sexta-feira, 17 de maio de 2013

De Anakin Skywalker a Darth Vader: o homem máquina e a terra devastada uma interpretação psicológica


Darth Vader é uma das figuras mais memoráveis do cinema. Quando de sua primeira aparição o vilão mascarado, vestido da cabeça aos pés numa espécie de armadura negra e capa, com sua voz poderosa como se saída de uma caverna e sua respiração artificial, contrastando com homogeneidade dos Stormtroopers todos em armaduras brancas idênticas, capturou de imediato a atenção e imaginação de toda uma geração. Tudo contribuía para reforçar o impacto daquela aparição medonha, apenas vagamente humana, e, como viríamos a saber depois, mais máquina que homem. Vader mostrava-se cruel e impiedoso, um instrumento do poderoso império galáctico, o mais fiel e temível servidor do imperador Palpatine, o cruel Lord Sith Darth Sidous. Sob a máscara negra se escondia uma história de glória e heroísmo, amor, poder e loucura. Da ascensão e queda do mais poderoso jedi de todos os tempos, o escolhido, herói das guerras clônicas, melhor piloto de caças da galáxia, e o algoz da ordem jedi. O mito de Vader foi tornando-se mais e mais complexo e repleto de nuances quando, após décadas do final da trilogia original, iniciada com o episódio IV, surgiram os filmes I, II e III, narrando à ascensão e queda do cavaleiro jedi que nasceu para trazer equilíbrio à força. A história da segunda trilogia é a narrativa da morte da democracia e o surgimento de um estado totalitário e tirânico, a obliteração da mais importante ordem religiosa da galáxia e, simultaneamente, da corrupção e queda do maior herói da galáxia o destemido, irascível e imbatível Anakin Skywalker.
O que me proponho a fazer aqui é analisar em termos psicológicos a figura de Darth Vader, e por meio dessa análise, compreender o que Vader representa, em termos anímicos, para a nossa sociedade, para cada um dos fãs que assistiram mesmerizados as proezas de Luke Skywalker e depois, descobriram a trágica história de seu pai, convertido em um arremedo de ser humano, um monstro aprisionado em uma armadura negra, pelo poder do lado negro da força. Compreender o poder de mito moderno que a saga de Anakin Skywalker possui e de onde essa história extrai a sua força comovedora são nossos objetivos. Que a força esteja conosco ao iniciarmos essa jornada pelos planetas dessa galáxia tão, tão distante, que nos levará das areias escaldantes de Tatooine até as ruas escuras da metrópole planetária Coruscant. Não faltarão ameaças em nosso caminho, de inescrupulosos caçadores de recompensa, passando por monstros comedores de carne humana até os temíveis e sombrios Sith, senhores dos segredos do lado negro da força.
A franquia Star Wars possui uma história sui generis, conhecida por muitos fãs, mas que precisa ser relembrada aqui para que melhor possamos atingir o nosso objetivo. Um fato dos mais importantes é que o roteirista e diretor George Lucas, o criador da franquia Star Wars, era leitor de Joseph Campbell, e escreveu o roteiro de seus seis filmes tomando por base os estudos de mitologia comparada de Campbell, sua noção de monomito e a estrutura da jornada do herói que ele abstrai da minuciosa e abrangente comparação de milhares de narrativas míticas das mais variadas tradições culturais. Lucas utilizou o esquema da jornada do herói como o molde para contar a sua história, e dar a ela, de maneira mais ou menos proposital, o caráter de mito. A tal ponto que a entrevista que tornou Campbell famoso com o grande público e que resultou na publicação do best seller “O Poder do Mito”, foi gravada no rancho Skywalker de propriedade de Lucas. Campbell até mesmo relata, de maneira jocosa, em um de seus seminários, que teve muita dificuldade para encontrar alguma editora que se dispusesse a publicar seu livro “O Herói de Mil Faces”, um dos editores, ao rejeitar o material perguntou a Joe Campbell “mas quem vai se ler isso”, ao relatar esse fato ele comenta em seguida de maneira irônica para a sua audiência que George Lucas leu seus livros e a partir deles escreveu o roteiro de Star Wars.
George Lucas foi um visionário em muitos sentidos, atualmente o uso do conhecimento desvelado pelos estudos de mitologia comparada de Campbell são corriqueiramente usados por roteiristas, mas creio que Lucas foi o pioneiro. Além disso, seu uso de efeitos especiais era algo tão inovador que nem mesmo os atores compreendiam bem o que estava acontecendo ali, o que irritava o diretor, conta-se que os atores mal puderam acreditar quando viram finalmente o resultado de seu trabalho acrescido dos efeitos da Industrial Light and Magic. Não apenas os atores não eram capazes de compreender ou acompanhar a visão de Lucas, os produtores não só não compreendiam, como eram completamente céticos quanto a possibilidade, mesmo que remota, do sucesso do filme. Quando ele foi exibido para os produtores e outras pessoas do meio, apenas Steven Spielberg deu um tapinha nas costas de Lucas e o elogiou, todos os demais vaticinaram o fracasso para a película. Curiosamente esse ceticismo e ignorância deixaram George Lucas bilionário, pois ele reteve os direitos sobre todos os personagens e os direitos de comercialização, e o estúdio ficou com a bilheteria. George Lucas praticamente reinventou o merchandinsig sobre filmes e transformou o universo Star Wars em uma poderosa franquia multimídia. Um dos mais recentes lances nesse enredo foi a venda dos direitos da franquia para a Disney e a promessa da realização de mais seis longa metragem.
Os jedis, a noção do poder da força e a filosofia associada à ordem jedi e suas práticas rapidamente se tornaram uma sensação, mas mais impressionante ainda é a longevidade da franquia, no mundo da Cultura Pop, feito de sucessos instantâneos e desaparecimentos repentinos, Star Wars persiste atraindo cada vez mais atenção e mais fãs. Reza a lenda que Francis Ford Coppola disse a Lucas que o aspecto religioso de Star Wars poderia lhe trazer grande poder, ele retrucou que não estava interessado nesse tipo de poder. Suas palavras, todavia foram proféticas, atualmente os “jedi” são considerados uma religião na Inglaterra, constando até mesmo em pesquisas demográficas realizadas pelo governo. De acordo com o jornal The Telegraph, no censo de 2013, 176.613 pessoas se declararam cavaleiros jedi, seguidores da religião jedi, o que a torna a mais popular das religiões da categoria “others” e no geral a sétima religião mais popular do Reino Unido. A religião jedi entrou para a pesquisa oficial do censo em 2001 após uma campanha nacional, e nesse ano 390.127 pessoas se identificaram como jedi, mesmo com esse número tendo caído pela metade, 0.31% das pessoas que afirmam ter alguma religião nessa pesquisa (http://www.telegraph.co.uk/news/religion/9737886/Jedi-religion-most-popular-alternative-faith.html).
Ao falar sobre os usos que George Lucas fez da obra de Campbell é preciso que se desfaça algumas confusões, pois a maneira como ele escreveu os roteiros baseados nas formulações de Campbell sobre os mitos e o estrondoso e duradouro sucesso que se seguiu pode suscitar a ideia, equivocada, que se pode por meios “artificiais” criar um símbolo, ou um mito, que se pode de maneira apenas consciente manejar essas imagens à vontade, e isso é falso. Para desfazer essa possível compreensão errônea, estimado leitor, façamos um rápido parêntesis para deixar claro em primeiro lugar o pensamento de Campbell no que diz respeito à estrutura dos mitos, e qual a compreensão da psicologia complexa sobre mito e símbolo.
Não é ocioso sublinhar que a jornada do herói como proposta por Campbell é fruto de um extensivo levantamento empírico e da comparação de milhares de narrativas míticas e a percepção de que existia um padrão (ele certamente não foi o único a perceber isso), seu trabalho foi influenciado também por autores como Jung, James Joyce, Spengler e Schopenhauer. Campbell descreve a jornada do herói em detalhes minuciosos em seu livro “The Hero with a Thousand Faces”, de maneira sucinta descreverei aqui as principais etapas discernidas por Campbell, bem como as considerações que ele mesmo fez sobre a então trilogia Star Wars. Segundo Campbell os temas que ele discerniu nos mitos podem igualmente aparecer de maneira espontânea na literatura, ou mesmo na elaboração do enredo da vida de uma pessoa. Para ele a história básica da jornada do herói consiste em abrir mão do lugar de onde você vive, entrar na esfera da aventura, chegar a algum tipo de percepção simbólica (recuperar o potencial não realizado em você) e, por fim, retornar à esfera da vida normal. O sentido dessa jornada é a reintrodução desse potencial no mundo, devolver esse tesouro do saber e reintegrá-lo à vida racional. Tudo começa saindo de onde se encontra, em muitos mitos existe um chamado à aventura, assim surge o motivo para se penetrar na esfera da aventura, que é sempre composta de poderes desconhecidos. Ao sair da esfera conhecida e se aproximar dos perigos e provações do grande desconhecido, ocorre à travessia do limiar, para Campbell a ideia da jornada do herói é penetrar num mundo onde as regras dualistas não se aplicam. A jornada do herói através do limiar é a jornada para superar os pares de opostos, na qual se vai além do bem e do mal. A travessia do limiar é repleta de perigos que são representados em temas que se repetem constantemente como enfrentar a contraparte sombria que pode tomar a forma de um dragão ou um inimigo maligno, o esquartejamento (como nas jornadas xamânicas), ser pregado numa cruz, ou engolido por uma baleia. Após atravessar o limiar o herói se encontra com auxiliares mágicos que serão prestativos, depois de receber auxílio mágico o herói é submentido a uma série de provas cada vez mais ameaçadores. Essas provas simbolizam a auto-realização, um processo de iniciação nos mistérios da vida. Ao todo são 4 os tipos de obstáculos que podem ser encontrados ao longo do caminho. O primeiro é o símbolo do encontro erótico com a deusa. O segundo tipo de provação é justamente o que nos interessa mais de perto para compreender a jornada de Darth Vader e Luke Skywalker, a reconciliação com o pai, essa provação é um rito de passagem masculino. O filho se encontra separado do pai e tem levado uma vida inadequada a sua herança verdadeira, para se encontrar o pai é preciso atravessar o abismo da mãe. Nesse tipo de história a mulher pode surgir tanto como guia quanto como sedutora que obstrui o caminho. Citando o próprio Campbell.
No filme de George Lucas O retorno de Jedi, Luke Skywalker arrisca a vida para redimir a vida do pai, Darth Vader – esse é o tema da reconciliação com o pai representado em grande escala: o filho salva o pai e o pai salva o filho. (Campbell, 2008, p.142).
A terceira possibilidade ao longo do caminho é a apoteose, em que o herói percebe que na realidade ele mesmo é aquilo que está buscando, como na história de Sidarta Gautama. O quarto tipo de realização é um pouco diferente, ao invés de uma progressão ampla há uma arremetida violenta e a posse da dádiva desejada, sendo o exemplo mais conhecido o roubo do fogo pelo titã Prometeu.  Finalmente, ocorre uma vez mais o cruzamento da linha divisória, o retorno através do limiar, a crise da descida é a mesma crise do retorno. Existem 3 reações possíveis quando se cruza o limiar de retorno trazendo sua dádiva para o mundo. A primeira é não haver acolhida alguma, a segunda é dizer “o que eles querem?”, ao invés de dar a comunidade o que ela precisa, a sua dádiva, e que a comunidade talvez nem saiba que precisa dela para se renovar, você dá a eles o que eles já possuem. A terceira possibilidade é encontrar algum aspecto que possa ser compreendido, essa é a atitude pedagógica. A primeira possibilidade é a recusa do retorno, a segunda é o retorno nos termos escolhidos pela sociedade, e a terceira é a atitude pedagógica. Em linhas gerais esse é o esquema percebido por Campbell e que é seguido por todos os mitos e lendas humanos, é interessante notar a similaridade do que Campbell chama, a partir de Joyce, de monomito, com aquilo que Jung denomina de arquétipo, não é a toa que posteriormente o trabalho de Jung teve uma influência tão grande sobre Campbell, esse fato é ainda mais oportuno em virtude da inacreditável incompreensão que paira sobre esse conceito.
O arquétipo é uma predisposição, atemporal, acausal para um comportamento humano típico. São caminhos virtuais herdados, a condição de todo o psiquismo humano. Aquilo que em mitologia comparada ou história das religiões se chama de “tema mítico” (a dupla filiação, o duplo nascimento, o nascimento virginal, a fuga mágica etc) é o que Jung chamou de arquétipo, mesmo o esquema abstraído por Campbell da jornada do herói a partir das similaridades entre as mais variadas histórias míticas é, na concepção da psicologia complexa, um arquétipo. Como o exemplo do estudo de Campbell demonstra, o arquétipo não é um dado fenomênico, nem mesmo é um dado psíquico, para Jung arquétipo e instinto são psicóides, sua existência é abstraída do fenômeno a partir da comparação das similaridades universalmente existentes entre mitos, contos de fadas, sonhos e aspectos psicopatológicos individuais. Certa feita Jung comparou o arquétipo a classificação botânica para rebater a crítica de que não se podia achar arquétipos nos fenômenos, pois não existe na natureza uma classificação botânica, mas isso não impede o especialista de perceber similaridades e criar categorias para agrupar os fenômenos.
A crítica contentou-se em afirmar que tais arquétipos não existem. E não existem mesmo assim como não existe na natureza um sistema botânico! Mas será que por isso vamos negar a existência de famílias de plantas naturais? Ou será que vamos contestar a ocorrência e continua repetição de certas semelhanças morfológicas e funcionais? Com as formas típicas do inconsciente, trata-se de algo em princípio muito semelhante. (Jung, 2003, p.184).
O inconsciente coletivo não tem sua origem em experiências pessoais, ele é inato, e não é de natureza individual, mas universal, e constitui um substrato comum de natureza psíquica suprapessoal. O próprio Jung reconhece que ele não foi o primeiro a notar essas similaridades universais e suprapessoais no fenômeno da cultura e no fenômeno individual, Adolf Bastian, por exemplo, chegou à mesma constatação e cunhou os termos Elementargedanke (ideias elementares) e Volkergedanke (ideias culturais), pois percebia em diversas culturas o mesmo padrão representado por imagens diferentes, mas funcionalmente idênticas. Ou seja, o grande mal coletivo pode, nas florestas europeias, ser representado por um lobo, e na polinésia por um tubarão, mas conotam a mesma vivência anímica apesar de denotativamente serem diversos.
Eu compreendo o inconsciente muito mais como uma psique impessoal comum a todos os seres humanos, apesar de ela expressar-se através de uma consciência pessoal. Embora todos respirem, a respiração não é um fenômeno a ser interpretado de modo pessoal. As imagens míticas pertencem à estrutura do inconsciente e constituem uma posse impessoal, que mais possui a maioria das pessoas do que é por eles possuída. (Jung, 2003, p.187).
Para Jung, o arquétipo é essencialmente um conteúdo inconsciente que se modifica por meio da conscientização e percepção, adquirindo nuanças que variam de acordo com a consciência individual no qual se manifestam. O termo manifestação é de suma importância, pois o psiquismo não é meramente um arbítrio, existindo para além da consciência e seus conteúdos, um psiquismo objetivo que “se manifesta” a consciência sem ter sido por ela produzido e não podendo ser por ela subjugado ou controlado, possuindo a característica de ser numinoso. Nesse sentido sobre o arquétipo se pode dizer, como se diz em relação a deus na teologia, que ele é essencialmente indizível, indisponível (não se pode dispor dele a bel-prazer) e não é manipulável.
Creio que é preciso, antes de adentramos mais em nosso tema, nas trevas do lado negro que a tudo obscurecem, esclarecer um pouco o uso da obra de Campbell por George Lucas, pois como já foi exposto acima, o arquétipo não é manipulável, e o símbolo, o fenômeno psíquico organizado arquetipicamente, não é, e nem pode ser, uma invenção consciente. É certo que o uso do esquema observado por Campbell, bem como a inspiração advinda de sua obra, foram fundamentais para o sucesso estrondoso de Star Wars, mas nem Lucas e nem ninguém pode, de maneira voluntariosa, criar um símbolo. Isso pode parecer contraditório em virtude do valor simbólico que evidentemente a saga intergaláctica possui, o que nos leva a mais um parêntese, a compreensão de símbolo. O que precisa ficar claro desde o início acerca do símbolo, seja ele individual ou social é que ele não procede exclusivamente da consciência ou do inconsciente, mas surge da colaboração igual de ambos e é sempre de natureza extremamente complexa, composto de dados de todas as funções psíquicas o que o torna altamente paradoxal, não sendo de natureza racional e nem irracional, falando de maneira eloquente a ambas. O ponto que desejo sublinhar aqui, é que o símbolo possui uma parte que é inacessível à razão, pois é composto de dados racionais e irracionais. Não é possível, a partir apenas da consciência (tornando o esquema de Campbell uma receita de bolo) criar um símbolo, isso é completamente impossível, não se pode gestar um símbolo a partir apenas das relações conhecidas, dessa forma lhe faltará o elemento indispensável de irracionalidade. Sem isso o símbolo não é capaz de operacionalizar a participação do inconsciente na consciência e não possuirá seu efeito gerador e promotor de vida. Mas o que é o símbolo? O símbolo é algo que representa o indizível de forma insuperável.
Aos futuros roteiristas que desejam se inspirar na obra de Campbell, isso certamente não será tempo perdido, mas a criação de uma obra de arte genuína depende, em larga medida, da graça divina. Depende de que as forças que habitam a sua alma, em virtude da atitude de sua consciência e de uma larga dose de inteligência, sensibilidade, imaginação e não pouca designação, se disponham a colaborar com seu empreendimento criativo. Alguém que jamais tenha lido Campbell, mas que possui essas qualidades, ou melhor, que seja possuído por elas, certamente produzirá algo de valor, principalmente se não for muito neurótico, por outro lado, mesmo alguém que tenha lido toda a obra de Campbell, se faltarem essas qualidades, principalmente aquelas que são deo concedente, criará apenas algo banal. A inspiração é um fenômeno eo ipso, ao qual o indivíduo criativo se curva, e não o contrário. Infelizmente, em nosso universo materialista e “humanista”, não estamos mais acostumados a nos curvarmos as forças misteriosas que habitam a nossa alma, ou a ouvir a voz do nosso coração, aqueles que conseguem, ao traduzir o que se passa em seu próprio inconsciente, traduzem igualmente o inconsciente da comunidade em que vivem, ou mesmo, são capazes de dizer sobre a alma de toda uma época, e, em casos mais raros, falar daquilo que é grave e constante no sofrimento humano.
Passemos ao fenômeno que vamos tratar e sua descrição. Vader surge pela primeira vez no episódio IV (que é o primeiro em termos cronológicos, não internos a série, mas na cronologia da estreia cinematográfica), já o vemos como o vilão terrível, inumano e com poderes sombrios, especialmente sua habilidade de sufocar as pessoas usando a força. Esse primeiro filme, bem como os que se seguiram são a história de Luke, da restauração da ordem jedi, da redenção de Vader (Anakin), e queda do império galáctico e de seu ditador Darth Sidious. Vai nos interessar mais de perto, todavia, os três primeiros episódios, bem como a série animada The Clone Wars, que narram à ascensão e queda de Anakin Skywalker, mestre jedi e general das guerras clones. Anakin é encontrado aos nove anos de idade no remoto planeta Tatoine pelo mestre jedi Qui-Gon Jin e seu aprendiz Obi-Wan Kenobi. Qui-Gon pôde sentir que a força era poderosa no garoto, e a mãe os informou que Anakin não tivera pai (o tema do nascimento virginal), e sua contagem de Midi-chlorian no sangue superava até mesmo a de Yoda (os micro-organismos midiclorians são seres simbiontes, similares as mitocôndrias e que são o lado material da força), usando de um estratagema e uma ajudinha da telecinese dos jedis ele conseguiu comprar o garoto, que era um escravo. Mesmo após a morte de Qui-Gon Jin Anakin foi treinado para ser um jedi por Obi-Wan. Ao ser resgatado da escravidão Anakin, então contando nove anos de idade, conheceu e se apaixonou por Padmé Amidala, rainha eleita do planeta Naboo, então com quinze anos de idade.
Talvez não seja ocioso fazer um parêntese para falar dos Midi-chlorian e sobre a força no universo de Star Wars, mas voltarei a esse tópico posteriormente. A primeira referência à força nos filmes é feita por Obi-Wan Kenobi a Luke e ele se refere a ela como um campo de energia criado por todas as coisas vivas, que circunda e penetra os seres vivos e mantém a galáxia coesa. Nos três primeiros filmes (episódios IV, V e VI) não é feita qualquer menção a uma base orgânica e material para a força na forma dos micro-organismos inteligentes, era algo mais similar à noção chinesa de Tao, existia apenas uma menção leve de que o talento com a força era algo genético (Luke e Leia, ambos filhos de Anakin possuíam talento para serem poderosos com a força). A força era algo mais espiritual ou “metafísico”, a partir do episódio I (confuso né?) iniciam-se as menções a um aspecto “palpável” da força na forma dos Midi-chlorian, existindo até mesmo um exame de sangue que permitia descobrir a contagem de Midi-chlorian por célula, que podia variar do nível humano médio de 2.500 Midi-chlorian por célula, até a maior contagem descoberta que foi a de Anakin (supostamente gerado pelos Midi-chlorian) de 20.000 Midi-chlorian por célula. A contagem de Midi-chlorian é diretamente proporcional ao poder com a força, quanto mais células simbióticas inteligentes, mais poderoso com a força. Vemos algo similar no recente filme de James Cameron “Avatar”, em que a hipótese de um organismo planetário, similar às crenças dos povos nativos das Américas também existia no planeta Pandora, mas como é dito expressamente por uma das personagens do filme, era real em pandora, pois podia ser medida e verificada como uma ligação eletroquímica entre os seres vivos do planeta. Passa-se em Star Wars de um conceito mais “espiritualizado”, claramente baseado em conceitos orientais (como noções budistas e taoistas), para um materialismo mais ao gosto ocidental. Jung, em conferência publicada pela primeira vez em 1931, intitulada “Entschleierung der Seele” (desvelando a alma), publicada nas obras completas com o título de “O problema fundamental da psicologia contemporânea”, título fortuito para o que estou discutindo aqui, assevera:
Enquanto a idade média, a Antiguidade clássica e mesmo a humanidade como inteira desde seus primórdios acreditavam na existência de uma alma substancial, a segunda metade do século XIX viu surgir uma psicologia “sem alma”. Sob a influência do materialismo científico, tudo o que não podia ser visto com os olhos ou apalpado com as mãos foi posto em dúvida, ou pior. Ridicularizado, porque suspeito de metafísica. Só era “científico” e, por conseguinte, aceito como verdadeiro, o que era reconhecidamente material ou podia ser deduzido a partir de causas acessíveis aos sentidos. (Jung, 1986, p.283).
O que Jung discutia em 1931, sobre a “onda irracional da preferência sentimental e universal pelo mundo físico”, vemos uma vez mais como um fenômeno da cultura essa “onda”, quando em 1999, 68 anos após essa conferência ter sido proferida por Jung, estreia o episódio I “A Ameaça Fantasma”, o conceito mais espiritualizado da força da trilogia original é substituído por uma derivação material, o que transforma a força, cum grano salis, em um epifenômeno de causas materiais. O que Jung afiança é que tanto o espírito quanto a matéria não são mais do que símbolos utilizados para expressar fatores desconhecidos. A metafísica do espírito ter sido suplantada pela metafísica da matéria é uma mera prestidigitação em termos unicamente intelectuais, todavia, psicologicamente falando, é uma revolução da visão de mundo (weltanschauung), pois todo o valor se fundamenta exclusivamente na pretensa realidade dos fatos, mas ambas as explicações (materialista ou espiritualista) são “igualmente lógicas, igualmente metafísicas, igualmente arbitrárias e igualmente simbólicas”. O que vemos com essa mudança de tom da primeira trilogia para a segunda é uma vez mais a “onda” de que falava Jung 68 anos atrás e que permanece cada vez mais atual. Retornando a história de Anakin.
Anos depois Anakin reencontrou Amidala ao ser indicado, junto de seu mestre Obi-Wan, para ser seu guarda costas, Padmé era agora uma senadora da republica, representante do planeta Naboo, e vinha sofrendo ameaças. Naboo foi a peça política chave para a ascensão de Palpatine ao poder. De início, quando Anakin ainda tinha apenas nove anos, Palpatine era o senador de Naboo e secretamente lord Sith Darth Sidious, graças aos desdobramentos políticos do bloqueio realizado pela federação de comércio ao seu planeta natal, Naboo, ele foi eleito Supremo Chanceler da república, o primeiro passo em direção ao seu objetivo de um império galáctico. Quando Anakin reencontrou Padmé estava sendo votado no senado a criação de um exército da república para auxiliar os jedis, pois estava surgindo uma ameaça separatista comandada pelo ex membro da ordem jedi o conde Dooku, na realidade o aprendiz de Sidious, Darth Tyranus. Ao investigar os ataques a Padmé Bem Kenobi é capturado pelos separatistas que estão produzindo um exército de droides e o mesmo Ben descobre que a república já conta com um exército secreto de clones. Anankin estava em Tatooine, junto de Padmé, pois tentara sem sucesso resgatar sua mãe que fora sequestrada pelo povo da areia. Num surto de fúria Anakin matou todos eles como vingança, o que começou seu processo de queda em direção ao lado negro. Quando tentou resgatar Bem Kenobi tanto Anakin quanto Padmé foram capturados e nesse momento a senadora declara seu amor ao jedi. Acontece a primeira batalha das guerras clônicas quando os jedis acuados pelos droids separatistas são ajudados pelos soldados e Anakin e Kenobi lutam contra Dooku, nessa batalha a arrogância de Anakin lhe custa sua mão.
Durantes os anos que se seguiram Anakin se tornou general do exército da república, um renomado herói das guerras clones e o maior piloto de caças da galáxia. Seu poder como jedi cresceu de maneira assombrosa, mas ele continuava atormentado por visões, dessa vez de Padmé morrendo. Mesmo tendo sido aconselhado por Yoda a se libertar desses sentimentos de apego, Anakin não consegue e Palpatine utiliza o medo e apego para seduzi-lo para o lado negro, com a promessa de poder sobre a vida e a morte para salvar Padmé. Mesmo dividido, Anakin acaba sendo seduzido pelo lado negro e suas próprias ações culminam com a morte de Padmé e a destruição impiedosa da ordem jedi. Em uma última luta com seu mestre Kenobi, mesmo com o poder do lado sombrio, Anakin perde um braço e uma perna e cai num poço de lava, ficando entre a vida e a morte. Palpatine recupera seu corpo arrasado usando próteses biônicas e uma armadura típica dos Sith e estava morto então o jedi Anakin e nascia o lorde sith Darth Vader.
Para Campbell o filme tem a ver com uma operação de princípios, o poder do mal em Star Wars não está identificado com qualquer uma de nossas nações, é um poder abstrato que representa um princípio. As máscaras e monstros de Star Wars representam a verdadeira monstruosidade do mundo moderno: a massificação. Darth Vader é a personificação dessa força monstruosa da modernidade, quando, ao final da trilogia original, sua mascara é removida (ele nem mesmo é capaz de sobreviver sem sua armadura) se vê um rosto informe, indiferenciado, diferente da máscara ameaçadora e monstruosa, tem-se um rosto digno de pena.
Darth Vader não desenvolveu a própria humanidade. É um robô. É um burocrata, vive não nos seus próprios termos, mas nos termos de um sistema imposto. Este é o perigo que hoje enfrentamos, como ameaça às nossas vidas. O sistema vai conseguir achatá-lo e negar a sua própria humanidade, ou você conseguirá utilizar se dele para atingir propósitos humanos? Como se relacionar com o sistema de modo a não o ficar servindo compulsivamente? Não adianta tentar mudá-lo em função das suas concepções ou das minhas. O momento histórico subjacente a ele é grandioso demais para que algo realmente significativo resulte desse tipo de ação. O que é preciso é aprender a viver no tempo que nos coube viver, como verdadeiros seres humanos. Isso é o que vale, e pode ser feito. (Campbell, 1990, p.158, grifo meu).
Para Campbell, não viver em seus próprios termos é a terra devastada, esse tema mítico é a imagem central das novelas do Graal, quando o rei está incompleto a terra sofre, pois ele é o coração da terra. A terra devastada é o oposto da bem aventurança (bliss), que Campbell define como aquela sensação profunda de estar presente, de fazer o que você deve decididamente fazer para ser você mesmo. Na saga do Graal, os cavaleiros estavam sentados esperando por uma aventura quando o Graal surgiu para eles, mas coberto por um véu, Gawain propôs o voto de que todos saíssem em busca do Graal para vê-lo em todo o seu esplendor, desvelado. Ao se aproximarem da floresta escura, onde estavam prestes a adentrar a esfera da aventura, resolveram que cada um deveria seguir sozinho e “cada qual entrou na floresta, onde fosse mais escuro e não houvesse caminho nem trilha”. Cada ser humano é um fenômeno único e irrepetível, e o desafio é encontrar o próprio caminho da bem aventurança, se seguir o caminho de outrem não realizará seu potencial. Vader vive segundo os ditames de um sistema opressivo, não como um ser singular, mas como mera engrenagem de um sistema desumano, de uma cruel e totalitária ditadura que esmaga o indivíduo, onde a vida resseca, o que é simbolizado pelo estado de Anakin por detrás da máscara (em outro de meus textos tratei de maneira mais pormenorizada o problema das máscaras e remeto o leitor a ele). Seguir a sua bem aventurança consiste em viver a partir de seu próprio centro, o ponto imóvel, mas para tanto é preciso matar o dragão, nesse dragão há muitas escamas e em cada uma delas está escrito “Tu Deves”, esse é o significado mais elevado da jornada do herói, seguir o que lhe é sublime, viver a aventura individual. O herói ao matar o dragão se torna “quasi modu genitus”, ao seguir a sua bem aventurança ele é capaz de se livrar do ontem. Anakin tropeça e fracassa ao não ser capaz de desapegar-se, de viver com divina compostura, ele vive assombrado pela mãe que deixou em Tatooine, e repete o mesmo padrão com Padmé, e isso o destrói, com isso ele estagna, sua vida resseca e ele vive o inferno, pois o inferno é a vida a ressecar.
Jung define individuo no sentido de um “individuum” psicológico, ou seja, um todo, uma unidade indivisível. É fácil, ao se falar em indivíduo, ou aventura individual, confundir essas palavras com o individualismo que grassa em nossa sociedade, e que é bem representado na saga Star Wars pelo imperador Palatine, Darth Sidious, e de maneira mais ampla pelo “lado negro” (Dark Side). Há aqui uma diferença importante, em termos psicológicos, entre individuo, e o processo que gera um indivíduo, chamado por Jung de “individuação”, e o individualismo. Este, o individualismo, é uma atitude inadequada e impertinente, que se revela oca e inconsistente. Campbell, ao falar da jornada do herói enfatiza sempre e de novo o mesmo ponto “o privilégio de uma existência é ser quem você é”. A máscara de Vader esconde quem ele é, e sua personalidade definha e murcha sob a máscara do “homem máquina”, em termos psicológicos é disso que estamos falando aqui, Vader representa “a recusa ao chamado”, ele corporifica a tragédia daqueles em que a voz interior foi substituída pela voz do grupo social, e passam a ser regidos pelas necessidades da coletividade. A voz de seu coração, de seu espírito, tornou-se confusa e imprecisa, mais e mais inconsciente e Vader é um exemplo de alguém que se viu privado de sua própria totalidade e foi diluído na totalidade do grupo, na grande massa indeterminada e inconsciente.
Vader igualmente representa o destino daqueles que ousaram se aventurar a se afastar da massa gregária e se lançaram ao desafio de ser ele mesmo e falhou, mas ao invés de encontrar a morte física, sua morte foi ainda pior. Na realidade, na morte ele encontrou redenção quando ao se rebelar contra a “razão de estado” personificada por Darth Sidious ele se sacrificou para salvar seu filho Luke, nesse momento sua escolha, sua decisão moral se opôs a necessidade coletiva, as necessidades do império galáctico, e como Sócrates na morte ele reafirmou ser quem ele era de maneira radical. A personalidade, segundo Jung, é justamente aquilo que se opõe ao homem normal que é padronizado e promovido pela massificação. A personalidade é uma totalidade dotada de decisão, resistência e força e para existir necessita de determinação, inteireza e maturidade. O que vemos com tristeza em nosso tempo é que mais e mais pessoas estão inconscientes de sua condição de adultos, ou, o que é ainda pior, vivem uma “inconsciência artificial”, pois buscam conscientemente esquivar-se dela. A estrutura de Star Wars é o de uma peça em 3 atos: o chamado à aventura, o caminho das provações e a provação final, com a reconciliação com o pai e o retorno através do limiar. Luke, em O Império Contra Ataca, confronta-se em Dagobah com uma figura que ele acredita ser Vader, mas ao matar essa figura com seu sabre de luz, vê por trás da máscara do homem mecânico o seu próprio rosto. Vader é uma possibilidade humana, e uma nada distante de nós em nosso atual contexto social e cultural, nosso rosto também está por trás da máscara do homem máquina, e Yoda foi claro com Luke, se ele não pudesse enfrentar seu Pai, Darth Vader, seu treinamento jamais estaria completo.
Como aquele que sucumbiu ao individualismo e a massa gregária, Vader também é uma personificação do homem normal estatístico, pois a massa se apega a tudo o que é coletivo: temores, convicções, leis, métodos. Em virtude de seu apego Vader abdicou de ser quem ele realmente era, abdicou da aventura de ser um jedi, e no fim, seu apego foi a causa eficiente de sua tragédia e da morte da mulher que amava. Ele deixou sua senda individual e passou a trilhar a senda traçada para ele por Palpatine, mas todo e qualquer outro caminho, que não seja a senda na floresta escura onde não existem pegadas a seguir são convenções de natureza, moral, social, política, filosófica e religiosa. A personalidade, segundo Jung, é o melhor desenvolvimento possível de um indivíduo determinado, e isso requer o homem como um todo. Personalidade é a obra a que se chega pela máxima coragem de viver e apenas pela nossa ação é que se torna manifesto quem somos de verdade. O homem normal é algo bidimensional e de uma profunda irrealidade, a noção de normal e normalidade se baseia na recorrência estatística e num valor médio abstrato, o que temos por meio do método estatístico é um termo médio ideal que dificilmente corresponde à realidade empírica, a realidade absoluta se caracteriza pela irregularidade.
Uma formação em princípio científica baseia-se, essencialmente, em verdades científicas e em conhecimentos abstratos que transmitem uma cosmovisão irreal, embora racional, em que o indivíduo, como fenômeno marginal, não desempenha nenhum papel. Mas o indivíduo, como um dado irracional, é o verdadeiro portador da realidade, é o homem concreto em oposição ao homem ideal ou “normal” irreal, ao qual se referem as teses científicas. (Jung, 2011, p.16).
De acordo com Campbell, a história de Star Wars tem a ver com os poderes da vida, conforme sejam plenamente realizados ou cerceados pela ação do homem. O poder do império galáctico de Darth Sidious se baseia na intenção de conquistar e comandar, um Sith é basicamente um individualista e um arrivista, alguém seduzido pelo poder, que busca um desenvolvimento que no fundo é um artificialismo e uma contrafação, por isso sua vida seca. O uso dos poderes do lado negro devasta o corpo, após a luta com Mace Windu o corpo e o rosto de Palpatine ficaram completamente deformados e ele não pôde mais se esconder a olhos vistos. O que Palpatine cria está bem representado por seu exército de clones, não pode existir maior grau de massificação do que um exército onde todos são idênticos, não apenas com as mesmas roupas, mas geneticamente idênticos, ele cria um sistema político que não tem lugar para o indivíduo e para a diversidade que daí advém. Todo sistema político autoritário se baseia na ignorância, inconsciência, em preconceitos afetivos e fantasias de desejos impulsivos. Nesse ambiente seus cidadãos são privados de sua capacidade de reflexão crítica e ela é substituída por slogans e desejos quiméricos, numa espécie de possessão coletiva. Nosso grau de liberdade empírica é proporcional a nosso grau de consciência, e em um governo autoritário o que grassa e é incentivado é esse estado inconsciente primordial em que as epidemias psíquicas e movimentos de massa podem se espalhar de maneira incendiária.
Como é possível surgir uma monstruosidade como o império galáctico de Palpatine? Quando o indivíduo se massifica se tornando obsoleto, e o exemplo mais vívido disso em Star Wars é Vader, Anakin perde até mesmo a sua face, substituída por uma máscara. Quando o fator individual é reprimido, e o indivíduo passa a não ser mais do que mera recorrência estatística, mera unidade anônima e sem face, surge à massa e a culminância desse processo macabro é o conceito abstrato de Estado enquanto princípio de realidade política. O que acontece então, de maneira inelutável, é que a responsabilidade moral, que é indispensável para o desenvolvimento da personalidade, seja suplantada e substituída pela razão de estado, que é imposta de fora para dentro do homem. Nesse caso a decisão moral é retirada do indivíduo, visto agora como unidade social, e todas as decisões importantes passam a ser tomadas pelo estado para satisfazer a massa. Em uma situação como essa, poderíamos nos perguntar se os líderes e ditadores, como Palpatine são eles as personalidades que realmente decidem e que se escondem por trás da razão de estado, todavia, como o filme nos mostra de maneira extremamente plástica, os dirigentes do império galáctico, Darth Sidious e Darth Vader, são escravos de suas próprias ficções, incapazes de não se identificar com a doutrina de estado. A necessidade de um líder surge do desejo compensatório da massa, caracterizada pela sua caótica falta de identidade, e o líder que surge nesse ambiente, como é o caso de Sidious, é uma vítima de uma consciência do eu inflada. Darth Sidious deseja nada menos que dominar toda a galáxia e a imortalidade, além do poder de obliterar mundos representado pela estrela da morte.
O oposto do império galáctico e da arrogância dos Sith é a maneira como os jedi procuram um relacionamento individual com a força, como algo que lhes fala de sua intimidade, a voz de seu coração e que lhe traz justamente o contraponto a massificação. Luke, ao ser guiado por Bem Kenobi e Yoda para ser capaz de adquirir um relacionamento individual com essa voz interior, torna-se o contraponto a massificação que transformou seu pai em um robô. É sumamente interessante que o lado negro seja energizado pelo medo e a raiva, e que esses sentimentos sejam utilizados pelo imperador para seduzir Luke para o lado sombrio, só podemos agir com liberdade e decisão moral quando agimos com consciência, de outra forma não passamos de joguetes indefesos do automatismo do inconsciente e ao pensar na relação do lado negro com esses afetos negativos me veem a mente imediatamente as palavras de Jung em seu curto e decisivo ensaio “Presente e Futuro”.
Uma argumentação racional é apenas possível e profícua quando as emoções provocadas por alguma situação não ultrapassam determinado ponto crítico. Pois quando a temperatura afetiva se eleva para além desse nível, a razão perde sua possibilidade efetiva surgindo em seu lugar slogans e desejos quiméricos, isto é, uma espécie de possessão coletiva que, progressivamente, conduz a uma epidemia psíquica (Jung, 2011, p.12).
O desenvolvimento que parece existir nos Sith não passa de individualismo, pois o desenvolvimento da personalidade não obedece a nenhum desejo e a nenhuma ordem, mas apenas a necessidade, e o que vemos no caso de Palpatine não passa de uma usurpação contrária a natureza, um desejo egoísta por poder e uma consciência do eu inflada e prisioneira de suas próprias ficções. A terra devastada é o “lugar” onde você não pode ser você mesmo, ou fazer aquilo que decididamente precisa fazer para ser você mesmo, ao contrário, você só pode fazer aquilo que outros ordenam, Vader se encontra subjugado a uma razão de estado que substituiu completamente seu juízo individual, ele não passa de uma função de uma sociedade, do império galáctico, que se torna dessa maneira, no lugar do indivíduo, o único portador real da vida, mesmo não passando de uma ideia hipostasiada. Com todo o seu poder e terror, Vader não passa de um homem máquina que vive o inferno de testemunhar a sua vida a ressecar.

quinta-feira, 2 de maio de 2013

O Facebook e os Babacas


É interessante notar como em muitos casos as pessoas ativamente procuram evitar que em suas páginas nas redes sociais existam babacas, ou mesmo, para utilizar um termo mais ameno, pessoas de opinião ou gostos diversos. Basta uma discordância, ou mesmo uma fotografia que fira um pouco suas sensibilidades, uma suposta indireta, para a pessoa ser imediatamente enviada para o limbo, para a Sibéria virtual. Acaba-se cercado de gente que pensa igual, gosta das mesmas coisas, ou que simplesmente apenas observa a vida dos outros de maneira silenciosa, sem a existência de um contraditório.
Eu de minha parte, considero que é de suma importância ter um número considerável de babacas em minha página das redes sociais, assim eu não mergulho na ilusão narcisista de que o mundo é feito a minha imagem e semelhança. De que todas as pessoas defendem os direitos dos animais e são a favor do casamento gay. Não, na verdade, a maioria das pessoas é preconceituosa e detesta bichos, para dizer o mínimo. É importante perceber com clareza que se vive numa sociedade bastante heterogênea, seja isso bom ou mau, não importa é simplesmente assim que é. Quando se seleciona de maneira cuidadosa, quase cirúrgica, com quem você compartilha seus conteúdos virtuais, tudo vira um monólogo de assentimentos vazios ou “likes” hipócritas. Não amigos, eu advogo em favor dos babacas, daquelas pessoas que me irritam, que colocam coisas ofensivas, que discordam daquilo que eu considero sacrossanto, de fazem troça de meus valores mais basilares, esses são mais preciosos do que aqueles que parecem gostar exatamente das mesmas coisas que eu gosto.
Como tenho de lidar com um monte de gente babaca, eu tenho meus valores e ideais sempre testados, questionados, preciso constantemente revê-los, reavaliá-los, ponderá-los e não simplesmente acreditar que eu estou certo e pronto, numa fé cega baseada em ignorância e preconceito. Ao me deparar com a contraditória, mesmo as mais virulentas, sou posto a pensar, a contemplar meus valores e ideias e a traduzi-los em minha própria experiência de vida, e caso não consiga, tenho que ter a coragem de demoli-los e sobre seus escombros erigir algo mais sólido.
Sou um intelectual de esquerda, militante do partido dos trabalhadores, mas em minha página das redes sociais tenho diversas pessoas de direita, algumas até de extrema direita e não poucas que odeiam o meu partido. Elas me lembram constantemente que é obrigação de todo revolucionário fazer uma crítica permanente as suas ideias e da sua práxis, ao me irritar com seus excessos direitosos ou neoliberais eu me defronto com a tarefa urgente de pensar nos acertos e desacertos (que existem e não são poucos) da consecução prática de minha visão de mundo, cumprindo assim, de maneira cotidiana o meu ofício de intelectual público. Sem eles, sem os tais “babacas” e a irritação que me causam, e que me mobiliza, eu refletiria bem menos, pensaria bem menos.
Existem igualmente aqueles que não são babacas, mas que possuem opiniões que divergem das minhas e são capazes de argumentar e defender suas ideias, e isso é ainda mais instigante. A esses eu devo muito, o que intimida a maioria e leva a discussão a um lamentável excesso de sentimentalidade e afeto justamente para não ter que argumentar, é o que me anima a discutir, a possibilidade de contraditório! Pólemos pater pan, como diria ao velho Heráclito, sem isso estaríamos perdidos num solipsismo auto-erótico absolutamente infértil. Talvez as redes sociais não sejam o lugar ideal para se fazer os mais importantes debates, mas elas se tornaram nosso novo ágora, o local onde nos encontramos a todos, para onde convergimos e nos vemos, mesmo que apenas entre bits e bites. E lá estamos todos e porque não trocarmos ideias? Nos defrontarmos com a babaquice? Sem isso a vida é monótona. A diferença, mesmo a que nos ofende é simplesmente fundamental, sem a tolice como poderíamos reconhecer o brilhantismo e a inteligência?
O babaca, o verdadeiro babaca, ao primeiro sinal de desconforto, de uma leve diferença, do mais sutil sinal de contraditório, ele o exclui ou o ignora. Alguns poderiam dizer, erroneamente a meu ver, que o babaca só gosta de espelho. Isso é falso, o espelho nos mostra de maneira objetiva e sem rodeios quem somos, gordos ou magros, bonitos ou feios. E nessa vida, o único espelho que temos é o outro e o espelho mais preciso e genuíno é o do outro que nos irrita, e do qual desgostamos. É esse que nos mostra quem verdadeiramente somos, pois “Por que você repara no cisco que está no olho do seu irmão e não se dá conta da viga que está em seu próprio olho?” como está escrito em Mateus. Tudo aquilo que nos irrita e que nos desgosta tem a ver com a possibilidade de genuína compreensão de nós mesmos, do que realmente somos e não apenas do que acreditamos ser, pois há muito de nós mesmos que nos é estranho. Essa estranheza que nos diz respeito e essa inferioridade que nos irrita a vemos com clareza no próximo e essa clareza é diretamente proporcional as trevas que as encobrem e nós. O babaca odeia o espelho, pois ele se regozija na ignorância, mas devemos amar os babacas, pois eles são nossos mestres acerca de nós mesmos e não devemos evitá-los e nos esquivar, mas ao contrário devemos procurar conhecê-los.
Eu já fui excluído das redes sociais de muita gente, tenho o péssimo hábito de não ficar calado diante do que eu acho errado ou equivocado, e excluí de meu convívio virtual apenas uns poucos – um deles foi um fulano que postou a foto dos excrementos de sua cadela com a desculpa que se parecia com uma lapiseira, tudo tem limite – não sei se todos os que me excluíram são babacas, talvez não (um ou dois sem sombra de dúvida), mas estamos diante de uma possibilidade inaudita de comunicação e conhecimento nunca antes experimentada pelo gênero humano. Qualquer um de nós pode andar com a biblioteca de Alexandria no bolso, ou falar instantaneamente com o mundo inteiro, é uma janela que se abre para vermos mais longe, para além de nossos preconceitos e pusilanimidades, temos todas as ferramentas, precisamos apenas da disposição.