era uma fêmea, e carioca) recebeu 100 mil votos para a câmara municipal. Até aqui nada novo sob o céu, basta lembrar o cavalo Incitatus, que foi Senador em Roma, no reinado de Calígula. Diversos candidatos, com maior ou menor grau de sucesso, assumem o ridículo como estratégia de campanha, alguns são apenas pessoas “comuns” que se contentam em aparecer, outros são utilizados como uma ferramenta pelos seus partidos para conseguir eleger candidatos nanicos em virtude da bizarra matemática eleitoral de nossas eleições. O mais famoso exemplo desse fenômeno, e o mais bem sucedido, foi o palhaço cearense Tiririca, eleito por mais de um milhão de paulistas abestados. Tirica usou e abusou da galhofa e do escárnio em sua campanha, com um slogan excessivamente otimista “pior do que tá não fica” (ficou!) e teve uma votação inacreditável. O palhaço, a rigor, carece absolutamente de qualquer posição política identificável, não se prestando muito a análises que o coloquem à direta ou à esquerda. Ainda no Ceará, o delegado de polícia, Cavalcante, era uma figura tão exótica e caricata com sua dificuldade de fala e carregado sotaque matuto, repetindo interminavelmente a expressão fática “ói, ói, veja bem”, seguida de todo o tipo de platitude incompreensível, que foi satirizado pelo grupo de humor Nas Garras da Patrulha, que fizeram um boneco inspirado no tal policial (que nem chegava a ser tão ridículo quanto o original), o que fez com que, quando Cavalcante se candidatasse, fosse um dos deputados mais votados do estado. Quando ele resolveu se distanciar de sua imagem pitoresca, e do grupo de bonequeiros, sua votação despencou vertiginosamente.
O dado que me parece novo, e me tem chamado cada vez mais atenção, é o humor que vem ganhando cada vez mais espaço na extrema direita brasileira, desde os liberais anarco-capitalistas, até aos abertamente fascistas, como Bolsonaro. Jair Messias Bolsonaro é uma figura bizarra e sem graça, que, quando muito usa de humor negro (como no caso em que comparou a busca das famílias de mortos da ditadura pelos corpos de seus entes queridos a cães que desenterram ossos), são os seus eleitores, admiradores e simpatizantes que tem me chamado mais a atenção.
Fascismo é um termo que, em geral tem como referência histórica o regime de Mussolini na Itália, ou mesmo, adicionando o problema do racismo (antissemitismo), o governo Nazista na Alemanha. Uma definição do que considero fascismo se faz necessária de início, especialmente pelo uso cada vez mais corriqueiro desse termo no debate político atual, utilizado especialmente como adjetivo, todavia uma precisão do termo nesse ponto não nos levaria muito longe. Não creio que a maior compreensão sobre um tema surja da precisão, mas justamente da imprecisão e incompreensão, eu não sei muito bem o que é esse fascismo eivado de sarcasmo que vigora hoje no Brasil, e toda e qualquer definição é arbitrária e não explica os fenômenos que denota. Parto, portanto, de uma incompreensão inicial. Como o meu intuito é tentar compreender esse tema, com os recursos de que disponho, eu sugiro uma conceituação meramente operacional para nos levar mais adiante, sem falsas ilusões de que realmente sabemos do que se trata, pois não sabemos, nem eu e nem você, estimado leitor. Vivemos momentos de uma enorme confusão, e qualquer pretensão ao saber, nesses tempos interessantes, é apenas presunção e desfaçatez, confusão travestida de saber, desonestidade intelectual e nada mais. Nesse sentido, compreendo o fascismo essencialmente como uma disposição ao autoritarismo, ao uso da coerção e a violência, ao não reconhecimento da individualidade, um desejo pela substituição da decisão moral individual pela razão de estado e um apelo sempre reacionário a manutenção de uma norma que nega o devir minoritário. Essa disposição, esse traço de caráter, pode ser à base de um discurso político, que se empenha em virar as costas ao mundo contemporâneo e sua complexidade e oferecer saídas simples, quase franciscanas, que se apresentam como verdades elementares, e pouco fazem para disfarçar um desejo de destruir o outro, todo aquele que não faça parte dessa norma que é tida como natural e transhistórica. Não à toa, a aliança dos fascistas com os pastores reacionários que creem numa verdade revelada. A inflexão fundamental da minha reflexão vai não tanto para os aspectos políticos e sociais, mas para nascedouro desses aspectos e aquilo que sustenta o lado político, social e econômico dessa equação, a alma dos fascistas (partindo da hipótese de que eles possuem uma).
Minha atenção foi atraída para esse aspecto (do humor) ligado ao fascismo, especialmente pelas consequências de um fato insólito ocorrido em Fortaleza, mas que é paradigmático do que vem ocorrendo de maneira mais ampla. Um fulano foi vestido com uma camisa com a fotografia do deputado Bolsonaro para o Centro de Humanidades da UFC (Universidade Federal do Ceará), e, obviamente, a provocação foi prontamente respondida e filmada. Houve um confronto em que foram gritadas palavras de ordem, em especial “fascistas, fascistas, não passarão!” e o aluno do curso de letras, também inspetor da polícia civil, foi expulso do campos. Ele acionou a polícia, que não pôde entrar na Universidade, mas foi escoltado para fora do campus e prestou queixa, além de argumentar que teve sua liberdade de expressão tolhida de maneira autoritária. O mais curioso, para mim, é que eu conheço esse sujeito, ele trabalhou para mim há muitos anos quando tentei (de maneira malfadada) ser comerciante. Era um rapaz simpático e afável, que em nada demonstrava tendências autoritárias ou violentas, mas o nosso mundo é famoso por dar voltas...
O que ocorreu logo em seguida foi uma intensa mobilização nas redes sociais em defesa do simpatizante e seguidor de Bolsonaro, vítima de atroz intolerância e cruel cerceamento dos seus direitos de pedir pelo fim dos direitos de todo mundo, e se organizou um evento pelo Facebook para fazer um “rolezinho” no CHII em homenagem ao referido deputado, que galvaniza a admiração desses espíritos autoritários. Ao observar os comentários no tal evento, eu me deparo com as seguintes frases (lugares comuns entre esse tipo de gente):
[...] Levem suas armas (Pão com mortadela, bandeira, carteira de trabalho e cartazes.) [...]
Seguido do comentário: “A esquerda chega esperneia” seguido de 3 carinhas chorando de rir.

Pessoal, somos a galera da zoeira, mas preciso falar uma coisa séria com vocês... Podemos mostrar que a direita se preocupa com o próximo, mas pra isso precisamos da ajuda de cada um de vocês que compõem esse movimento, essa ideologia, esse estilo de vida. [...]

Eu não sou de nenhum dos dois, mas quero ir ver as tretas como faz? Rolezinho dos divergentes? Apoio.

pode ir zuar os idiota? Rsrs

PESSOAL, BORA LÁ OPRIMIR...GO GO!!!

Eu vou huahua só preciso conseguir a camisa do mito pra oprimir huahua

Bora começar a compor as palavras de ordem, galera. Tem nada pior pra esquerdista do que umas verdades cantadas em coro bem na cara dele. Kk

Fiquei sabendo que vai ter distribuição de presto barba para as feminazi.

Aqueles imundos podem usar camisa do Che Guevara e querem proibir camisas do Bolsonaro????? Nos aguardem.

Só pra deixar bem claro: n me sinto nem um pouco insultada por ser chamada de "bolsominion", me sentiria mal se vcs me chamassem de petista, isso sim. Beijos!

Sadia e Perdigão acabaram de anunciar que vão parar de produzir mortadela por uma semana, galera, depois do impeachment pra aumentar o choro de nossos amigos petistas.

Em nome de CARLOS ALBERTO BRILHANTE USTRA

Cabra Macho!!! Pro esqurdista que diz que pedófilo tem que ser tratado em vez de pegar cadeia pra sempre, o Mito tem um bom doutor pra indicar: o Dr. Peixeira!!!

Queria que o nosso Mito Presidente da Republica cearense tivesse vivo pra ver essa zuera. (seguido de um coraçãozinho)

Levem as carteiras de trabalho, geralmente isso aterroriza à esquerda.

EI GALERA BOLSOMINIONS BOLSOMITOS OU APENAS AMANTES DA ZUERA CONTRA A ESQUERDA RAIVOSA OU MANAS DA ESQUERDA ALALALAÔ ou insentões

Meus amigos da direita, Levem cédulas de 5 reais pra distribuir lá pra esse povo da esquerda, entendedores entenderam
Iai esquerdosos, maconheiros, idiotas e analfabetos....
Vão colocar todo mundo pra correr ou vão ficar com medinho, já que só agem em bando iguais a covardes?
Tô aguardando uma cuspida, seus maconheiros.

Maconheirada pira!

A livre expressão só é defendida pela esquerda quando convém, não passam de vagabundos!

Os Zé Droguinhas já estão se organizando para atrapalhar a manifestação a favor do companheiro que foi coagido.

Se fosse no campus de exatas, nada disso teria acontecido.... Kkkk

A palavra “Zuera” se repete diversas vezes, e muitos revelam como motivação de suas ações, justamente o aspecto pretensamente humorístico de seus atos. A esquerda é identificada com a burrice, a preguiça e a subserviência, assim como no passado os índios e negros foram igualmente representados dessa forma. Como é um evento originado no Ceará, um estado do Nordeste, não se viu a xenofobia normalmente dirigida a essa região pelas pessoas que se identificam com essa ideologia. O tom conservador (no mau sentido) e policialesco é quase onipresente, assim como o escárnio, Escarnecer dos adversários virou regra, bem como a acusação de intolerância e fanatismo. Jung, certa feita, asseverou que “se é aquilo que se combate”. Algumas das postagens fazem referência explícita à ditadura militar, outras (que não coloquei) apontavam para um revisionismo histórico do período de exceção. O humor aqui, diferente do papel libertador que já teve historicamente, é utilizado para escarnecer e humilhar, a graça está justamente em poder dar livre vazão ao ódio sem nenhum pudor ou restrição. Freud ao falar dos chistes (Witze), via neles a lógica do retorno do recalcado, eles encobriam algo de vergonhoso ou imoral incompatível com a consciência, mas que retornava pelo mecanismo do deslocamento ou da condensação como algo engraçado, mas por trás da graça espreitava o horror. Aqui o horror não se esconde, mas é traduzido com ainda mais maldade pelo veículo do humor. A zueira surge como o substituto de uma reflexão moral, como sucedâneo de uma ética, é ela que justifica a minha ação e é manejada como arma e argumento contra os inimigos reais e imaginários.
Creio que nesse ponto, não é ocioso uma reflexão, mesmo que ligeira, sobre as redes sociais. Parece-me, que as redes sociais deram ao homem comum uma possibilidade antes restrita a políticos e celebridades, a de possuir uma “persona pública”. No passado, a exposição pública pelos meios de comunicação, de maneira espontânea ou calculada, permitia que a imagens fossem criadas ou destruídas, que se fomentasse amor e popularidade ou antipatia e ódio. O que antes era restrito a um número reduzido de pessoas de interesse público, que eram conhecidas da grande massa apenas por esse recorte midiático que lhes induzia o olhar, hodiernamente é algo acessível a qualquer um que use Instagram, Twiter, Youtube e Facebook. Celebridades seguidas por milhares de pessoas surgiram nesses veículos sem ter qualquer relação com os veículos tradicionais de mídia. Além das novas celebridades, qualquer um com tempo e disposição pode ter uma imagem pública que atinge desde algumas centenas de amigos a alguns milhares de pessoas. Antes, apenas nossa família, vizinhos e colegas de trabalho, talvez nem meia centena de pessoas, tinha alguma consciência da nossa existência, ideias, anseios e problemas. Com as redes sociais podemos afetar uma imagem pública, vocalizar nossa opinião para um número muito maior de pessoas (sem apelar para os meios tradicionais como rádio, jornais e televisão) e, simultaneamente, num jogo de claro e escuro, encobrir ou desvelar quem somos. Todos nós usamos máscaras, alguns são mais ou menos consciente desse fato. Quando o professor assume um tom mais sério e sisudo ao entrar em sala de aula, na esperança de tourear com a atenção de alunos mais ou menos alheios ao que ele tem a dizer, isso é uma máscara. Ou o manto da autoridade vestido pelo Juiz, que é um investimento coletivo e depende dessa mesma coletividade tendo pouco ou nada a ver com sua personalidade. Aquilo que aparece com clareza no fenômeno da esquizofrenia, a capacidade da nossa psique de se dissociar, só se diferencia da normalidade por uma questão de grau. A psicopatologia não é um ens per se, mas o exagero de características corriqueiras da nossa alma. Assim, além do fator de cálculo que envolve a criação de uma persona pública, existem também fatores irracionais que interferem ativamente, fazendo com que a máscara revele ao invés de esconder. Conheço pessoas de uma placidez tocante que, nas redes sociais, vomitam um ódio que, numa primeira visada, pareceria completamente estranho a sua atitude mais corriqueira. Há na maneira como as pessoas se comportam na internet um viés performático, uma encenação, mas muitas vezes essa encenação dá lugar a uma verdade profunda desses sujeitos que transparece, frequentemente, a revelia de sua vontade. Outras, mais recatadas, preferem observar esse circo, se resguardando de aparecer de maneira mais ativa, sua relação com os objetos virtuais (ideias, imagens, opiniões, vídeos) não nos é imediatamente evidente, pois eles conseguem manter essa relação em foro íntimo, não reagindo a elas, apenas observando. Assim, além do aspecto performático, a internet possibilita a atuação de aspectos menos visíveis e mais carregados de aspectos primitivos, especialmente em virtude do fato desses afetos não terem a possibilidade de serem espelhados pelos afetos de outro ser humano, o que permite uma escalada dessa afetividade indiferenciada sem que o horror no rosto de alguém nos alerte para as profundezas nas quais estamos nos afundando, há, portanto, nessa comunicação um elemento importante de isolamento autoerótico. Comentários e postagens findam sendo confissões mais ou menos involuntárias daquilo que medra em nossos corações, mesmo que não estejamos cientes disso, logo, estamos possuídos por isso que nem sabemos haver em nós. O papel do humor, nesse caso, o da vocalização de intolerância e ódio, consiste igualmente em fugir a responsabilidade pelos atos, palavras e omissões praticados, pois se trata apenas de uma piada. O humor não esconde o horror, mas despotencializa suas consequências, isenta de maiores responsabilidades aqueles que se expressam de maneira odienta. A intenção de destruir, aniquilar, é mascarada pela intenção de fazer graça, mas a graça está no outro que jaz ferido de morte pelas setas certeiras que são essas palavras pretensamente jocosas. A piada é o prelúdio da pedrada e do linchamento, mas não se assume enquanto tal. É um ato juvenil e irresponsável, e que deve ser encarado como inconsequente (no sentido de não ter consequências mais sérias), ou, ao menos, assim creem aqueles que fazem uso desse humor sombrio.

É comum ver na internet a reclamação de que o mundo está sem graça e de que há um patrulhamento do politicamente correto que procura, autoritariamente, cercear a nossa liberdade de expressão, ou nossa liberdade para sermos estúpidos. De maneira muito interessante, a série de TV BoardWalk Empire retrata um pouco do humor dos anos 30, um humor que deveria parecer grotesco para nós: anões lutando uns contra os outros, músicas misóginas retratando as mulheres como estúpidas e inferiores, e a odiosa “black face”. O mais curioso, é que o famoso programa de TV pânico, utiliza-se de todos esses elementos grotescos e profundamente horrendos com grande sucesso, inclusive a racista e intolerável “black face”. Nas redes sociais, a reclamação da “falta de graça”, esconde, isso sim, a falta de impunidade. No passado, podia-se escarnecer abertamente de todos os que não fossem maioria (homem, branco, macho e cidadão), eles já eram essencialmente uma piada em virtude de sua pretensa inferioridade, e o humor apenas salientava isso enquanto exaltava a superioridade do homem, jovem, ocidental. O apelo à graça é um apelo à impunidade, a inconsequência, a “graça” é poder destruir o outro com palavras sem para qualquer preço por isso, destruir de graça. Assim, o humor, no nosso fascismo é uma reclamação pela “ordem natural das coisas”, em que há uma hierarquia social que a uns tudo permite e a outros tudo nega. No nosso fascismo, o apelo ao humor é uma brecha no dique de civilidade e respeito que construímos a duras penas, atrás dele permanecem a espreita uma onde de lama racista, machista e xenofóbica. Quem diz que o mundo não tem graça, no fundo diz, que não é engraçado não poder tudo. A mim me parece, que a violência primeva que habita as profundezas de nosso peito está de prontidão, e surge num primeiro momento como uma inocente piada. Mesmo a reclamação recorrente contra os direitos humanos, é um disfarce para a noção de que nem todos somos humanos. Por séculos se cogitou se as mulheres teriam mesmo uma alma, com os selvagens e negros, tinha-se a certeza de que não possuíam uma, logo podiam ser tratados como seres sub-humanos. O que houve com o meu povo sob o regime nazista empalidece diante dos rios de sangue que correram nas Américas e nos horrores perpetrados por séculos contra os povos nativos. São os herdeiros dos conquistadores brancos que, agora, reclamam de volta seu direito de vida e morte sobre os demais, mesmo que com novas categorias, pois os selvagens a serem civilizados e exterminados são os “esquerdistas”.
Nesse sentido, o humor é apenas a vanguarda da violência, ele gera o momentum necessário para que a ação possa se concretizar numa esfera mais prática. A zuera, em seu aspecto negativo, é a legitimação da ação efetiva de destruição do outro. O humor visa, num primeiro momento, aniquilar o orgulho, o brio, a autoestima daqueles que os fascistas julgam inferiores. A destruição significa também que esses que estão “no topo” podem se servir à vontade dos subalternos, usá-los como objetos, disso dá prova eloquente o nosso machismo cotidiano, mas não apenas ele. Alguns dos comentários que utilizei como exemplo, mostram que chega um ponto em que a piada apenas não basta, surge à necessidade da ação. Não devemos, todavia, superestimar essa evidência, pelos motivos que já descrevi. Creio que é preciso algum tipo de contrapeso para que se passe dessa vocalização a ação, como o humor busca a irresponsabilidade, logo a entrega efetiva da moral individual por alguma outra coisa, ou seja, um certo odium indignitatis, o contrapeso é a palavra do líder. Acho que o aumento significativo de linchamentos depois do pronunciamento público da jornalista de extrema direita Raquel Scherezade pode ser explicado por esse mecanismo.
Também acredito que o humor, que prescinde da lógica, que pode ser absurdo e insensato, também faz um apelo ao aspecto irracional, existencial inalienável em nós, justamente naquilo que ele possui de mais lúgubre. Ele toca essa corda comum que escapa a qualquer explicação cartesiana e que é imune a toda e qualquer lógica e se basta por si mesmo. Assim, tem-se uma estética da irracionalidade, que permite que nossos preconceitos afetivos e desejos quiméricos venham à luz do dia e possam ter uma forma comunicável. Essa estética do horror também engendra um laço: os que riem da piada são os meus iguais. A identificação é imediata, sem reflexão, apenas pelo tom do afeto que se mostra na risada, pelo riso o ressentimento reconhece o ressentimento. Assim, seguimos com nossa piada mortal, em que a loucura reverbera na loucura e o som que ela faz ao reverberar é o riso.