domingo, 21 de maio de 2017

Che Guevara e o debate público no Brasil - Palestra proferida no seminário Caminhos Junguianos




Jung em seu Tipos Psicológicos asseverou que assim como existia uma teoria sexual das neuroses se poderia elaborar uma teoria política da neurose – pois seu tempo era abalado por graves crises políticas. No mesmo livro, ele insinua que da mesma maneira que propôs tipos gerais de atitude e tipos funcionais, existiam igualmente tipos sociais – lembrando que um tipo é um modelo geral de atitude, o conceito de atitude (Einstellung) é uma disposição da psique de agir ou reagir em certa direção. Ter atitude é o mesmo que direção apriorística para algo determinado, quer ele seja representado ou não, e consiste sempre na presença de uma determinada constelação subjetiva que determina o agir nesta ou naquela direção prefixada. Atitude significa uma expectativa – e a expectativa sempre atua selecionando ou direcionando.

Voltando aos tipos sociais, podemos encontrar algo similar quando, por exemplo, falamos em liberais, neo-liberais e comunistas ou coxinhas e petralhas. Por detrás desses tipos sociais, é possível perceber os mesmo tipos gerais de atitude Introversão/extroversão, mas voltarei a isso posteriormente. Por certo vivemos em “tempos interessantes”, como na velha maldição chinesa, e por mais que seja uma era de angústias e incertezas há muito a ser feito e pensado. O que me faz recordar das palavras de outro comunista (como eu) Zizek que diante de tempos tão peculiares contesta a ideia de Marx em A Miséria da Filosofia de que precisamos agir e não pensar. Para Zizek estamos tão perdidos e desnorteados, que precisamos, agora mais do que nunca, pensar. E o que vou propor aqui, é uma reflexão psicológica sobre um evento micro, mas que eu considero exemplar para compreender essas atitudes opostas que se entrechocam e que nos ajudará – assim espero – a compreender um pouco melhor o espírito de nosso tempo.

Antes de começar propriamente, desculpem-me o excesso de prolegômenos, devo fazer algumas considerações que nos pouparão tempo e evitarão debates ociosos. Se eu fosse filósofo, com certeza seria um pragmático nos moldes de James – perdoem a minha pretensão – e é invocando o espírito da obra de James que teço esses comentários iniciais. A primeira coisa se ter em mente, é a advertência feita por Jung de que a psicologia “não trata das coisas como elas realmente são, mas apenas da maneira como são imaginadas”. Digo isso, pois espero que lembrem de que sou historiador e essa admoestação cala fundo em meu coração de historiador, pois a história é imaginação sobre aquilo que foi imaginado. Se alguém acreditar que ao tecer considerações históricas sobre Che estaríamos falando do homem real Che, eu teria que lhe repreender por sua ingenuidade. Da mesma maneira, ao tratarmos psicologicamente de Guevara, tratamos da maneira como ele é imaginado. Estando isso claro, restam duas coisas a serem ditas a guisa de exortação: o único critério de validez de uma hipótese em psicologia analítica é o seu valor heurístico, logo, se ao final da minha fala nossa compreensão não se ampliar, eu só terei usado a Psicologia de Jung como racionalismo aplicado, o que é algo que pode ser interessante, mas ocioso. Outra coisa, diante de nossa polarização, é importante a advertência de Marc Bloc, de que o historiador não é um juiz dos mortos passando vãos julgamentos, e que no afã de julgar perdemos a oportunidade de compreender – alguém deveria ter dito o mesmo aos psicólogos. Obrigado pela paciência, e agora passemos ao caso.

Os dois personagens desse bizarro debate público que me chamou a atenção nas redes sociais são Kim Katagiri e Jean Willys. O deputado do Psol tinha publicado em suas redes sociais uma foto, vestido como Che Guevara – de um ensaio na revista Rolling Stones. Katagiri aproveitou para alfinetar Willys e toda a esquerda ao apontar uma contradição. O deputado é o único gay assumido em todo o congresso nacional e a defesa dos direitos dos LGBT é uma de suas principais bandeiras. O ataque do “menino prodígio” da direita liberal foi acusar Che de homofóbico. Isso foi o estopim do debate entre os dois. O deputado não é ingênuo quanto às contradições da imagem de Che e afirmou depois em entrevista:

“Escolhi o Che pela intenção do jornalista de abordar meu mandato como uma cruzada, uma revolução, e também por ser um ícone pop que foi monopolizado por uma mentalidade machista. A própria revolução cubana sacrificou os homossexuais, mandou os homossexuais para o paredão, considerava-os antirrevolucionários - a revolução promoveu isso. Da mesma maneira que o Luiz Mott chamou a atenção para a sexualidade de Zumbi dos Palmares provocando a ira do movimento negro, eu quis provocar a esquerda brasileira posando de Che Guevara. Sem falar que o Che é uma figura pop mundial, fácil de identificar. O Harvey Milk, não. Ele é uma figura muito nossa, da comunidade LGBT.

Pareceu-me tão óbvio que ali o objetivo era o de provocar as “esquerdas” brasileiras no momento que a gente está para instalar a comissão da verdade e recuperar aquele passado da ditadura militar. O Che teve um papel fundamental no fortalecimento das esquerdas na clandestinidade. Por que não recuperar também a atuação dos gays naquele período, que está uma coisa silenciada? Como os aparelhos de resistência se comportaram em relação aos homossexuais? Será que eles herdaram a postura da revolução cubana de achar que homossexuais eram antirrevolucionários, como aconteceu, por exemplo, na Argentina, onde os aparelhos de resistência não queriam filiar homossexuais porque achavam que eles cediam facilmente à tortura.”

Katagiri aproveitou a contradição histórica de Che para desqualificar Jean, e toda a esquerda demonizando Guevara. Quero lembrar aqui de uma passagem em que Campbell falava das mitologias vivas usou o exemplo de Lincon, presidente americano durante a guerra de secessão, pois ele era um ótimo piadista e muito bem humorado. Depois de sua morte, toda boa piada era imediatamente associada a ele, porque essa característica marcante de sua personalidade funcionava como uma espécie de imã para agregar a sua imagem coisas relacionadas ao humor e a ironia, ampliando em muito aquilo que ele foi em vida. Tratamos aqui da imagem de Che, em que, por certo, importa o homem que ele foi e sua vida, mas a essa vida são atraídos elementos fantásticos que ampliam aquilo que ele foi e reverberam socialmente. Che é um ícone, literalmente falando, seu rosto está estampado em camisetas pelo mundo a fora, ele representa os ideias da revolução, e, para utilizar a definição de Zizek de comunismo: a ideia universal de uma liberdade humana radical. Mas para o quê aponta a crítica de Kataguiri? Para seu exato oposto, Guevara era um opressor, que usou da força e da coerção para excluir, matar e humilhar pessoas como Jean Willys, as mesmas que ele defende. Gostaria de lembrar novamente aos senhores, que estamos falando de uma imagem anímica, e que, como ensina Jung, tudo genuinamente anímico é como o rosto do deus Janus que olha simultaneamente para a direita e a esquerda, ou seja, é ambivalente.

Kataguiri se julga, ele mesmo, um defensor da liberdade. Ele é um liberal, como um conhecido meu, certa feita, disse sobre si mesmo e seus pares liberais “são amigos da razão e da liberdade”. O curioso é que, a se levar a sério a posição dos dois lados dessa contenda, não temos uma luta do bem contra o mal, mas uma luta do “bem VS bem”. Claramente, Jean acredita em seus ideais e se vê como alguém em uma cruzada com uma causa justa. Talvez o mesmo possa ser dito de Kataguiri – para a finalidade de nosso estudo eu vou partir dessa hipótese, de que ele também realmente crê no que defende. Ao menos no discurso, ambos defendem a liberdade – mas liberdade aqui significa coisas bem diversas, não sejamos ingênuos.

Percebam que a cada um dos dois corresponde uma atitude diversa em relação a Che, lembrem-se de que a atitude consiste sempre na presença de uma determinada constelação subjetiva que determina o agir nesta ou naquela direção prefixada, que representa uma expectativa que age selecionando. Kataguiri, como um bom anarco-capitalista, considera tudo o que a esquerda significa como algo ruim, errado a priori e negativo, sua atitude o leva a selecionar da imagem de Che justamente seu lado de homofobia e preconceito. O oposto pode ser dito de Jean, que percebe com clareza os aspectos negativos de Che, apesar dele se fixar em determinados aspectos, positivos – pois Guevara lutou contra a opressão, ele não ignora ou reprime completamente o outro lado da imagem de seu herói. A atitude ao selecionar também exclui uma parte do fenômeno e a consciência consegue abarcar apenas uma fração dele, tudo o mais se torna inconsciente. Quem quiser perceber como isso funciona, basta procurar na internet algum vídeo intitulado “fulano destrói sicrano”. Em ambas as atitudes, ou ao menos em seu aspecto de discurso, há elementos que poderiam ser acrescentados tanto a Kim quanto a Jean, mas aparentemente não o são. Perceba que ambos são vozes públicas representativas de dois grandes grupos opostos, isso é crucial.

Há uma clara oposição entre os dois atores desse drama peculiar, tanto na maneira como encaram o mundo e a si mesmos, quanto na ótica particular, nas lentes com as quais enxergam um ao outro. Determinados fatos psicológicos não são simplesmente um problema individual, mas ao contrário representam um grave problema para todos. Vejam que esse debate foi público e Jean, que já é corriqueiramente difamado, foi atacado de todos os lados por seus opositores que se utilizaram do argumento de Kataguiri. O mais curioso disso tudo, ao menos a mim me parece, é que em nada ajudou a sanar a miopia de ambos os lados – por favor, tenham em mente que eu possuo um viés, sou de esquerda e sempre tenho a impressão de que Kataguiri é mais estúpido do que Jean.

Jean é o diabo de Kataguiri, seu inimigo de estimação. A direita raivosa vê nele alguém que não luta por igualdade, mas que advoga por privilégios para os gays, alguém que deseja ardentemente acabar com os valores tradicionais e, por mais ridículo que pareça, há pessoas que realmente acreditam – especialmente pessoas ligadas a cultos neo-pentecostais – que Jean Willys é a ponta de lança de um movimento que pretende instalar uma “ditadura gayzista”. Jean enxerga no Liberal Kataguiri – o ideário liberal defende o livre mercado, a diminuição do estado, e as liberdades individuais e o individualismo burguês, bem como a democracia burguesa – como um proto-fascista de discurso violento e autoritário que faz tabula rasa da homofobia e do racismo – que o jovem Kim entende como vitimismo – e que defende que o feminismo é algo inútil, violento, que oprime os homens, vítimas do cruel feminismo.

O debate que se engendra entre os dois e seus respectivos seguidores é quase sempre raivoso e afetado, o que em geral significa a manifestação de uma inferioridade psíquica, e esse dado para nós é muito significativo. Parece haver nesse debate a manifestação de algo relativamente autônomo e de natureza emocional. Essa característica, da erupção descontrolada dos afetos leva a uma incapacidade de julgamento moral. Em geral, a manifestação explosiva das emoções é o sinal quase inequívoco de se ter tocado um desses traços obscuros de caráter que constitui as inferioridades do indivíduo. Esses traços obscuros são sempre projetados. No início de seu Reflexos da Alma, von Franz afiança que a projeção é um problema social premente, e que os esclarecimentos de nossas projeções ajudaria em muito a sociedade como um todo. Lembrando que a projeção é um fenômeno inconsciente e automático, que todo inconsciente é projetado, e ao ser projetado, apenas encontramos aqueles conteúdo subjetivos no objeto da projeção e acreditamos piamente que essas qualidades pertencem realmente ao objeto.

A causa da emoção parece provir de fora e não do próprio indivíduo. Essa percepção obstinada, que muitas vezes é obvia projeção para um observador externo, constitui um obstáculo que, via de regra, supera em muito a capacidade moral e intelectual do sujeito em questão. Como se pode perceber com clareza, a projeção é um isolamento do sujeito em relação ao mundo exterior, ao invés de uma relação real o que existe é uma relação ilusória. A percepção desse aspecto projetivo mostra a irracionalidade desse debate, o que significa que ele é imune à razão, por estar sob a influência de fatores obscuros emocionais autônomos inconscientes. Jung afirmou que a razão não é um bem inalienável dos homens, basta aumentar a temperatura dos afetos para que ela desapareça. Representa uma tarefa moral, todavia, para os que conseguem manter a racionalidade, fazer um contraponto a esse estado de coisas.

Assim, podemos supor, como hipótese de trabalho, que as explosões de emoção que emergem desse estranho debate, bem como o conteúdo selecionado pelas atitudes claramente opostas, indica a manifestação projetiva de partes inferiores da personalidade de ambas as partes. Podemos supor que ocorre aí uma projeção de sombra, e como Jung escreveu em seu Aion, quando não nos confrontamos com a sombra em nós mesmos, a realidade se torna um construto subjetivo, porém desconhecido, tratando-se de um problema social de extrema importância.

Estamos diante, todavia, de um problema mais grave do que parece a princípio, pois nossos dois antagonistas são representantes de grupos opostos que ilustram essas atitudes sociais de cunho político a que Jung aludiu em seu Tipos. A imagem de Che Guevara no debate político funciona como as palavras do teste de associação pensadas para gerar respostas emocionais, e por isso, permite que o pano de fundo psíquico inexpresso neste debate se manifeste de maneira mais flagrante. A sombra é um problema simultaneamente e de maneira flagrantemente paradoxal individual e coletivo. É preciso um espectador para se perceber a própria sombra, vivendo sozinho é praticamente impossível notar a própria sombra. Civilizações e nações possuem sombras, pois existem atitudes coletivas como as que aludi antes, os liberais no veem, a nós de esquerda, como iludidos e ingênuos, que acreditam em quimeras anacrônicas que jamais funcionaram em parte alguma e defensores de uma rebeldia juvenil, entretanto não é assim que nos vemos.  Sobre esse fato, von Franz nos diz:

[..] a sombra coletiva é particularmente ruim porque cada um apoia o outro em sua cegueira – é somente nas guerras e nos ódios entre nações que se revela algum aspecto da sombra coletiva. (2002, p.15).

Além das qualidades negativas ou incompatíveis que o indivíduo reprime em si mesmo, ele também leva consigo qualidades negativas do grupo a que pertence e das quais não tem consciência. Há que nos lembrarmos igualmente da psicologia de massas, no fundo é justamente disso que trato aqui, pois em pequenos grupos ou sozinhos certas características nossas se reduzem ou mesmo desaparecem, crescem repentinamente, porém, quando nos encontramos em grupos maiores. Jung costumava dizer que cem cabeças brilhantes juntas formavam uma só cabeça de bagre. Como diferenciar a sombra coletiva da sombra individual? De acordo com von Franz, se você só se sente ambicioso, por exemplo, quando está em um grupo, trata-se aí da sombra coletiva. Isso significa que, a pessoa cordada que numa manifestação pública é tomada de ódio ficando um pouco perturbada e isso acontece apenas quando está nessa situação, foi dominada mais pela sombra coletiva do que pela pessoal – tenho a impressão que o mesmo se dá nas redes sociais. Nosso noticiário político nos dá sobejos exemplos. Devemos no recordar de que o mal coletivo é personificado nos sistemas religiosos como demônio ou espíritos das trevas, não é debalde que a tradição nos ensina que o diabo pode nos possuir, pois, em termos práticos quando partes de nossa sombra não estão suficientemente integradas, essa é a porta aberta para a sombra coletiva, para o diabo (seja ele um demônio capitalista ou comunista).

Temos que nos lembrar de que uma apercepção ativa só é possível quando temos uma atitude, dessa maneira a atitude atua de forma selecionadora, nos permitindo apreender apenas uma parte do fenômeno – isso deveria nos deixar mais humildes. É por isso que um grupo olha para Che e vê um assassino homofóbico e o outro um revolucionário heroico. Por detrás dessas atitudes sociais que esbocei, permanece em ação os tipos gerais de atitude: introverssão/extroverssão. Eu tenho uma impressão que vou compartilhar com vocês, é menos do que uma hipótese: a esquerda possui uma atitude coletiva de extroversão e a direita de introversão. É claro que uma ideia de caráter tão geral é difícil de se comprovar, mas creio ter um certo valor heurístico, como quando Jung falava do caráter nacional francês como sentimental e dos alemães como intelectuais. Vejam, o caso do debate sobre o bolsa família, a esquerda se foca não no programa em si, ou na sua forma de execução, mas nas pessoas beneficiadas, em uma atitude empática, em que importam as pessoas. O debate levado a cabo pela direita é claramente, ao meu ver, abstrativo, a ideia é ruim e se discute os problemas abstratos do programa e se trata o mais rápido possível de anular os objetos e removê-los da equação, nesse caso, justamente as pessoas. Percebam o caráter abstrativo dos liberais quando toda a sua discussão pode ser reduzida a uma ideia revestida de enorme valor afetivo e que, por ela mesma, é capaz de sanar tudo: o livre mercado. O problema disso tudo, senhoras e senhores, é que como bem sabemos o que é valor para o introvertido é desvalor para o extrovertido e vice-versa. 

Assim, de um lado Che não passa de um representante da ideia nefasta do comunismo que se opõe ao livre mercado, logo é um vilão capaz de atrocidades, ele deve ser rapidamente destruído e tirado da equação, numa atitude abstrativa. De outro lado, ele é cultuado, sua vida é vista como corajosa e exemplar, suas aventuras e seu desejo de ajudar as pessoas são fonte de inspiração e estão em primeiro plano e não propriamente os ideais que ele defendia.

Em termos práticos o que nos ensina toda essa celeuma? Primeiro que o risco de contágio psíquico é diretamente proporcional ao nosso grau de inconsciência. Segundo que as paixões coletivas e políticas que agitam nossa era de incertezas e tristezas possuem um pano de fundo irracional que é tanto mais poderoso quanto mais ele for negado, e que, como certa feita asseverou Jung “se é aquilo que se combate”. Quando vemos apenas projetados nossas inferioridades elas agem sobre nós de maneira compulsiva, os homens e mulheres de esquerda agem de maneira autoritária e moralista enquanto apontam o dedo em riste para acusar seus oponentes. O homofóbico e machista Kataguiri aponta o dedo para acusar Che de ser homofóbico e machista. Quem busca opressores em tudo, em geral, possui um tirano vivendo em seu peito. De maneira humilde, esse debate psicológico nos leva a reconhecer que temos apenas uma parte da verdade, a parte que nos cabe e não toda ela. Recordando da filosofia de James, o racionalista acredita que existe uma verdade única, e que o universo é um enigma cuja resposta é essa verdade imutável: deus, a energia, o mercado. A postura proposta por James propõe a existência de verdades no plural, que ele chamava de verdades operacionais, que servem para gerar mais trabalho, que funcionam como atalhos que favorecem que nos movamos de um fato ao outro com maior desenvoltura. O racionalista gosta de ideias e se afasta sempre que pode dos fatos, o pragmático só se sente a vontade quando próximo dos fatos.

Determinadas verdades são estéreis e esterelizantes, pois não nos dizem nada e nos fazem parar de pensar, nos transmitem apenas a ilusão de conhecimento. Che foi um homem complexo, repleto de qualidades e defeitos. Como todo ser humano, foi alguém contraditório e incoerente. Se aferrar a uma verdade apenas sobre ele e seu valor é algo tolo. Sua imagem persiste e ainda causa polêmica e admiração, pois o homem Che foi capturado pelas eternas dominantes que, em certa medida, determinam o comportamento humano e ao olharmos para sua figura icônica, sem o saber miramos nas profundezas de nossa própria alma. Obrigado.

terça-feira, 14 de março de 2017

Refluxo



Eu tenho uma condição médica, que acredito seja um defeito de nascença, chamada hérnia de hiato, isso causa algo chamado refluxo, que é um tipo muito forte e incômodo de azia. O caso é que, por muito, muito tempo, eu acreditei que jamais havia sentido azia. Quando fui fazer exames para determinar se eu estava ou não com refluxo, um desses exames era um tubo enfiado pelo meu nariz e que descia pela minha garganta esôfago abaixo até o estômago e uma caixinha com algum aparelho eletrônico que, pelas próximas 24 horas iria monitorar objetivamente cada um dos episódios de refluxo que eu tivesse. Eles também me deram uma espécie de controle remoto, com botões, cada vez que eu sentisse os efeitos do refluxo bastava registrar apertando o botão. A máquina registrou uns 15 episódios de refluxo, e eu apertei os botões umas dez vezes e, adivinhem, não acertei nenhuma das vezes em que estava realmente tendo ácido corroendo meu esôfago e a minha garganta.

Pelo visto, eu sempre tivera azia, só não me dava conta disso. Não tinha qualquer consciência do que se passava comigo, algo físico que envolvia ácido subindo pelo interior do meu pescoço. Eu gosto de contar essa história para exemplificar o quanto podemos ser inconscientes, mesmo de coisas tão grosseiras e materiais. Depois passei a notar a sensação causada pelo refluxo, além de um monte de outras sensações oriundas do meu corpo.

Uma coisa muito similar aconteceu com algo bem mais sutil. Por anos, eu jamais havia me dado conta dos efeitos dos meus sentimentos sobre mim. Assim como eu acreditava que jamais tivera azia, tinha a viva impressão de que meus sentimentos não me perturbavam nem um pouco. Acontece que mesmo não percebendo a azia, o ácido estava lá, me deixando rouco, causando um estranho pigarro e corroendo o meu esôfago, eu só não o notava, o que não anulava os seus efeitos daninhos. Só é possível se defender de um inimigo que você sabe que existe. Eu conseguia agir de maneira imensamente fria, direta e impiedosa ou simplesmente ignorar coisas ruins feitas comigo e que deveriam ter tido o efeito de me irritar, entristecer ou indignar, porque não notava qualquer efeito dessas ações sobre mim. Isso me dava uma impressão muito, mas muito equivocada mesmo a meu respeito.  Além de eu ter uma ideia bem esquisita sobre mim, essa minha inconsciência, passava uma imagem bem estranha para as pessoas.

Assim como aconteceu com a minha azia crônica, depois de alguns eventos da minha vida, passei a perceber, a ter consciência, do quanto meus sentimentos me afetavam. Isso me deixou menos durão e objetivo, mas também me humanizou bastante, me deixou menos idiota e ampliou consideravelmente o escopo da minha experiência e, por cosequência, da minha vida. A coisa é que, eu ainda não sei muito bem o que fazer com essas impressões que eu percebo. Sei exatamente o que fazer com os meus pensamentos, com a minha criatividade e poder analítico. Com esses afetos que vem e vão quando querem, ou que são desencadeados por algum evento ou pessoa, eu sou mais vítima deles do que seu criador.  No começo, tentei fazer a coisa budista de apenas observar como eles apareciam e depois seguiam seu curso e sumiam, ou tentar me familiarizar com eles e entender como funcionavam. Talvez essas realmente sejam boas estratégias, mas, com o tempo, percebi que precisava me deixar afetar por tudo isso, e viver essas emoções, especialmente as negativas.

Isso me permite ter uma visão mais ampla e colorida do mundo e das pessoas, além de me dar elementos de avaliação que eu não dispunha antes. Não tem sido nada fácil, abdicar da minha postura, na aparência, inatingível e ser ferido por essas coisas. Afinal, elas sempre me feriram, eu é que não notava. Sentimentos são pontes, que nos conectam as pessoas, que aquecem o mundo frio do pensamento. Os afetos são a chama sem a qual os elementos de nossa personalidade jamais irão se amalgamar.

No meu caso, continuo a ser bem bocó no que concerne ao mundo dos sentimentos, mas, ao menos, já não sou cego e surdo.

segunda-feira, 6 de março de 2017

O que é Esquizofrenia?



O primeiro a classificar as desordens psicológicas em diferentes categorias foi o médico alemão Emile Kraepelin, em 1887 ele usou o termo dementia praecox para descrever os sintomas do que depois foi chamado de esquizofrenia.

Para Kraepelin, a dementia praecox era primordialmente uma doença do cérebro, e uma forma particular de demência. O termo "praecox" foi utilizado para marcar uma diferença com doenças como Alzheimer que geralmente acontecem na velhice. Kraepelin, em sua abordagem tinha uma forte ênfase na biologia ao tratar dos distúrbios psiquiátricos e retirava a ênfase sempre que possível de fatores sociais ou psicológicos. A despeito das críticas ao seu trabalho, ele foi um dos primeiros a tentar elaborar uma nosologia mais concisa e universal para a psiquiatria.

O termo esquizofrenia foi cunhado em 1911 por Eugen Bleuler em seu livro Dementia Praecox oder Gruppe der Schizophrenien. Então diretor do hospital psiquiátrico da universidade de Zurique (Burghölzli), e um dos nomes mais importantes na psiquiatria germânica.  Para Bleuler a esquizofrenia não era um tipo de demência e também poderia ocorrer em idade avançada. O termo escolhido por ele vem do grego e, literalmente, significa mente dividida ou despedaçada. Um termo apropriado para descrever o psiquismo fragmentado que ocorre na esquizofrenia. Freud não gostava do termo cunhado por Bleuler e preferia parafrenia, mas esse é um termo que nunca foi largamente utilizado.

O livro de Bleuler foi traduzido para o inglês apenas em 1950, apesar da demora teve enorme sucesso e diversas reimpressões, e foi uma influência poderosa na elaboração dos manuais de diagnóstico desenvolvidos depois da segunda guerra mundial, como a primeira edição do DSM e sua influência se estendeu até a sua segunda edição. Por essa época, a psiquiatria americana era fortemente influenciada pela psicanálise e recebeu muito bem o diagnóstico de Bleuler que se baseava em observações psicológicas e não dava grande ênfase aos sintomas psicóticos.

A partir do DSM III, os sintomas psicóticos como alucinações passaram a ter maior proeminência. A publicação do DSM III em 1980 foi fortemente influenciada pelo movimento psiquiátrico conhecido como Neo-Kraepelianos, que não se interessavam tanto quanto Bleuler pelos aspectos psicológicos da doença, mas acreditavam que o enfoque deveria ser o aspecto biológico.

A principal influência teórica desse movimento foi o psiquiatra alemão Kurt Schneider, que argumentava que os sintomas psicóticos estavam fortemente associados à esquizofrenia, a tal ponto que somente com o sintoma de alucinação auditiva já se diagnosticava alguém com esquizofrenia.

Mesmo depois de se ter percebido que esses sintomas psicóticos não estavam ligados de maneira única à esquizofrenia, e com a ascensão do movimento chamado de neo-Bleulerianos que dava ênfase me sintomas cognitivos, as edições subsequentes do DSM, até o DSM V continuaram a considerá-los primordiais no diagnóstico.

Bleuler elaborou a sua noção de esquizofrenia baseado em testes psicológicos, no teste de associação de palavras. Esse teste teve origem nos laboratórios de Wundt (pai da psicologia experimental) e foi utilizado por dois subordinados de Bleuler Carl Gustav Jun e Franz Riklin, em um grande número de pessoas, o que também incluía sujeitos que não possuíam problemas psiquiátricos.

Isso levou Bleuler a caracterizar a esquizofrenia com referência a essas associações como "associações frouxas" ou "afrouxamento das associações" com uma ênfase nos complexos. Para ele, outro fator fundamental era a dissociação (Spaltung), ou a fragmentação (Zerreissung) das funções psíquicas. Ou seja, a personalidade perde a sua unidade. a noção psicológica da doença de Bleuler está baseada na hipótese da existência de um inconsciente psíquico, onde complexos inconscientes, que representam personalidade parciais, podem tomar o poder e deslocar a personalidade original. O afrouxamento das associações indicava para ele que a força psíquica que mantinha a personalidade coesa, isto é, a capacidade de associar conteúdos psicológicos uns com os outros, era um dos fatores que levava a dissociação ou fragmentação.

No livro DSM V, o mais atual dos manuais de psiquiatria em língua inglesa e que define os critérios para se diagnosticar esquizofrenia. Do DSM IV para o V mudanças significativas aconteceram, como a retirada dos subtipos de esquizofrenia (paranóide, desorganizada, catatônica, indiferenciada e residual), existe uma lista de sintomas do grupo das psicoses: delírios, alucinações, fala desorganizada, comportamento desorganizado ou catatônico, sintomas negativas. Para o diagnóstico é preciso que o sujeito exiba 2 desses sintomas e pelo menos um deles deve ser um dentre esses 3: delírio, alucinação, fala desorganizada.

terça-feira, 17 de janeiro de 2017

Barbarie

A Alemanha, antes de guerra que matou criminosamente 6 milhões de judeus, havia produzido um Heidger, e dezenas de outros filósofos, havia produzido um Wagner na música e, mesmo assim a barbárie que o povo mais culto e educado da terra produziu naquele período foi um dos episódios mais nefastos da história humana. Toda a Europa era antissemita, o nazismo poderia ter surgido em qualquer parte, estamos sempre a um passo da barbarie. 

Mas o que significa a barbárie? Paradoxalmente é algo simples, um grupo numeroso de pessoas alimenta o preconceito afetivo de que determinadas coisas jamais acontecem a eles e seu círculo mais próximo e nutrem quimeras acerca de supostas qualidades que possuem e projetam todos os defeitos que realmente possuem, em abundância, em algum grupo: judeus, negros, bandidos, homossexuais; quando isso acontece, e é um fenômeno irracional e compulsivo, esse grupo passa a ser menos humano, na mesma medida em que essas pessoas passam a se julgar superiores. Assim, o destino desses que são inferiores, não importa, que morram, ou sumam são escória e não deveriam pertubar o mundo perfeito dos demais. Esse longo prolegômeno psicológico, serve para que eu possa falar da chacina horrenda e monstruosa que aconteceu em um presídio de nossa combalida nação. Uma vez mais, como de costume, me interessa mais a reação a tragédia. 

Circula já a notícia de que um membro do PMDB afirmou que deveriam acontecer ao menos uma chacina por semana, também tive o desprazer de ler na minha timeline um amigo argumentar que os que pereceram era bandidos incorrigíveis e mereceram seu destino funesto. Como sempre, o homem médio retorna aos preconceito do final do século XIX, ao bandido nato de Lombroso e a eugenia, que até mesmo o grande Galton chegou a defender. Qualquer um de nós, podemos comenter crimes, os maiores horrores, como auschwitz, assim como as mais fabulosas aquisições do espírito, como a filosofia de Heidger, surgem todas da alma. Heidger era nazista, e perseguiu seu mentor por ser judeu. Quando defendemos que essas pessoas mereceram um destino tão horrendo, que deveriam mesmo ser mortas, estamos, sem o saber, apertando o nó da corda que está em nosso pescoço. Estamos diante da barbárie, pois a bárbarie não vive no coração de outrem, mas no nosso. Eu lamento que as lições da história (nesse momento vemos como Cícero estava equivocado) de nada serviram. Estamos, meus amigos, parados diante do abismo, mas somos cegos a ele, o problema é que só podemos nos defender de um perigo do qual tenhamos consciência... Acordem! antes que seja tarde demais.

O Messianismo à brasileira

Fazia algum tempo que eu não esbarrava com um dos defensores de Jair Messias Bolsonaro, mas recentemente deparei com um nas redes sociais e o pomo da discórdia foi à tolice que vem sendo repetida de que Hitler e o nazismo eram um movimento de esquerda, mas não é disso que eu desejo tratar. Nosso regime presidencialista possui um traço personalista e messiânico muito forte, do qual nós de esquerda não podemos nos esquivar, visto Lula ter habilmente explorado isso e ter, até hoje, um papel simbólico muito significativo na vida de milhões. Todavia, por humano demasiado humano que seja essa característica, ela aponta para o quanto nossa política está ainda engatinhando. O quanto ainda somos infantis.

Bolsonaro é um político oportunista, na década de noventa ele possuía duas bandeiras apenas: porte de armas e pena de morte. Somente depois do advento de Marcos Feliciano ele embarcou no elemento que faltava ao seu perfil facistóide: a cruzada moralista. Sua figura é, no mínimo caricata, como era a de Hitler, seus ideias beiram o absurdo, assim como Hitler e, assim como o ditador nazista, ele é visto por seus seguidores como um salvador, um messias. Jung, ao analisar essa característica messiânica no povo alemão, ironicamente a comparou a algo característico do meu povo, os judeus, de quem, historicamente, o ocidente deve a ideia e mesmo o termo “messias”. De acordo com ele, judeus e alemães tinham em comum, como nação, um terrível complexo de inferioridade, inclusive por razões similares. Os judeus adquiriram seu complexo de inferioridade por fatores políticos e geográficos: viviam em uma região cercada de invasores pelos dois lados, depois de voltarem do primeiro exílio na Babilônia, Roma quase os extinguiu. A Alemanha padecia desse mesmo complexo de irmão mais novo, que chegou atrasado para festa, e desde a derrota na primeira guerra mundial ansiava por um messias que a salvasse. Hitler foi esse messias por ter vivido e expressado intensamente o inconsciente Alemão, o bárbaro germânico esmagado, mas não modificado pelo cristianismo.

Nós, enquanto nação, padecemos do mesmíssimo complexo de inferioridade, nosso complexo tem até mesmo um nome: “complexo de vira-latas”. O proverbial vira-latismo brasileiro se manifesta na rede mundial de computadores quando alguém critica os “brs”, quando nos julgamos piores em tudo e, uma das características mais marcantes da neurose, nós nos julgamos os únicos idiotas o bastante para sermos assim, uma espécie de soberba as avessas que nos aliena das demais nações, mas que é uma quimera. Não admira que abundem candidatos a salvador e pais da pátria, não admira que essa psicologia do fracassado, que almeja secretamente poder e prestígio tenha gestado algo tão feio quanto um Bolsonaro. Hoje se fala em pós-verdade, mas desde a virada do século, Jung com seu experimento de associação de palavras chegou à conclusão de que “importam menos os objetos e mais a maneira de apetecer”, o caráter irracional da idolatria aos messias: Juiz Moro, Collor de Melo, Bolsonaro etc., resiste a qualquer tentativa de objetivamente se analisar os fatos ou as características dessas pessoas, pois reside menos nos fatos objetivos concernentes a eles e muito mais na psicologia de seus seguidores. Trata-se de um fator irracional e terrivelmente preocupante. Estamos à beira do abismo, mas o abismo está em nós e suas trevas profundas lançam tentáculos negros no mundo e vemos essa sombra como salvação e não como perdição, pois estamos cegos. O poder e o desejo pelo poder nos cega e nos separa de nossos irmãos, somos uma nação cindida. A máxima psicológica de que “onde há poder não existe Eros” pode ser testemunhada diariamente em nosso meio. Olhar para Bolsonaro significa encarar o que de pior existe em nós: racismo, machismo, homofobia, intolerância, ignorância. A saída cristã de olhar para isso e negar tudo para num estalar de dedos sermos livres do pecado é psicologicamente impossível, pois quanto mais negarmos que somos homofóbicos, machistas, racistas e intolerantes mais esses demônios silenciosamente vão devorar a nossa alma. Precisamos ter clareza de que também temos um lado obscuro e feio, negá-lo só o fortalece, esquecê-lo ou resolver as coisas num passe de mágica gesta monstros como Bolsonaro. Só podemos nos defender de um perigo que conhecemos e reconhecer que esse horror grassa em nossa alma é a única maneira de combatê-lo. Não sejam ovelhas, não esperem por um pastor, junto do pastor vem um pesado cajado de ferro para punir os desobedientes.