quinta-feira, 1 de novembro de 2018

O que é o comunismo?


O que é comunismo? A pergunta não deveria ser capciosa e nem tampouco difícil, afinal é uma palavra dicionarizada, amplamente debatida, discutida e definida tanto pela ciência política, história e filosofia. Minha definição favorita, por exemplo, vem do filósofo e psicanalista contemporâneo Slavoj Zizek, que se baseia mais em Hegel do que em Marx, segundo ele trata-se de uma ideia concreta hegeliana da liberdade humana radical. Porém, quando Bolsonaro, em sua “live” logo que soube de sua vitória nas urnas fala em continuar perseguindo comunistas ele certamente não se refere a nada que diga repeito a História, Ciência Política ou Filosofia. O mesmo acontece com seus seguidores mais ferrenhos, quando eles usam a palavra comunismo ou comunista temos um curto-circuito, pois apesar de ser a mesma palavra que escutamos, ela se refere a um significado completamente diferente daquele que faria algum sentido histórico ou filosófico. Isso estabelece um curioso dilema semiótico, há que se traduzir o que seja a ideia ou sentimento por detrás da palavra que apenas na aparência é a mesma. Bolsonaro e seus seguidores usam comunismo com uma conotação que não nos permite estabelecer qualquer comunicação, ao contrário, bloqueia o diálogo.
De começo precisamos entender que não entendemos, também é preciso compreender que eles parecem ser capazes de realmente comunicar algo entre eles mesmos com essa palavra, logo ela possui um certo grau de significado compartilhado, há um sentido esotérico de comunismo entre essas pessoas. Temos também de entender que o nosso preconceito de que eles são apenas parvos por desconhecerem os sentidos já aludidos para comunismo impede ainda mais o diálogo. A coisa chega mesmo ao ponto desse sentido que atribuem ter um valor tão grande para eles que o significado histórico/filosófico é visto como errôneo ou mesmo mistificador.
O que significa comunismo? Creio que o sentido histórico mais próximo desse usado pelos eleitores de Bolsonaro deva ser similar ao que surge nos Estados Unidos no período da guerra fria e que é popularizado por Macarty, que criou um clima de paranoia e caça as bruxas. O comunismo nessa época era primeiramente uma ameaça, mas uma ameaça a que? Primeiramente a um modo de vida, o comunismo ameaçava o american way of life, identificado com o ideal de liberdade e busca de prosperidade. Os comunistas também ameaçavam a fé desse modo de vida, eram seres ímpios e sem deus, ateus ignóbeis, além de ameaçarem o capitalismo, no sentido do modo de vida, isso era uma ameaça à prosperidade, a meritocracia e a ideia de self made man. Nesse sentido, meus bens, meus hábitos, e a minha fé estão ameaçados. Mas quem é o rosto dessa ameaça? Ninguém e todo mundo, é uma ameaça sem rosto, o que cria um clima de paranoia. Lacan define paranoia de uma maneira simples, para o neurótico um significante aponta para vários significados, por exemplo: a porta bateu, pode ser o vento, ou o gato, ou um ladrão, ou comunistas. Para o paranoico, todos os significantes apontam para o mesmo significado: a porta bateu, são os comunistas, o telefone tocou, um comunista está me ligando, ouvi um barulho no porão, comunistas, vi uma bandeira do Japão, bandeira comunista. Com isso a ameaça se torna onipresente, insidiosa e qualquer coisa pode ser acusada de comunista (desde o Para até a ONU).
Essa ameaça possui também um viés moral, pois reanima de maneira insidiosa o velho eurocentrismo, pois esse modo de vida, que inclui um povo, uma religião e uma cultura, passam a ser vistos tacitamente como superiores aos demais e dignos de uma defesa que corresponde a proteção da civilização contra os bárbaros que ameaçam seus portões. A defesa desse modo de vida adquire contornos morais, pois é preciso proteger esses valores dessa ameaça, até mesmo pelo fato de o fator moral por excelência, deus, que fundamentalmente decide o que é certo e errado, está do lado dos não-comunistas. Com essa defesa moral, pois os costumes são a essência da moral, e de uma tradição que está ameaçada, e com ela a identidade ligada a ela, eu me coloco ativamente do lado do bem, numa postura maniqueísta. Todo o mal fica do lado de lá, do comunismo.
O comunismo representa também uma ameaça política e militar, além de ateus e imorais, eles desejam destruir o sistema político e são uma ameaça a minha integridade física, de alguma maneira, minha vida está em risco. Como eles não comungam dos meus valores, imediatamente imagino que eles serão uma versão especular da minha moral, uma anti-moral, em que todos os tabus são abolidos, e a própria existência de uma tal abominação é uma ofensa a mim e a meu modo de vida. Tudo o que eu considero errado é projetado nesse outro sem rosto, é provável que usem drogas se eu achar que usar drogas é errado. Logo, basta alguém fazer algo que eu julgue errado (como usar drogas) para ser comunista. Se eu considero que só é válido o amor entre diferentes, entre homem e mulher, para entender que quem age de maneira “errada” é comunista.
É muito provável que essa ameaça tenha um aspecto estético, se o comunista é um ser pelo avesso, logo ele deve também ameaçar a minha estética, tudo o que eu acho feio será louvado pelo comunista e o belo será destruído por ele. Obviamente, um modo de vida terá um padrão de beleza, no caso em questão, o padrão era o homem ou mulher brancos e os traços definidores da aparência europeia, como olhos claros e cabelos lisos. Dessa maneira, se eu achar feio, deve ser comunista.
Se a minha hipótese estiver correta, o comunismo de que fala o Bolsonaro é tudo menos aquilo que a História nos ensina ser o comunismo, mas tudo aquilo que é sentido como ameaçador, feio, imoral e perigoso. Mesmo compreendendo tudo isso, o debate permanece comprometido, pois no fundo o comunismo vai ser algo tão vasto que dificilmente será mais do que um sentimento vago de medo e apreensão, que não significa nada objetivamente. No fundo estão apenas confessando seus medos e desejos inconfessáveis, pois medo e desejo são irmãs inseparáveis.