segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Uma análise da derrota do PT nas eleições em Fortaleza em 2012

Em que pese que o pathos da derrota ainda é recente e que existem muitas variáveis a serem analisadas, mesmo assim, mesmo ainda no calor dos acontecimentos, tentarei ser o mais objetivo que eu puder nesta análise. O fato que urge ser compreendido e contextualizado é a derrota de Elmano de Freitas nas urnas na capital Alencarina após tantas e tais vitórias significativas do PT e seus aliados na política cearense.

Acredito que Elmano cumpriu bem o seu papel, e que não contribui para esclarecer os fatos ficar se perguntando se os resultados seriam outros se qualquer outro nome tivesse sido escolhido, não existe “e se” em história e esse procedimento heurístico seria absolutamente improdutivo. O que temos diante de nós é a derrota nas urnas de Elmano de Freitas batido por Roberto Cláudio. Há uma sutil inflexão em se perguntar pela derrota de Elmano ou pelos fatores que levaram Roberto Cláudio a vitória, certamente entre as respostas para as duas perguntas existem elementos comuns, mas são perguntas com respostas e consequências diferentes e, no momento, só possuo elementos para tentar começar a responder por que Elmano de Freitas perdeu, ou melhor, quais as razões do fracasso petista na capital.

Há uma série de equívocos que se acumularam desde antes do início da eleição propriamente dita, e creio que dois foram os mais graves. O primeiro foi a escolha do sucessor de Luiziane feita com tão pouca antecedência. A figura de Elmano, ou mesmo a estratégia para a sucessão, deveria ter sido pensada com uma antecedência muito maior, para que não parecesse às pessoas de fora do partido, algo tão artificial. É provável que a psicologia desse erro tenha influenciado ou sido similar a dos outros erros cometidos que explicam essa derrota. O outro erro fundamental foi ter subestimado Cid Ferreira Gomes, esse foi um erro grosseiro, que em parte possui parentesco com o erro que apontei anteriormente, pois em ambos pode-se perceber que há um sentimento de hybris, de desmedida e arrogância que leva fatalmente a uma compreensão equivocada da realidade. Se é que há algo que aprendemos nessas eleições foi a não subestimar Cid Ferreira Gomes e nem a força do poder econômico. Creio que há mais de cem anos, nosso estado não vê um político amealhar tamanho poder quanto Cid possui hodiernamente.

Um sinal de alerta que não foi percebido pelos estrategistas da campanha foi o fraco desempenho de nossos vereadores, cujas votações ficaram muita aquém da expectativa que existia e mesmo o número de vereadores eleitos, apenas quatro, quando pensávamos em eleger seis, talvez quiçá sete! A campanha proporcional, assim me parece, é algo que precisa ser pensado com cuidado para se compreender a nossa derrota. Pelo menos nesse primeiro momento eu acredito que a maioria dos candidatos a vereador se preocupou mais com as próprias campanhas do que com a campanha majoritária. Os motivos disso merecem maior reflexão, ou mesmo se se trata de fato ou hipótese apenas.

Passando a fatos mais concretos, o PT estava dividido, uma boa parte do nosso partido esteve e está no bolso de Cid, e uma outra parte, ainda tinha na boca o gosto amargo de ter tido seus representantes preteridos como candidatos a prefeito no lugar de Elmano. Francisco Pinheiro, Camilo Santana e Nelson Martins tiveram uma participação apenas “estética” na campanha de Elmano, assim como seus respectivos grupos. Poder-se-ia contrapor a isso que o PSB também estava dividido, que os Novais estavam contra os Ferreiras Gomes, bem como os militantes históricos do PSB, bem, essa divisão em nada enfraqueceu Cid e Roberto Cláudio, tendo sido no máximo um incômodo. Cid e seus irmãos são antes de tudo um grupo familiar, que se utilizam do PSB. Algo muito diferente da organicidade de PT e de seus membros, o que apenas demonstra a habilidade política de Cid ao cooptar membros históricos do partido como Pinheiro e Nelson (Camilo não possui raízes profundas no partido e possui relações mais estreitas com os Ferreiras Gomes do que com o PT).

Nós superestimamos o poder de Lula e sua transferência de votos. O ex-presidente sempre foi a proverbial “carta na manga”, o grande trunfo, mas como se viu, e contra fatos não há argumentos, o carisma e o poder de convencimento de Lula, sozinhos, não bastaram para bater Cid Gomes. Assim como utilizamos a imagem de Lula, associando Elmano a Lula, Roberto Cláudio utilizou a imagem de Cid, com muito maior sucesso. Nesse ponto, nossa avaliação exagerada passou igualmente por uma subavaliação do poder e popularidade de Cid e Ciro (que se fez muito presente nesse pleito). Isso não significa que a participação de Lula tenha sido sem importância, pelo contrário, foi algo da máxima importância. Todavia, a participação dele em nossa campanha foi bem menor do que se viu em São Paulo, ele esteve em Fortaleza no segundo turno, mas por poucas horas, e ainda com a saúde abalada pelo tratamento exitoso contra o câncer. Além disso, a ausência de Dilma, que não passava de uma fotografia nos materiais impressos, pesou muito negativamente. De mãos atadas pela vasta base de sustentação ao seu governo (praticamente todos os partidos importantes que disputaram esse pleito, incluindo PSB, são de sua base aliada) teve que se manter silenciosa e neutra. Todavia sua neutralidade de neutra tinha pouca coisa, afinal ela é do Partido dos Trabalhadores e seu silêncio pesava sobre nós e fortalecia Roberto Cláudio, que com razão, a citava frequentemente. O PSB não rompera nacionalmente com o PT, tão pouco, no resto do estado, estavam rompidos, apenas na capital existia esse rompimento. Outro elemento que superestimanos foi a força da aguerrida militância petista. Sem a devida organização, estando dividida e muitas vezes desmotivada e sem o apoio de seus líderes partidários, a militância não alterou significativamente o fiel dessa balança tão desigual.

Finalmente, não poderíamos deixar de notar um fato crucial, existiu nessas eleições um poderoso sentimento anti-petista como não se via há tempos. Houve enormes manifestações de apoio a Roberto Cláudio, principalmente por membros da classe média e por membros das classes mais abastadas, coisa que em 18 anos de militância eu jamais presenciara. Boa parte desse entusiasmo e apoio não era propriamente apoio a Roberto Claudio, mas repúdio ao PT e a Luizianne Lins. A imprensa criou para a prefeita de Fortaleza uma imagem das mais negativas, imagem essa que ela ajudou a forjar. Sua infeliz declaração de que estava preparada para eleger até mesmo um poste quebrado deu a nossos oponentes de presente um slogan, e mais munição contra o PT, além disso, a frase intempestiva revela um flagrante desrespeito pelo poder da opinião pública e há um inegável traço de arrogância e jactância. A projeção negativa coletiva precisa de um gancho projetivo para se estabelecer, e Luizianne forneceu esse gancho. Certamente existiu um grau elevado de manipulação da mídia nesse caso, principalmente na percepção do valor de sua gestão – justiça seja feita bem melhor e mais competente do que foi mostrado pela imprensa – mas parece-me que o poder desse imaginário não foi levado em conta em nossa estratégia. A briga pública pela mídia com Cid e Ciro foi desnecessária e deselegante, e certamente ajudou a cimentar ainda mais essa percepção negativa sobre a personalidade dela e sobre a gestão. A mim me impressiona que, em São Paulo o PT tenha sido vitorioso e que em Fortaleza tenhamos perdido e me impressiona ainda mais o sentimento anti-petista, que mesmo as conquistas na esfera federal não puderam abafar. Se há uma lição a ser aprendida aqui – e creio que há muitas – é que não há nada mais atual do que a luta de classes e a reificação, e que Zizek está coberto de razão, Marx ainda é um instrumento indispensável para compreender a realidade.

No fim das contas o poder econômico foi o fator que desequilibrou a balança, na reta final foi como dizem os americanos “money talks”, e isso foi outro fator que não levamos em conta. Confúcio dizia que existem 3 maneiras de se aprender: a mais fácil é pelo exemplo, a mais nobre pela reflexão e a mais amarga pela experiência. Essa mestra severa, a derrota, pode nos ensinar muito, como intelectual de esquerda é meu dever de ofício analisar essas lições e tentar garantir que mais pessoas possam aprender com essa experiência tão amarga. Nesse pleito, com a prefeitura em nossas mãos, fomos batidos, em 2014 Cid terá em seu poder o estado e a prefeitura de Fortaleza... Essa não exatamente uma perspectiva animadora. Certamente estamos vivendo o esgotamento de um modelo de política, e urge que pensemos outro, mas o mais grave, estaremos assistindo ao nascimento de um ciclo de poder como foi com Tasso Jereissate? Teremos talvez, mais uns vinte anos de oligarquia dos Ferreiras Gomes em nosso estado? Seriam os fogos de artifício no comitê central de Roberto Cláudio o choro de nascimento desse novo ciclo de poder capitaneado pela mão firme de Cid? Há muito o que se pensar, principalmente em qual vai ser o papel do PT nesse novo cenário que se desenha...

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Ip Man 葉問 (O Grande Mestre)


O filme Ip Man (o grande mestre no título em português), estrelado por Donnie Yen (甄子丹) no papel de Ip Man em uma atuação digna de nota, dirigido por Wilson Yip e com as cenas de lutas coreografadas pelo renomado Sammo Hung (洪金寶), possibilita várias reflexões interessantes sob diferentes óticas. O Filme se baseia na vida do mestre de Wing Chun (詠春) Ip man, que adquiriu grande renome, principalmente, por ter sido o professor do legendário Bruce Lee. A vida de Ip Man (葉問), num sentido biográfico mais restrito pouco importa aqui, os fatos narrados no filme pouco têm a ver com a biografia de Ip Man. É certo que toda a biografia, todo esforço de memória, é um ficcionamento, que a coisa passada res gestae, é impossível e está para sempre perdida, mas esse filme em particular não representa um esforço de reconstituir a vida de Ip Man, ao contrário disso o filme representa um esforço, talvez deliberado, de constituir uma lenda.

É esse aspecto que me chama a atenção e que pretendo analisar. Nesse sentido, a película possui caráter monumental, para utilizar a expressão de Jacques Le Gof, ele procura se impor a memória coletiva. A vida de Ip Man, nem de longe foi tão extraordinária quanto à do personagem do filme, o que não significa que o filme seja mera mistificação ou falsificação, esse é o ponto interessante. Trata-se de forjar uma memória, tanto para a China, quanto para o Wing Chun, arte marcial que se tornou popular em todo o mundo graças a Bruce Lee. História e memória estão interligadas de maneiras sutis, e mais ainda, ambas estão inextrincavelmente ligadas à identidade, ou a percepção que temos dela. Certamente, para a maioria das pessoas ambas, história e memória se confundem, ou, ao menos, suas fronteiras são nebulosas.

Alguns aspectos do filme chamam a atenção de imediato, principalmente o esforço de Donnie Yen. Nas cenas em que ele aparece treinando no Muk Yang Jong (木人桩), o boneco de madeira utilizado nos treinos de Wing Chun, ele o faz de uma maneira quase idêntica a que Ip Man fazia (ele deixou para os filhos registros em vídeo de suas técnicas), a postura corporal do ator, sua maneira de olhar, sorrir, até mesmo a maneira como caminha representam uma tentativa de mímica dos modos de Ip Man que impressionam pela verossimilhança. Donnie Yen foi treinado para o filme pelo filho de Ip Man, o mestre Ip Chun, e as técnicas mostradas no filme também são extremamente precisas e similares a realidade do Wing Chun. É certo que, para que o filme seja divertido, existe infalivelmente uma “liberdade poética marcial” que torna as lutas mais empolgantes e belas do que seriam na vida real. Essa característica do exagero é um fator crucial para o que parece ser o intuito do filme. Nas lutas o Wing Chun mantém sua peculiaridade de economia de movimentos, precisão, ataques em linha reta e uso dos braços como principais armas, mas mesmo assim, esteticamente, as lutas são chamativas, bonitas e, acima de tudo, empolgantes. O elemento da arte marcial é aquilo que diferencia Ip Man, tanto no seu sentido mais grosseiro das lutas e, nesse aspecto a sensibilidade do diretor captou algo que normalmente não está presente em filmes do gênero, quanto o aspecto moral e espiritual do Kung Fu. Ip Man possui qualidades morais invejáveis, é paciente, quase estoico, comporta-se sempre de maneira polida e contida, um gentleman, e sua postura não muda diante da adversidade, ao contrário, a adversidade acentua essas características.

O filme se inicia com Ip Man treinando num boneco de madeira já desgastado pelo uso constante, o olhar atento reconhece a mensagem de que aquele boneco surrado pelo uso representa anos de dedicação e treinos constantes que são fator indispensável para moldar o corpo e o caráter de um mestre de Kung Fu. Ip Man é elevado a alturas sobre humanas na película, mas ao mesmo tempo, é sua humanidade que salta aos olhos. Ele é apresentado como um dandy ocioso, com uma bela e espaçosa casa, empregados, roupas bonitas e que se dedica integralmente a família e a sua paixão, o Kung Fu. Os modos de Ip Man são discretos, mas aristocráticos, ele fala pouco, não se exibe e é extremamente polido. Logo no início do filme um novo mestre que acabara de se instalar em Fo Sham (cidade rica, populosa, e Meca das artes marciais) o convida para um duelo amistoso. Essa passagem serve para marcar a impecabilidade da cortesia marcial de Ip Man, o que é um dos aspectos que servem para dar a ele distinção, num sentido radical da palavra.

Os dois jantam juntos, em seguida tomam chá e comem bolo, Ip Man lhe oferece um cigarro. Esse é um ponto interessante, vemos um esforço deliberado para gestar uma lenda, mas nosso herói, como sua contraparte histórica, fumava. Escapando do discurso do Politicamente correto que parece dominar o horizonte intelectual de Holywood, o herói chinês fuma. Isso marca um contraste dos mais interessantes, pois atualmente na China é muito comum que as pessoas fumem e, como já foi no passado na América, fumar é algo associado à masculinidade e é até mesmo falta de polidez recusar um cigarro oferecido. Depois das amenidades ambos lutam. Obviamente Ip Man vence de maneira convincente, numa luta “sombra” em que nenhum deles se machuca. Ao final, ambos se cumprimentam cordialmente e o outro mestre, derrotado, pede descrição ao mestre Ip Man sobre sua luta a portas fechadas.

O caráter quase sobre-humano da habilidade marcial de Ip Man, algo crucial para a lenda, precisa ser mostrado de maneira sutil, visto o Wing Chun não possuir movimentos acrobáticos e impressionantes comuns e outras artes marciais chinesas. Após a luta a portas fechadas, segue-se um problema, pois alguém presenciou o duelo e comentou pela cidade. Durante a confusão que se segue (envolvendo o tal mestre, Ip Man e várias outras pessoas) o delegado saca uma arma de fogo para intimidar os artistas marciais. Ip Man, em uma reação instantânea agarra a mão do policial e bloqueia o gatilho com o seu polegar e em seguida remove com um golpe dos dedos indicador e médio o tambor, que cai espalhando a munição.

Ainda na primeira parte do filme, um grupo de lutadores do Norte – com estilos de lutas diferentes dos do sul – resolvem desafiar os mestres de Fo Shan, seu líder Jim derrota a todos e cabe a Ip Man resgatar a honra das artes marciais da cidade. Nesse momento vemos um elemento típico de inúmeras histórias de mestres espadachins tanto da china quanto do Japão, e que está presente no filme “O Tigre e o Dragão”, a “espada secreta”. Na luta que se segue Jim usa um sabre e Ip Man se defende utilizando uma peça de decoração, um fino bambu decorado com penas como arma, facilmente sobrepujando Jim. Outro elemento clássico das histórias de mestres das lutas surge aqui, com um golpe de estocada Ip Man atinge um ponto de pressão debaixo do braço de Jim e o paralisa (o primeiro ponto do meridiano do coração Ji Quan) – esse tipo de técnica inexiste no Wing Chun público – forçando-o a utilizar a outra mão para manejar o pesado sabre. Ao derrotar os arruaceiros ele se consagra como o mais respeitado mestre de Fo Shan.

Esses elementos presentes nas histórias tradicionais de lendas das artes marciais reforçam a aura mítica de Ip Man, ele domina as técnicas que apenas os grandes mestres das histórias lendárias dominam, é um mestre imbatível, ao mesmo tempo, modesto, polido e moralmente impecável. Estamos aqui diante de um exemplo hodierno de Evemerismo? Vemos o surgimento de um mito que no fundo não passa do exagero sobre a vida de um personagem histórico “real”? Essa teoria a cerca das lendas e mitos existe desde o século IV a.C, e reduz os mitos a gestas de reis do passado que com o tempo adquiriram a estatura de deuses com poderes sobre-humanos. O Grande Marco Túlio Cícero ao advogar a favor do Evemerismo chega mesmo a pensar nos deuses como Alegoria, algo que numa visada mais rápida poderíamos enxergar no nosso filme. Não creio que se trate disso aqui, principalmente por que não creio na hipótese do Evemerismo e da Alegoria, mesmo que homens como Voltaire e Hume tenham acreditado nela. Com base na moderna psicologia acredito em algo bem diverso, e creio que o filme Ip Man, exemplifique isso muito bem.

J. R. R. Tolkien em fascinante ensaio intitulado “On Fairy-stories”, contesta de maneira extremamente interessante a hipótese que apontei anteriormente, e sua argumentação, que não tem relação direta com a moderna psicologia, guarda tantas e tais similaridades com o argumento psicológico que mais uma vez me leva a pensar que a Psicologia de Jung é desperdiçada com os psicólogos. Sem maiores divagações vamos ao interessante argumento de Tolkien. Em seu ensaio ele procura, inter alia, responder a três perguntas: o que são contos de fadas (fairy-stories, numa tradução mais precisa histórias de fadas)? Qual a sua origem? Qual a sua função. No que concerne a segunda pergunta, Tolkien afirma que se perguntar pela origem dessas história equivaleria a se perguntar pela origem da linguagem ou pela origem da mente, e refaz a pergunta se perguntando pela origem dos elementos de “fadas” das histórias. Ele então critica de maneira elegante o esforço dos folcloristas de agrupar os temas das histórias e afirmar que se tratam da mesma história, pois o que é mais importante e bem mais difícil de captar é o seu colorido próprio, atmosfera, os detalhes individuais e inclassificáveis da história, justamente aquilo que dá vida aos “ossos” da trama. O mais complicado e fascinante é perceber o que essas histórias são, o que tornaram para nós, e que valores o longo processo alquímico do tempo produziu nelas. Nesse ponto surge a metáfora que considero fundamental para compreender o processo que se passa em nosso filme. Utilizando as palavras de Dansen, Tolkien diz (traduzo) “Nós devemos nos satisfazer com a sopa que foi posta diante de nós, e não desejar ver os ossos da vaca da qual foi fervida”.

Tolkien explica sua alegoria, que nós será tão útil, pela sopa ele compreende a história como nos foi servida pelo seu autor ou contador. Pelos ossos suas fontes ou seus materiais. Nossa “sopa” é o filme Ip Man, tal qual ele nos foi apresentado por seus idealizadores. Ainda ao se perguntar pelas “origens” e a relação entre a mitologia mais elevada e os contos de fadas, Mächen, Tolkien faz uma crítica a Alegoria (os deuses olímpicos não passariam de fatos metereológicos) e ao Evemerismo que vai levar ao ponto que me interessa chegar, imagine que o caldeirão das histórias sempre esteve fervendo e sempre recebendo algum pequeno ingrediente novo. Tolkien usa um exemplo dos mais interessantes, se alguém contar uma história interessante sobre o arcebispo de Cantebury escorregando numa casca de banana e caindo comicamente  ninguém iria de imediato desacreditar essa história, nenhum historiador diria se tratar de uma farsa. Mas se a história contivesse a menção a um anjo ou fada que avisou ao arcebispo sobre a casca de banana ela seria rejeitada, ou se descobrisse que foi contada num período posterior a vida do tal clérigo. Os historiadores diriam, afirma Tolkien, que a “história da casca de banana” “become attached to the Archbishop”, o que Tolkien afirma é uma inflexão sutil desse ponto de vista “I Think it would be nearer the truth to say that the Archbishop became attached to the banana skin”. O arcebispo foi colocado no pote de sopa, eles são apenas pequenos novos ingredientes adicionados à sopa que ferve há milênios, desde a aurora da humanidade, desde a invenção da linguagem ou ao surgimento da mente.

Parece claramente óbvio para mim que Arthur, uma vez histórico (mas talvez alguém sem grande importância), também foi colocado no pote. Ali ele foi cozinhado por um longo tempo, junto de muitas outras figuras mais antigas e maquinações, de mitologia e de Fäerie, e mesmo alguns outros ossos perdidos de história (...), até que ele emergiu como o rei de Fäerie. (Tolkien, 2008, p.342, tradução minha).
O elemento do “conto de fadas” do mito não se eleva ou decai, mas está ali sempre presente, no “Caldeirão de Histórias”, apenas esperando que alguma grande figura dos mitos ou da história caia no ensopado que cozinha em fogo brando. Creio que a opinião de Tolkien pode ser uma ferramenta útil para nós, Ip Man foi jogado no Caldeirão de Histórias e emergiu como o herói quase imbatível que vemos no filme. Alguém poderia objetar, e com razão, que quem quer que tenha escrito o roteiro ou idealizado a película, o fez com um esforço deliberado de razão. Nesse ponto convém lembrar, que se levamos a sério a hipótese de um inconsciente psíquico como um dado irracional existencial inalienável, devemos igualmente nos recordar de que o inconsciente é anterior, simultâneo e o posterior a consciência. E é a essa simultaneidade que devemos possibilidade de perceber que mesmo nesse filme, há um pano de fundo psíquico inexpresso. Além disso, a corda que ele faz vibrar em nós, e que é algo que apenas a fantasia pode fazer, já é um testemunho desse pano de fundo inexpresso e seu poder sobre nós. A digressão foi longa, mas necessária, voltemos ao filme e apenas após nos determos mais demoradamente sobre ele, trarei a baila de maneira mais detalhada à hipótese psicológica.

A segunda parte do filme mostra uma Fo Shan desolada pela invasão japonesa, antes rica e pujante, ela se torna cinzenta, pobre e desolada. Ip Man perde suas posses e se vê obrigado a, pela primeira vez em sua vida, a ganhar o próprio sustento com o suor de seu rosto. Coisa que faz sem se lamuriar, da maneira estoica com que agia mesmo nos tempos de bonança. Aqui surgem os japoneses como os vilões odiosos, encarnação do mal, no papel que tradicionalmente é ocupado pelos nazistas nos filmes de guerra de Holywood. A indústria cinematográfica Americana rapidamente esqueceu que os japoneses foram aliados dos nazistas, que nutriam teorias raciais similares as dos alemães e que cometeram inomináveis atrocidades contra os chineses. Ora, os chineses logo se tornaram comunistas, e os japoneses no pós-guerra aderiram docilmente ao modelo capitalista Norte-Americano, seus pecados deviam ser esquecidos, afinal o inimigo na guerra fria eram os “vermelhos” e ideologicamente eles deveriam ser atacados e difamados (como se vê nos filmes de James Bond), Japoneses Capitalistas não podiam mais ser retratados como foram pela propaganda Ianque nos desenhos originais (incrivelmente racistas) do marinheiro Popeye. Melhor cultivar a imagem valorosa e honrada do guerreiro samurai e treinar Karate e Judo.

O aspecto de identidade nacional surge de maneira dramática na cena em que Ip Man vai até um dojo dos japoneses, onde eles pagavam chineses versados em Kung Fu para lutar com praticantes de Karate (lembremos que um dos professores de Funakoshi, Itosu criou o Katas da série Heian para poder popularizar o Karate e ajudar no esforço do militarismo nipônico). O pagamento consistia numa sacola de arroz. O mestre que no começo do filme duelou de maneira amistosa com Ip Man é morto com um tiro pelas costas por um oficial japonês (o japonês falado por eles é rude e áspero, quase de baixo calão, mesmo o falado pelos oficiais), Ip Man pede para entrar na arena e luta com dez japoneses ao mesmo tempo, derrotando a todos. Ao sair ele não leva sua recompensa, dez sacos de arroz, apenas pega o saco de arroz ensanguentado que pertencera ao mestre caído. Ao ser questionado sobre sue nome ele responde “sou apenas um chinês”. Nesse momento Ip Man é mais do que um homem, ele é a encarnação da vontade inquebrantável de toda uma nação, posta de joelhos, mas ainda orgulhosa.

Ip Man finalmente começa a ensinar seu Kung Fu não premido pela necessidade (pecuniária ou de qualquer outra sorte), mas ao reencotrar seu “sócio” que se vê acossado por bandidos. Para defender sua fábrica ele ensina aos empregados o seu método de Kung Fu, e depois com a ajuda de seus novos pupilos derrota os bandidos. Ao final, como era de se esperar em um filme como esse, ele se confronta com o general japonês responsável pela invasão, num duelo de artes marciais. China e Japão se enfrentam, duas nações personificadas em suas respectivas artes marciais. Ip Man vence, e o filme termina com o herói deixando Fo Shan para escapar da perseguição do exército japonês. Pouco importa se essa luta realmente aconteceu, como vimos, Ip Man foi acrescentado ao Caldeirão de Histórias e dali emerge não mais como o pacato professor de Kung Fu de Bruce Lee, mas como herói que representa a própria China, seus valores e sua identidade.

A perspectiva de Tolkien se assemelha, em linguagem poética, a perspectiva psicológica apresentada por Jung em sua teorização sobre os arquétipos.

O homem primitivo não se interessa pelas explicações objetivas do óbvio, mas, por outro lado, tem uma necessidade imperativa, ou melhor, sua alma inconsciente é impelida irresistivelmente a assimilar toda experiência externa sensorial a acontecimentos anímicos. Para o primitivo não basta ver o Sol nascer e declinar; esta observação exterior deve corresponder – para ele – a um acontecimento anímico (...) Todos os acontecimentos mitologizados da natureza (...) não são de modo algum alegorias destas experiências objetivas, mas sim, expressões simbólicas do drama interno e inconsciente da alma, que a consciência humana consegue apreender através de projeção – isto é, espelhadas nos fenômenos da natureza. (Jung, 2003, pp.17,18).

Ip Man, ao ser jogado no “Caldeirão de Histórias”, passa a importar pouco como personalidade histórica, sua imagem é, assim como os fenômenos naturais foram um dia, assimilada pela alma inconsciente. Diferente de um conto de fadas, onde os personagens são extremamente caricatos, o Ip Man do filme possui nuances humanas, uma personalidade que torna a identificação com ele por parte do espectador ainda mais poderosa. A situação apresentada no filme é uma situação arquetípica, no sentido de ser uma experiência coletiva, a luta pela sobrevivência em situação extrema, tanto no que diz respeito à sobrevivência individual quanto à sobrevivência de uma cultura e de uma nação. Mesmo a situação de guerra é algo que igualmente constela imagens arquetípicas naqueles que estão envolvidos. Não à toa existem deuses da guerra e entre os primitivos existiam tantos rituais associados a guerra e ao ethos guerreiro. Ip Man atravessa essas situações adversas de maneira exemplar, e devemos tomar essa palavra em sua radicalidade, pois o herói é um modelo exemplar, algo que nos ajuda a moldar nossa vida e nosso comportamento.

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

A Escrita


De vez em quando me permito escrever algo mais pessoal, e hoje resolvi escrever sobre os motivos que me levam a escrever. Certamente há algo de paradoxal em minhas motivações para a escrita, pois a despeito de possuir um enamoramento com as palavras também sinto um certo recato. Ao escrever, ao dispor as palavras sobre o papel, seja sobre que tema esteja tratando, do mais objetivo dos temas ao mais fatalmente subjetivo, tenho sempre a sensação de que ali se encontra a minha alma pelo avesso. Minhas entranhas expostas de maneira obscena para a observação de estranhos. Mas esse sentimento é derrotado por outros mais poderosos que me compelem a continuar arrumando as palavras com esmero ao dispô-las sobre o papel.

O principal e mais poderoso motivo que me leva a sempre escrever é que sei que é isso que deus quer de mim. Escrever é o meu caminho de bem-aventurança, algo que eu preciso fazer, algo que torna meu destino e minha liberdade idênticos. Só sou livre quando compelido a escrever. Mas há uma motivação um pouco mais prosaica. Talvez eu possa traduzi-la melhor através de um exemplo concreto. Estava hoje assistindo a uma aula enfadonha de um professor medíocre, na realidade procurava me abster o mais possível da tal aula, e lia o livro de William James “varieties of religious experience” clássico escrito em 1902. A letra de James possui em mim efeitos os mais estranhos. Primeiro há uma sensação de alegria e deleite nos píncaros de intelectualidade e brilhantismo que enxergo em sua obra, há em sua erudição algo que me intoxica, como um vinho forte e me remete de maneira poderosa ao reino das ideias, me exila do meu corpo e me coloca a refletir furiosamente como nenhum outro autor consegue fazer, nem mesmo Jung.

Enquanto estava eu preso de meu enlevo intelectual e estético, a aula prosseguia, em sua monotonia e mediocridade, e o enlevo deu lugar, como fatalmente acontece, a um profundo sentimento de solidão. Ao comparar a minha leitura as tolices sendo proferidas em sala de aula, pude perceber como a ciência e a cultura, especialmente a Psicologia, podem caminhar a passos largos para trás. Como nossa consciência é efêmera e se prende as platitudes do momento que não fazem jus aquilo que homens de vulto como James pensaram décadas atrás, mas o fetiche pelo novo faz com que sejam repetidas fórmulas vazias e a tara moderna pela metafísica da matéria de maneira irrefletida e medíocre produz obviedades.

Nesse momento, meu Cáucaso Particular, sinto-me profundamente isolado, cercado de gentes, mas sozinho. A terra das ideias e pensamentos é uma terra bela, mas árida, onde poucos se aventuram a penetrar em seus locais mais recônditos e o viajante incauto está fatalmente caminhando sozinho. Muito poucos são capazes de apreciar o valor da obra de William James, menos ainda são capazes de compreender suas ideias, e um número ainda mais reduzido de fazer algo com elas, como, por exemplo, Jung fez. Não sei se posso me contar entre esses poucos, elite de seres quase fantasmagóricos e ensimesmados. As ideias e imagens que habitam o meu peito, meus sonhos e visões, meus estudos e leituras marcam as minhas entranhas, e queimam a ferro a minha alma, de tal sorte que essas escarificações me constituem e me distinguem de modos que eu mesmo não posso compreender totalmente. O alimento da minha alma, eucaristia que tomo com até mais ardor do que o alimento de meu corpo me separa do convívio dos meus semelhantes. E toda solidão é triste, pois há em nós o poder do instinto gregário a querer unir e não separar, almejar ser igual e não diferente, a querer concordar e não ser ovelha negra, mas ovelha alva a balir docilmente como as demais.

Eu tendo ao exagero, mesmo que haja um prazer perverso na massificação, que atrai pela via fácil do esquecimento de si em prol da ficção de um estado todo poderoso, ou de qualquer outra ficção que reduza o homem a mera recorrência estatística, não é disso que eu falo. Mas da compreensão muda e calorosa que há entre os homens simples. Certa feita assisti a um filme em que o protagonista se descrevia como “a simple man with simple thoughts”, sua maior realização tinha sido no reino do sentimento, pois amara com todo o seu ser e todo o seu coração. Eu invejei esse personagem! Como gostaria de juntar meus pedaços contraditórios em um todo simples, os muitos eus em algo coerente e simples.

Há nesse desejo pela compreensão daquilo que me vai a alma, da sensação, mesmo que efêmera, de que não estou só pois há algo de mim que pode ser comunicado, que me fascina na escrita. Mesmo a fala não possui esse encanto, nela o corpo confunde e obscurece, nas palavras escritas a alma pode se revelar sem maiores pudores e de maneira mais clara e assim suas cicatrizes ficam a mostra. Assim, mesmo sendo uma labuta solitária a escrita se destina a alguma alma irmã, que de alguma maneira misteriosa terá um certo enlevo com minhas palavras e sentirá algo do arrebatamento que sinto ao ler aquilo que James escreveu já há mais de cem anos. Existe a esperança, nem que seja ilusória, de que por um momento que seja, estarei na companhia de alguém, mesmo que seja apenas um fragmento de minha alma que viaja junto das letras a distâncias que não posso nem mesmo começar a imaginar. As distancias que separam duas almas em muito superam as incríveis cifras da astronomia, mesmo para alguém que está de pé ao seu lado.

Por esse, é outros tantos motivos, alguns desconhecidos mesmo para mim, pois existem distâncias mesmo no interior de minha própria alma, territórios que quedam ainda inexplorados, que escrevo. Escrevo pelo motivo prosaico de que sou um homem solitário e não tenho qualquer outro meio de comunicar minha solidão aos meus semelhantes. Minha fala me trai, há sempre um sorriso, um comentário jocoso, uma tirada espirituosa a ludibriar aqueles que me escutam. Meu corpo me trai, pois há sempre um gesto altivo, um olhar distante, uma postura desempenada e presunçosa que revela apenas a superfície e esconde as profundezas. Apenas a letra, quando estou nesse ofício longe de tudo e todos, me é fiel, fidelíssima. Ela revela mais do que esconde, nela meu rosto está oculto, minha voz é muda e meu sorriso uma quimera! Apenas a alma se revela em sua melancolia e solidão. Mas não é apenas isso que se revela, ai de mim se eu fosse apenas isso. De meus passeios eu trago pensamentos e belezas, imagens grandiloquentes, tudo aquilo que me transforma e me faz ser quem eu sou, que mesmo que me separe, que me isole, precisa ser comunicado de alguma forma.

Triste sina essa, estar junto de meus semelhantes apenas quando deles estou separado. E que incrível paradoxo, tantas são as barreiras que nos separam quando seus olhos fitam minhas palavras e através desse prisma a minha alma, mas à distância nos une. Há aqui um mistério e uma maravilha que vale a pena todo sacrifício. Pode parecer que para mim é penoso escrever, mas essa impressão é falsa, é algo que liberta dos grilhões da minha prisão, tal qual Héracles a partir as correntes de Prometeu. Há algo de divino que se insinua no mundo mortal apenas através das letras, afinal elas concedem imortalidade. Há muito o corpo de William James virou pó, mas há algo de sua alma, de sua grandiosidade, humor e inteligência que vive e inspira vida em mim através das letras que ele lidamente dispôs sobre o papel...

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Hotel Transylvania


A animação Hotel Transylvania, dirigida por Genndy Tartakovsky (o mesmo de outras animações como: the Powerpuff girls, Samurai Jack, Dexter Laboratory, e a primeira versão animada as Clone Wars), traz de maneira sutil uma mensagem ideológica das mais interessantes de ser pensada. A animação lembra, e provavelmente se inspira, em a Família Monstro e a Família Adams, bem como a animação japonesa Don Drácula. Nesses seriados antigos os monstros apareciam como diferentes (no caso da família monstro a analogia se tornava ainda mais clara: além de monstros eram imigrantes estrangeiros), eles eram diferentes, pois possuíam costumes e hábitos diferentes, comiam comidas estranhas e repugnantes à sensibilidade americana, e seus valores (principalmente estéticos) eram quase opostos (sendo o feio bonito e vice-versa). A animação de Tartakovsky parte de premissa similar, os monstros são “outros”, eles possuem aparência, hábitos e uma cultura diversa da dos humanos. Há um disfarce aqui, a história parece ser, ou tenta ser, uma história de amor, mas seu tema principal é a xenofobia.

A história de amor entre a jovem filha de Drácula, Mavis, e o humano que surge de maneira inesperada em meio a sua festa de 118 anos não é o mote principal da história, e eles não são os protagonistas, mas sim Drácula. Não há um grande conflito aqui, eles imediatamente se apaixonam, a primeira vista, e seu amor vai apenas crescendo e se confirmando à medida que se conhecem melhor. O conflito se dá entre Drácula e o jovem humano chamado Jonathan. Drácula teme os humanos e não sem razão, eles incendiaram a sua casa e mataram a sua esposa, devido a esses fatos trágicos ele construiu um hotel inexpugnável, onde nenhum humano jamais se atreveria a colocar os pés. Assim Mavis estaria para sempre protegida do preconceito que os humanos nutrem contra os monstros e sua capacidade para a destruição. Certamente as imagens de preconceito e xenofobia poderiam ser comparadas a várias possibilidades, mas tendo em vista que o desenho foi produzido nos Estados Unidos, e nosso atual contexto histórico de uma disputa pela hegemonia do petróleo no Oriente Médio e a Jihad que surge como uma das consequências disso, eu prefiro sugerir que as imagens se referem ideologicamente a essa situação. Que sejam os atritos, preconceitos e mal-entendidos na relação da America Cristã, liberal e ocidental, com o Oriente Médio, Muçulmano e oriental.



Nesse sentido, o filme traz o ponto de vista desses “outros”, os monstros e como eles no veem. Eu sugiro aqui que a analogia que subjaz as imagens do filme dizem respeito aos monstros como esse outro tão incompreensível o mundo muçulmano, e nós, os ocidentais (humanos). Quase como chiste, e nisso vemos que a participação de um dado irracional existencial inalienável sempre logra a nossa consciência racional, que os humanos incendiaram a destruíram a família e a casa de Drácula. Assim como os americanos arrasaram o Iraque (apenas para citar um exemplo). Drácula possui motivos bem reais para temer e odiar os humanos, eles mataram sua esposa e ele precisa proteger sua filha Mavis. Nesse ponto o filme nos lança a uma dupla impossibilidade, nós dividimos o mesmo mundo e isso não vai mudar, temos de nos haver com esses “outros” e nenhum muro é alto o bastante para nos manter separados. Mas não é apenas de muros que o filme fala. Mavis anseia por ver o mundo, se afastar da segurança das paredes de pedra erigidas por seu pai e mesmo a armadura dos mais poderosos Dragões da lenda possuem uma brecha! Drácula aparentemente consegue lograr Mavis, mas é impossível controlar todas as variáveis possíveis num mundo tão complexo e o improvável acontece quando um humano resolve visitar o hotel.

Mavis é uma jovem mulher e vive um dilema que seria típico das jovens do século XIX ou XVIII no ocidente, mas que é vivido hodiernamente por muitas mulheres Mulçumanas. Seus anseios e desejos se chocam com a vontade de seu pai e com as muralhas que ele erigiu, ela é uma prisioneira de uma situação que já existia muito antes dela nascer. Há um dado interessante e insidioso no filme, a garota (Mavis não é uma protagonista nesse filme) é redimida quando seu pai é redimido, e quem consegue tal feito é o Jovem ocidental Jonathan, ele promove a mudança. Mavis precisa ser resgatada, é curioso que num tempo de Princesas Fionas e heroínas como Summer, Mavis precise ser resgatada. Seus esforços fracassam, sozinha ela está destinada a ser uma vítima de um destino cruel que marca o seu nascimento como uma vampira num mundo onde os homens temem e odeiam vampiros (e onde vampiros temem e odeiam os homens).



Um dos diálogos mais interessantes se dá entre Drácula e Jonathan, o rapaz o bombardeia com perguntas tentando descobrir se tudo o que já ouvira falar sobre vampiros é realidade ou mero preconceito, ao perguntar sobre as estacas no coração, se elas realmente matam um vampiro a resposta é das mais espirituosas “sim, mas isso mata qualquer coisa”. O diálogo entre os dois ajuda o rapaz a desfazer uma série de mal-entendidos, mas não há o mesmo interesse da parte de Drácula, ele só que ser livrar do garoto. Nesse ponto convém analisar Jonathan, ele é curioso aventureiro e ousado. Drácula é cauteloso e conservador, literalmente anacrônico, o vampiro vive no passado, incapaz de compreender o presente, preso a preconceitos e ideias datadas e não mostra interesse por descobrir o presente, ele não deseja participar da “aventura de nosso tempo”, ele é um fóssil. De Jonathan parte a iniciativa de perguntar, de dirimir as visões enganosas, ele é um representante do ocidente, da cultura de relativismo do ocidente, do valor da dúvida, do valor da ciência e seu poder frente ao dogma. De maneira insidiosa vai ficando cada vez mais claro o intuito ideológico subjacente ao filme.

Quando a farsa é revelada, e todos descobrem que o garoto estava fantasiado de monstro, mas era um humano, ele finalmente parte e deixa Mavis. Há aqui um dado interessante, Jonathan é mais legal, engraçado e interessante que os monstros, ele rapidamente se torna o centro das atenções. O jovem é cosmopolita, viajado, interessante, ele é o novo. Os velhos monstros se encantam por ele, ele os seduz e fascina com sua espontaneidade. Talvez espontaneidade aqui seja o ponto, ou como diria Norbert Elias em sua reflexão sobre a Alemanha: informalidade. Quando do ocaso do antigo regime e a passagem para a aplicação política das ideias liberais burguesas as sociedades passaram por um crescente processo de informalidade, em oposição ao formalismo aristocrático. Nesse sentido, como em vários outros, Jonathan é a encarnação do liberalismo burguês e o “conde”, um fóssil de um passado aristocrático superado pela democracia e suas infinitas possibilidades. Mas após descobrirem que Jonathan era humano os monstros passam a aceitá-lo pelo que ele é e não pelo estereótipo que construíram dos humanos.

O que leva Drácula a procurar trazer de volta o rapaz de volta é a sua crença no amor. Mavis e Jonathan tiveram o “zig” uma sensação inefável e incontrolável que acontece uma vez na vida apenas e liga de maneira poderosa e indestrutível dois corações. Ao completar 118 anos Mavis recebe um livro escrito por sua mãe descrevendo o amor que a uniu a seu pai e que esperava que um dia isso acontecesse com ela também. A mensagem é quase cristã o amor a tudo supera. O amor é o caminho para unir as pessoas e derrubar barreiras, podemos afirmar que essa concepção é equivocada? Eu não consigo ser tão pessimista. Mas isso leva a um dos pontos mais interessantes do filme, em que sua ideologia se revela de maneira mais clara.

Ajudado pelos outros monstros Drácula precisa deixar seu “casulo” e encarar o mundo, o que ele descobre? Os humanos amam os monstros, o medo e preconceito dos monstros é o que os mantém separados, eles não foram isolados, eles se isolaram. O mundo ocidental está de braços abertos pronto a receber em seu seio os muçulmanos, mas eles preferem se isolar. Os Estados Unidos são conhecidos como “melting pot” um lugar onde as culturas se misturam, uma extraordinária experiência multicultural. Nesse ponto convém salientar uma diferença cultural, a política externa Norte Americana não pode ser confundida com sua cultura, que de fato é multicultural e recebeu e adotou desde irlandeses e poloneses até, mais recentemente (e ainda com divergências e embates) mexicanos e outros latinos. Podemos considerar que o ocidente está de braços abertos esperando pelos muçulmanos? Sim, desde que eles se tornem ocidentais, por isso a América é o “melting pot”. O liberalismo e o relativismo ocidental têm espaço para os mulçumanos, mas não para o seu dogmatismo e falta de relativismo. Desde que eles deixem de ser quem são nós os aceitamos.

Nesse ponto é preciso uma análise mais detalhada do fenômeno religioso que é um dos pontos centrais desse embate entre dois mundos. O ocidente se caracteriza, entre outras coisas, pelo depauperamento simbólico do dogma cristão. Para muitos de nós as majestosas imagens da tradição judaico-cristã já não possuem mais força, não alimentam de vida e sentido a nossa alma. Um símbolo, segundo Jung, é sempre a melhor expressão ou formula possível de um fato relativamente desconhecido, mas cuja existência é postulada. Enquanto um símbolo for vivo ele é a melhor expressão de alguma coisa, enquanto for vivo ele é cheio de significado, mas uma vez extraído ou brotado dele o sentido, ou seja, encontrada a expressão que formula melhor a coisa pressentida o símbolo está morto, ou possui apenas sentido histórico. Todas as imagens simbólicas passam por esse processo, um dos sintomas do depauperamento do dogma cristão foi a Reforma Protestante que o despedaçou de sua unidade milenar. Desse processo, ou em virtude dele, surgiu, por exemplo, a nossa moderna psicologia. Mas isso nos jogou “em queda livre em direção ao futuro” e a todos os problemas que isso acarreta.

Eu me atrevo a sugerir, mas é preciso mais estudos, que o símbolo muçulmano está prestes a passar por fenômeno similar, pois todo fanatismo é sintoma de dúvida interior. O processo que estancou no século XIII, quando Aristóteles foi relegado pelos sábios do Islã que o vinham estudando, parece-me estar retornando novamente à tona na consciência Islâmica, e o choque de culturas acaba tornando inevitável algum grau de relativização. Valores supremos do liberalismo burguês como a liberdade de expressão, ou os direitos individuais, tidos como naturais, se sujeitam no Islã as leis sagradas e reveladas, a Sharia. Campbell apontava que uma das quatro funções do mito é a função sociológica, a de dar respaldo a uma ordem moral específica, a ordem da sociedade da qual surgiu essa mitologia. No ocidente esse papel ainda é desempenhado pela religião, mas de maneira mais discreta e em larga medida foi tomado dela pelo direito, pela filosofia e a política. Numa sociedade tradicional as leis não são relativas, elas são absolutas, foram criadas por deus e obedecem a ditames cósmicos assim como o dia a e noite. Elas não foram criadas pelos homens, mas reveladas e sua verdade é inconteste. Temos aqui um profundo impasse.

Assim como a América não deve ser tomada como uma totalidade monolítica, o Islã também não pode ser reduzido ao Islã mais radical, mas precisamos perceber que as ações ocidentalizantes tomadas pelas grandes nações ocidentais fortalecem ainda mais esse aspecto raivoso e radical do Islã. Tudo isso gera terríveis mal-entendidos, tive recentemente uma conversa longa com um amigo alemão, Timo, e pude perceber que nossa consciência tende a enxergar a religião apenas em seus desdobramentos mais recentes e mais negativos, falar em religião é quase sinônimo de falar em má-consciência ou radicalismo, o que é um erro. Jung distinguia religião de confissão, e o que normalmente se critica é o que Jung denominou de confissão. Nas confissões o elemento genuinamente religioso que é a relação viva e o confronto imediato com o ponto de referência extramundano, torna-se absolutamente secundário. Pertencer a uma confissão nem sempre implica religiosidade, mas principalmente um dado social que nada pode acrescentar a estruturação do indivíduo. O símbolo religioso genuíno é para o indivíduo contrapeso a massificação, e não algo desprezível.

Em meio a todos esses preconceitos e visões míopes, Jonathan fica com Mavis e a liberta de sua prisão, com o consentimento de seu pai. Não há vilões no filme, o que é interessante, e a ampliação de horizontes representada por Jonathan pode se concretizar de uma maneira não violenta, dialogada, sem embates realmente intensos entre o novo e o velho. O amor tudo une e tudo supera. A despeito da ideologia insidiosa da película, creio que não pode haver caminho de compreensão mútua que não passe pelo coração, há um dado irracional em ação em todo slogan e preconceito que media essa dolorosa relação de conflitos entre dois mundos e apelar apenas à razão para solucionar tais conflitos é um desejo quimérico.

sábado, 13 de outubro de 2012

500 Dias Com Ela (500 Days of Summer)




O título do filme em português é explicativo e descritivo enquanto o título original, que poderíamos traduzir de maneira mais literal como 500 dias de Verão, é metafórico, e tal metáfora é importante para se compreender a narrativa do filme. Summer (verão) é o nome da protagonista (a garota hipster perfeita Zoey Deschanel), e a narrativa inteira do filme – que tenta não ser linear, mas composta de idas e vindas no tempo – é pontuada por gravuras que sutilmente associam os estados de ânimo, os humores do outro protagonista (a quem a metáfora se dirige) Tom. Essa pontuação sutil que mostra o relacionamento de ambos (com foco em Tom) como o ciclo das estações é importante para se compreender o intuito do diretor e dos roteiristas. Principalmente quando a pequena árvore que sempre aparece na gravura que pontua os dias (e as estações) volta a ficar florida e a contagem recomeça quando ele conhece uma nova garota, o ciclo inteiro se reinicia. Há algumas leituras possíveis, a primeira é a mais obvia e talvez por isso a mais verdadeira, nossos sentimentos e nossas relações com as pessoas, especialmente as relações amorosas, possuem um traço coletivo muito forte, todos em algum momento se apaixonam (triste de quem foge a essa regra) ou ao menos têm que lidar com os dilemas relacionados ao femino/masculino. Assim como as estações, isso é algo que afeta a todos, inescapável, o que podemos fazer é reagir de maneiras mais ou menos individuais a isso. Esse é um dilema importante no filme, a maneira como lidamos com isso (o amor e suas consequências) e o que determina a forma como lidamos com isso, o que molda a nossa percepção desse fenômeno.

Além disso, a metáfora das estações, que sutilmente conduz o olhar do espectador em meio aos dias bons e ruins de Tom junto de sua amada Summer, traz um significado interessante de que o amor, a paixão, o sofrimento relacionado a tudo isso, é algo de natural, ou representa a natureza em nós, um aspecto que a cultura não foi capaz de suprimir e com o qual temos de nos haver. Nesse sentido, da maneira como lidamos com essa força viva da natureza em nós que se manifesta como os sentimentos que nos transformam em joguetes, aparentemente Summer e Tom representam reações opostas quase antípodas. Summer é o cinismo, a negação do romantismo, a aceitação de que o universo não possui qualquer sentido, de que tudo não passa de coincidência, de que o amor não é uma força cósmica, ela chega mesmo a afirmar que o amor não existe. Summer seria a anti-heroína romântica, que nem mesmo crê no amor, mas, como veremos a atitude dela é uma pose, e muda radicalmente no decorrer do filme, não em virtude dos esforços empreendidos por Tom, mas em virtude do destino e seus caprichos, da força cósmica que é o amor e seu jogo eterno de gato e rato dentro de nossos corações. Tom é a “heroína romântica” do filme, ele acredita no amor, acredita que só poderá ser feliz quando encontrar “a” garota, a mulher de sua vida, um sujeito sensível e adorável, presa fácil de seus humores, e extremamente sentimental, chegando quase a beirar o ridículo e a caricatura, o que só o torna ainda mais adorável aos olhos do público. Eles formam um par antagônico cinismo/romantismo.

O filme parece ser, a princípio, uma crítica, ou mesmo uma paródia séria, das comédias românticas de Hollywood, ele se inicia afirmando que “esta é uma história em que o garoto conhece a garota” a imagem com a qual o filme se inicia, do dia 488 é enganosa, devido a um ícone da cultura estadunidense, o anel de noivado, e o fato dos dois protagonistas estarem de mãos dadas ele sugere o final feliz tradicional: casamento, mas o narrador imediatamente contradiz a imagem. Há aqui uma tentativa deliberada de confundir, de criar duas narrativas que se assemelham, mas que fundamentalmente encobrem uma a outra levando a uma sensação de confusão entre a imagem (o poder sentimental imediato da percepção) e a razão (representada no filme pelo narrador). Nesse momento os protagonistas são apresentados, a crença de Tom no amor romântico é creditada a exposição a música pop britânica melancólica, e ele é apresentado (não pelo narrador, mas de maneira sutil e inteligente através de imagens) como uma personalidade introvertida e prometéica.

Summer é apresentada como o oposto exato de Tom, e o fato principal que marca a sua vida na infância e a define como personalidade é a desintegração de sua família, desde esse momento ela passa a amar apenas duas coisas: seu longo cabelo negro e como ela nada sente ao facilmente cortá-lo. Summer é cínica, insensível e não compartilha das crenças românticas de Tom. As imagens a descrevem como extrovertida e epimetéica, espontânea cheia de vida e carismática. Durante todo o filme ela encarna o ideal da mulher moderna, independente, que pode agir como os homens agem, que pode não se apegar, não ser sentimental e ter relações casuais e superficiais. Nesse sentido, ela é mais viril do que Tom, um sentimental sensível. Ela toma todas as iniciativas no filme, ela dá o primeiro beijo, ela pergunta a Tom se ele gosta dela não apenas como amiga, e ela coloca um ponto final definitivo na relação. Tom possui os traços que seriam tradicionalmente mais comuns na heroína, ele sofre por amor, ele é “vítima” da insensibilidade de Summer, há uma inversão comum aqui de papéis. Summer assume o discurso tipicamente masculino da independência e liberdade e Tom o interesse pelo relacionamento, mas isso é mera fachada.

O narrador prossegue, “essa é uma história de ‘garoto conhece a garota’, mas você deve saber de antemão, essa não é uma história de amor”. Essa é uma premissa falaciosa do roteiro, pois de maneira inteligente o diretor tenta subverter certas convenções desse tipo de filme, apenas para reafirmá-las ainda com mais força. De uma maneira sutil e insidiosa, a narrativa mostra que a atitude de Summer, de independência masculina, só pode causar sofrimento e tristeza. Quando os dois se unem, parece começar a surgir um equilíbrio entre as crenças de um e o cinismo da outra, mas novamente isso é uma prestidigitação, um truque barato, e o velho amor romântico é uma vez mais reafirmado. Com o sofrimento pelo qual passa Tom, ele começa a adotar os pontos de vista de Summer e se tornar um cínico, abandonando seu estado inicial de romantismo e sua crença no destino.

Tom é um arquiteto frustrado, trabalha escrevendo cartões e é muito bom nisso. Ele é sensível e criativo, mas ele é bom em um trabalho que não é seu caminho de bem aventurança, não passa de um emprego, aquilo que foi possível. Tom carrega essa frustração por todo o filme, e isso o afasta ainda mais de Summer. Summer, inconscientemente, em muitas de suas atitudes que parecem ferir Tom procura na verdade elevá-lo, sua mediocridade lhe é insuportável, e quanto mais ele se curva a seus caprichos ao invés de se colocar com mais força e virilidade, mais ele se torna pusilânime aos seus olhos. O problema central é que Tom não é medíocre, mas ele escolheu viver muito abaixo de suas possibilidades, numa confortável vida sem desafios, deixando uma venenosa “vida não vivida” pairando ao redor dele, muito do que ele é ou poderia ser estava nas trevas de sua alma, irrealizado e clamando por realização. Isso fica claro ao final do filme, quando numa festa na casa nova de Summer com ambos já separados ela o elogia dizendo que ele poderia ser um ótimo arquiteto, mas ele apenas faz piada com sua atual profissão.

A profissão de Tom é uma metáfora fundamental. Escrever cartões sentimentais para todas as ocasiões, de feriados a nascimentos, ou mesmo cartões para serem usados no caso de falecimentos. O filme algumas vezes peca pela tendência típica de Hollywood de explicar. Há no filme uma vulgarização do pensamento Frediano, o Deutung (uma interpretação que explica reduzindo a causa) surge logo no início para que o espectador compreenda as motivações mais íntimas e secretas de seus personagens. Importa igualmente suas influências, nesse sentindo é que está a vulgata. Não estamos ainda no campo do freudismo, mas da teoria Freud-Bleuler do trauma. As influências externas são cruciais e explicações de primeira ordem. Summer é traumatizada pela separação dos pais, e Tom sofre a influência decisiva da cultura Pop (no qual se inclui Hollywood) que vende a ele uma visão de mundo romântica que cria expectativas que não correspondem à realidade. Teríamos aqui uma crítica? Não é o caso como mostra o final do filme. Ao final Summer se converte ela mesma em heroína romântica, ela abraça os ideais de Tom e é redimida por eles, e quando o agora incrédulo Tom, descobre a redenção de sua amada, seus ideais retornam com mais força e ele redescobre o amor e o ciclo se reinicia.

A crítica a visão de mundo Hollywoodiana do amor cai por terra e essa mesma visão de mundo ganha status de verdade. O mundo não é um lugar sem sentido, existe o amor para dar sentido à existência. Tom, ao se perder de Summer, parece se encontrar consigo mesmo, desiste de sua profissão com um discurso um tanto patético, resolve correr os riscos de viver o seu sonho e quando faz isso o universo o premia com a mulher dos seus sonhos. Um dos amigos de Tom representa uma crítica mais contumaz a nossa tendência a idealização. Tom tem dois amigos, um deles nunca conseguiu namorar, o outro namora a mesma garota desde o colégio (segundo ele mesmo, teve sorte) ao falar da mulher de seus sonhos há um claro contraste entre sua namorada e sua idealização, mas ele termina dizendo que sua namorada é melhor, pois ela é real.

Tom se aconselha sentimentalmente com sua irmã de doze anos, uma menina muito parecida com Summer, decidida, que teve vários namorados e bem mais centrada que Tom. Por essa metáfora vemos o quanto da vida de Tom não foi realmente vivida, o nível de maturidade de seus sentimentos está abaixo do de uma garotinha de 12 anos. Ele é vítima de seu sentimentalismo. Mas ao final o filme coloca tudo em seu devido lugar, Summer escapa ao determinismo de sua infância e se torna (numa história paralela) uma heroína romântica e Tom percebe que havia uma verdade fundamental na visão de mundo que o alimentou em sua infância introvertida. Ao final ele age com virilidade, ele toma a iniciativa e convida a garota para sair, ele não se veste mais como garoto, mas com roupas de homem, um terno preto, mesmo seu cabelo muda. Sutilmente as imagens marcam seu amadurecimento, sua dura passagem das idealizações da infância para a maturidade, mas paradoxalmente, são essas mesmas idealizações que continuam guiando a sua vida, mas agora sem sufocar seu crescimento e virilidade.

Tom padece pelo que ele é. Pela sua incapacidade de lidar com seus próprios sentimentos. Certa feita Jung afirmou que quando nos apaixonamos aquela pessoa de carne osso, aquela mulher real, torna-se a depositária de nossa alma, e representa para nós uma tarefa. Summer ensina a Tom as qualidades de independência, ação e decisão, o contato com ela o tira de seu marasmo. Inspirado por Summer ele se torna ainda melhor em seu trabalho, fundamentalmente o seu trabalho é expressar sentimentos pelos outros, uma vulgarização do verdadeiro trabalho do artista. Ele se torna bom nisso, pois passa a ter de lidar com seus sentimentos encarnados numa mulher real, passa a ter de lidar com seus medos e limitações e, por fim, ele renega seu trabalho. Quando ele finalmente passa a ser capaz de se expressar, e o faz com clareza e coragem em seu patético e ainda sentimentalóide discurso de demissão, seu trabalho se afigura insuportável. Esse poderia ser visto como um momento de crítica, e o é em um nível muito sutil, mas paradoxalmente o filme caminha para reforçar os ideais burgueses. Todavia, eu mesmo não sou tão pessimista com relação à película, e enxergo aspectos positivos, mas falarei disso adiante. A lição de Summer se concretiza em sua ausência, ao queimar nas chamas do afeto e sofrimento tudo o que é supérfluo vira fumaça e se dissolve, restam apenas os ossos de Tom, apenas o que fundamental e indestrutível. Não a toa ele desejava permanecer no marasmo, poucos têm a capacidade de emergir dessa treva, as 12 léguas de escuridão que lemos na epopeia de Gilgamesh.

Depois disso ele resolve ser ele mesmo, se arriscar, há uma lousa em sua casa, cheia de papeis e recortes, ela a torna “branca” tudo e removido, tudo é jogado fora e há uma metáfora importante, deve-se abrir espaço para o recomeço. A importância do esquecimento, de nos livrarmos de nós mesmos. Tom recomeça, e volta a ler sobre arquitetura. Em sua tristeza, antes desse momento, ele vai ver uns filmes europeus chatos, e neles ele sempre é o protagonista, numa metalinguagem inteligente sobre a identificação, o verdadeiro poder desse tipo de filme romântico. Nesse sentido, há uma passagem em que, assim como Tom se viu na pele dos protagonistas, eu me vi na pele de Tom. Quando ele presenteia Summer com um livro importante para ele. O gesto é de doação daquilo que há de mais precioso, daquilo que traduz a sua alma, ele diz tome, me leia, me compreenda, me possua. Claro que um gesto tão grandiloquente e exigente, intenso em demasia não funciona como o esperado. Como eu disse, o gesto calou fundo em mim, pois recentemente fiz presente de dois livros a duas garotas com idêntico resultado, não deem livros, flores, o segredo são as flores. Flores murcham e morrem, livros persistem, livros são complexos, demandam uma tradução, são exigentes, você precisa gastar tempo com eles, se dedicar a eles. Flores lhe fazem sorrir e em seguida podem ser postas de lado e morrer em paz num canto esquecido. A não ser que um espinho machuque seu dedo flores são inócuas, livros não, livros deixam marcas, marcas na alma que não podem mais ser retiradas, isso assusta. Tom, quando se torna sentimentalmente mais complexo dá a ela não um cartão para traduzir seus sentimentos, mas simbolicamente um livro.



A mensagem do filme, no frigir dos ovos é a de que mulheres querem homens e homens querem mulheres. O sentimental e indeciso, quase afeminado Tom não é o que Summer procurava, e a Decidida, independente e viril Summer não podia ser a garota ideal para Tom. Em um dado instante, Tom se torna um homem e Summer uma garota, nesse momento o destino lhes envia a pessoa certa. Vejo dois níveis possíveis de entendimento aqui, paradoxais mais ambos possíveis. Um positivo e outro negativo. De maneira negativa poderíamos afirmar que o filme reforça e reafirma os valores patriarcais e o individualismo burguês. A mulher independente, descrente do amor e dos valores familiares, de atitude viril e voltada para o trabalho se casa. A instituição do casamento surge como promessa de final feliz, e mesmo Tom reencontra seu caminho para o amor romântico, para a certeza de um sentindo cósmico transcendente para a existência, há um viés ideológico no filme.

Por outro lado, num sentido mais profundo (paradoxal, mas não contraditório) o filme me parece surgir como compensação sintomática a traços de nossa cultura que são geradores de angústia. Como gostava de afirmar Campbell, nós estamos em queda livre em direção ao futuro. Todos nós temos a missão de imbuir de algum sentido a nossa vida, de torná-la significativa e digna de ser vivida sem a ajuda das grandiloquentes imagens da religião. Tom encontra esse sentindo no romantismo da música inglesa adocicada. A crítica racional perde a força se percebermos que essa crença também significa, e isso talvez seja até mais importante, uma vivência emocional. Ora, se isso imbui minha vida de sentido em meio ao caos de vazio e aridez de nosso mundo, quem se importa se isso é algo irracional? É certo que tal crença, que se comporta como símbolo subjetivo, é um pobre sucedâneo a uma religião genuína ou a uma cosmovisão genuína, mas é isso que Tom possui. Não podemos desprezar e destruir algo tão precioso para ele apenas por que não nos parece bom o bastante.

Há mais, Tom é um adulto relutante, em termos sociais ele é um adulto: não mora mais com os pais, terminou a faculdade e tem um emprego. Em termos biológicos ele é um adulto, já tem idade para ser um adulto, seu corpo é o corpo de um adulto. Mas como recentemente me apontou meu dileto amigo e psicanalista Leonardo Barros, a adolescência é fundamentalmente psíquica. Nossos dois protagonistas estão em apuros, Summer e Tom, o tema mítico fundamental que se expressa de maneira moderna nessa película é o mesmo que se pode ver no conto de fadas da princesa e o sapo. Diferente do conto, eles não terminam juntos, mas um redime o outro. Tom devolve a bola de ouro de Summer que havia caído no poço e Summer arremessa Tom Brutalmente a uma parede e faz dele um homem e não um sapo enfeitiçado, preso nessa forma medonha. O casamento é mais do que uma simples instituição, por mais que ele tenha se degenerado em mera obrigação social sem sentido ele também possui um profundo valor simbólico que nos escapa, pois as imagens grandiloquentes do simbolismo judaico-cristão que o imbuem de vida e sentido perderam a força para nós. Nesse sentido temos uma tendência compensatória que, apesar do cinismo, apesar da tentativa malfadada de crítica, surge como final feliz. É a oportunidade, o sacramento de participar da vida de outra pessoa. Num mundo tão cínico e solitário como o nosso quem poderia dizer que em seu sentido mais profundo e simbólico o casamento é algo ruim? Abusus non tolit usum, e como dizia Jung, não se pode culpar a religião pelo que os homens fizeram dela.


Há igualmente o embate entre masculino e feminino. O embate é sutil no filme, e o principal a se compreender, e o filme deixa isso patente, é que os homens não são exclusivamente masculinos e as mulheres não são exclusivamente femininas. Mesmo com o tom intimista, no filme esse embate se dá numa relação real homem/mulher, o que é legítimo. Mas esse embate se dá igualmente em nosso peito. Em dado momento Summer sai de cena e o embate persiste em Tom. Se o caráter ideológico ou o caráter simbólico prevalecem no filme, a resposta a essa indagação eu deixo ao leitor. As situações mostradas no filme são arquetípicas e falam a cada um de nós em níveis diferentes. Há muitos olhares e muitas visões, a cena da alegria de Tom após fazer sexo com Summer é excelente, ela atesta que importam menos os objetos e mais a maneira de apetecer. Pessoas diferentes certamente enxergarão o filme de maneira diferente, e esse texto corresponde certamente a um dos pontos de vista possíveis. Creio que os simples tendem a enxergar a simplicidade e os complicados a complexidade, ambas as posições possuem verdade, mas nunca toda a verdade.





sexta-feira, 12 de outubro de 2012

500 days of Summer




This text was originally published in my facebook (for some reason I wrote in English), and now I’m posting in my Blog. I Hope you enjoy it…

I’ve just watched 500 days of Summer, and I was fooling myself thinking that I’m Tom, but for the last four years I’ve been Summer. There is a lesson in this movie, of course you can make a lot of rationalizations and keen observations, like the crypto-freudian thinking when the director uses their youth as a way to define they character as adults, but that’s not my point. My point is a lot simpler, and it’s not about men and women, but about us as human beings. As this movie testifies, we want what we can’t get, and worst, when by chance we get what we really want we get scared and ruin it, so we can continue unsatisfied. We are also trapped in a strange and new situation, when, after centuries of not having a choice, we can finally choose the people we love, our ancestors did that to us. In the past, not so long ago, society made that choice for us, but now we can choose any one we like. And what we discover? It’s not that ease, most part of the time you just can’t choose, you’re indecisive, there are so many choices! But when you finally decide you choose the wrong person, or someone who don’t care about you, and you don’t give a fuck for the person who has chosen you! And life goes on and on, and you start to realize with a sense of bewilderment that we can’t choose or control that. Somehow we see, after been blind for a long time, that there is this force of nature inside of us, almost incontrollable, that make all that choices without any regard for what we like or what we want. After that, a few wise men (or rather wise human beings) realize that we can’t control that force but we can, at least, be friends with that, learn to hear it, and try to live a more complete and full live. Some, even wiser, realize, after a lot of pain, that we attract what we are, if you are indecisive you are going to feel attracted for indecisive person, cause these persons are going to be a lesson to you, and if you don’t learn, that’s just too bad for you, cause the cycle go on… until the day you die. We are looking for happiness in the wrong places, we think we have some sort of control but we are been controlled, and worst, we don’t even Know, that’s the sad part. When you face a choice, when you face a dilemma of any sort, in the end, what you are really facing is yourself, nothing more. What you are is going to save you or put you in a lot more trouble. Doesn’t matter if you can get the perfect girl, the one, if you are not the one, if you still indecisive and immature, if that’s the case the end will be disaster, at least, make the best of it and learn something, grow up a little bit, and keep going… where you might ask, I don’t know, sorry, but keep going any way, if you ever get’s there you will know when you arrive… (I hate to sign the things I write, but this time I will make an exception) Heráclito Aragão Pinheiro,  Fortaleza, 12/10/2012 

terça-feira, 9 de outubro de 2012

As eleições em Fortaleza: Moroni e Roseno


Há muito o que refletir sobre o primeiro turno das eleições municipais de Fortaleza, especialmente sobre os candidatos derrotados. Inácio Arruda teve uma votação tão pífia que me leva a não perder muito tempo com ele, mas dois dos candidatos derrotados merecem alguma consideração. Moroni é um sujeito estranho, já se candidatou algumas vezes e é sempre derrotado, não importa a conjuntura, mas ao que parece, ele sempre incomoda. Nessa última eleição ele esteve na frente das pesquisas de intenção de votos por um tempo considerável. Existem aí duas possibilidades: que tenha havido algum tipo de manipulação – coisa que não descarto – e um certo fascínio exercido pelo discurso simplório de Moroni que o manteve vivo nas pesquisas por mais tempo do que seria normal. Moroni não possui propostas novas, são as mesmas desde que ele começou a se candidatar a prefeito. Seu discurso é criptonazista e facistóide, e sua única resposta a qualquer problema da cidade é: mais polícia.

Mesmo assim, ou graças a isso, Moroni angaria simpatias em Fortaleza. Ele representa a extrema direita em nosso estado, com respostas simples e falaciosas para todo e qualquer problema, mais homens na rua resolve os dilemas da segurança, saúde e educação. Ainda assim, sua votação não é de todo desprezível, com sua retórica fascista ele atrai eleitores insatisfeitos e seduz pela simplicidade. Não nos iludamos, espíritos simples procuram e se encantam com respostas simples. Moroni possui um discurso que é simples e direto e fala aos anseios de muitos, sejam esses anseios confessáveis ou inconfessáveis.

A popularidade do discurso de Moroni sempre me coloca em estado de alerta, como bem ensina Jung, o nazismo não foi um fenômeno extemporâneo e isolado, poderia ter eclodido em qualquer parte da Europa. Seria Moroni um sintoma de que algo similar à epidemia psíquica que varreu a Europa também nos espreita? Não tenho a resposta, mas a pergunta certamente me preocupa. Mas há um outro candidato que merece uma análise mais atenta, principalmente pelo motivo de que eu o considero muito similar a Moroni: Renato Roseno.

O discurso de Roseno e pomposo, articulado, e repleto de palavras rebuscadas, mas uma análise mais atenta revela algo tão simplório quanto à fala de Moroni. O discurso de Roseno é essencialmente maniqueísta, há uma luta em curso entre os bons – alinhados a ele – e os maus – que são todos os demais. Ele se coloca como Zaratustra moderno e seu discurso não visa tanto convencer, mas moralizar. A fala de Roseno e sua retórica não pretendem demonstrar um ponto de vista, mas a verdade, quase em termos metafísicos. Há um lado bom, detentor de valores superiores, cimeiros e que deve se esforçar por corrigir e educar os demais que ainda não viram a verdade. A verdade liberta, e os que ainda não são livres é porque ainda não foram tocados por essa verdade, eis em essência o discurso de Roseno. Uma análise atenta mostra que boa parte do que ele fala não são inverdades, mas pior, meias verdade. Ou ainda chavões, slogans e platitudes que de tão simplórias e obvias não podem nem mesmo ser rebatidas. Em tempo, quem vai afirmar de sã consciência que não se deve proteger a natureza? Ou combater a corrupção? O discurso simplista de Roseno mostra também um certo descolamento da realidade, mas eu quase chego a crer que é algo proposital.

A quem se dirige esse discurso? Em larga medida aquilo que alguns chamam de “senso comum ilustrado” pessoas que se julgam intelectualmente superiores por não assistirem novelas ou vibrarem com o Big Brother. Normalmente gente que está ou é egressa da universidade e que parece crer que isso basta para separá-los do “vulgo”. Há no discurso de Roseno não apenas uma presunção moral, mas igualmente intelectual. Há um grau elevado de idealização dos dois lados dessa equação, o eleitores de Roseno o vêm como portador de uma verdade, uma “boa nova” e Roseno ativamente se coloca nesse papel de mestre. O descolamento da realidade é necessário a manutenção de um tal estado de coisas, pois o discurso de Roseno e totalitário e totalizante, não há furo, não há lacuna. Ele sempre tem as respostas e está sempre pronto a apontar o dedo para acusar e criticar. O destino inevitável de toda a idealização é a decepção, mas em termos meramente discursivos, em peças de retórica essa idealização encontra o campo mais fértil possível: o dos desejos quiméricos.

Roseno não possui propostas viáveis, nem pretende possuí-las, sua seara, seu campo preferido é o discurso sem corpo. Se sua fala for obrigada a se constituir numa práxis será seu fim. Seu pseudo-messianismo perverso só pode prosperar no campo da irrealização, do que poderia ser e nunca foi, na esperança escatológica do “reino que virá” como recompensa aos justos. O partido dos trabalhadores (PT) é digno de críticas? Certamente, ele cometeu muitos erros? Um fato inegável. Todavia é isso o que acontece quando o discurso esposa a realidade dura. Ao tentar realizar algo é inevitável cometer erros, é até mesmo indispensável. Seres humanos de carne e osso cometem erros, só semideuses nunca o fazem. O discurso de Roseno parece exalta-lo a um patamar sobre-humano. Ele não conspurca sua pureza, não se coliga com ninguém, não recebe dinheiro de ninguém (não duvidaria se ele até mesmo atacasse a ideia mesma do dinheiro), ele é santo, no sentido radical etimológico dessa palavras de “separado”.

A seu modo, Roseno se assemelha a Moroni. Seu discurso é, em essência, simplório e preconceituoso, além de fascistóide no pior sentido da palavra. Moroni, ao menos, me parece disposto a ter o poder em suas mãos (ou a “caneta” como ele prefere), já Roseno não o deseja, e isso me parece patente, menos aos olhos de seus seguidores. Na década de oitenta o PT ostentava um discurso maniqueísta similar, e se colocava como reserva moral, o que foi um erro. Roseno é filho da DS e do PT e é estranho que não tenha aprendido com a lição da história. O Psol não possui quadros para governar, ele mesmo deixou isso claro em entrevista ao ser perguntado sobre como montaria sua equipe. 

No frigir dos ovos, o fenômeno Renato Roseno se explica mais por uma vontade de que as coisas continuam as mesmas do que por um genuíno desejo de mudança. Se fosse esse o caso ele deveria tentar se tornar uma opção viável, o que sacrificaria sua santidade, como fez o PT desde a sua fundação. Ideias e discursos são importantes, importantíssimos eu diria, não à toa me dou ao trabalho de fazer essa análise. O problema de Roseno é justamente essa insinceridade, seu discurso é mero Flatus Vocis é uma quimera que vira as costas ao mundo e almeja uma utopia, ou melhor uma “terra prometida”. Um lembrete a Roseno, o mundo real é um lugar duro, ruim, e implacável, e como diria a filosofia budista, mesmo assim “é a lótus dourada da perfeição”. É nesse mundo que temos de agir, é com ele que temos de nos haver. O discurso moralizante de Roseno se esquiva justamente dos grandes dilemas morais, dilemas que o PT encarou, algumas vezes com sucesso e outras tantas fracassando, mas encarou.

domingo, 7 de outubro de 2012

Esquecimento


Estava eu distraído a ler um livro chamado História e Memória, lia justamente o ensaio que tinha esse mesmo título, sobre a memória quando ao virar uma das páginas me deparei com um fragmento esquecido de mim mesmo. Um pedaço banal de papel, branco, perfeitamente quadrado, com algo escrito. Demorei a reconhecer a minha própria letra, começava com a letra de forma feia com que escrevo quando resolvo ser destro e findava com caligrafia caprichada que tenho quando escrevo com a mão esquerda, ali estava algo de estranho inusitado e que congelou por alguns instantes o tempo do relógio e me desconstruiu.

Começava, ironicamente com um pos-script entre parênteses com a poderosa frase “eu te amo”, seguia-se a esse início deslocado e estranho uma lista:

Fábrica de Brinquedos
A Maldição da Flor de Ouro
Gênio Indomável
Jornada de (ilegível)
Coisas que perdemos pelo caminho

Não lia esse livro há anos, eu o emprestara a um amigo antes dele ir morar no Japão e comprara uma versão mais luxuosa dele para figurar em minhas prateleiras. Ele estava jogado em uma das muitas pilhas de livro que existem espalhadas pela minha casa a espera que eu compre mais prateleiras ou estantes. Eu o achei com facilidade, apesar da bagunça na minha biblioteca e o coloquei na minha pasta de livros. Estava interessado em ler sobre a memória, não as tolices de metafísica da matéria que a neurociência tem a dizer sobre o tema, mas algo realmente interessante, e quis o destino que me deparasse com pedaços meus a muito esquecidos.

Não sei a quem essa nota se dirigia, assim que li os nomes na insólita lista demorei a me dar conta de que se tratava de uma lista de filmes, meu choque ao ler as palavras ali contidas teve o condão de suspender meu julgamento racional e me lançar num estado quase onírico, sonâmbulo. Só posso, depois de recuperado do impacto afetivo de uma tal leitura, tão breve e tão dolorosa como um soco, tentar criar alguma ficção qualquer para suprir essa lacuna. Mas isso eu não desejo.

Ao perceber de maneira tão chocante o quanto eu esqueci, o quanto de mim já não é mais, me fez sentir, após o choque inicial, como se o peso dos anos que se acumulam sobre mim fosse repentinamente tornado mais leve. Amei e não me recordo nem mesmo de ter amado, assim como erros e acertos que jazem para sempre nas trevas espessas do esquecimento, tormentos passados que se foram, pedaços de mim jogados ao léu e que não me prendem mais como grilhões a me ligar a um passado fantasmagórico. Diferente de erros e pecados que eu possa ter me perdoado com o passar do tempo, seja lá o que represente o enigmático pedaço da minha história que contemplei por breves instantes, é algo que eu esqueci. O esquecimento é mais poderoso que o perdão.

Há, ao que me parece, um gozo sinistro no esquecimento, um prazer indizível de não ser. Ou de não ser mais, de não estar mais sólido, de ser vaporoso como os meandros da memória e do encanto particular de nossas ficções cotidianas de amores e rancores, derrotas e vitórias, rochas em perpetua colisão a nos barrar o caminho. Dédalos de nossa alma cujos recantos sombrios já não visitamos mais e por isso não nos assombram. Os mortos estão por fim enterrados e genuinamente mortos quando estão esquecidos. Como os fantasmas das lendas que persistem em sua labuta na terra dos vivos quando algo ainda os mantêm aqui, e quando esse elo se vai eles também desaparecem e nos deixam em paz. Há paz no esquecimento, uma paz que me faz pensar na ideia de Freud de que todos nós lutamos contra uma vontade de autodestruição. O fardo da vida seria por demais pesado se essa força de aniquilação não tivesse suas vitórias sobre a nossa alma de tempos em tempos.

Sou abençoado com uma memória extraordinária, e sempre me ressenti do esquecimento, sempre o encarei como um inimigo a ser combatido. Esse fragmento de esquecimento que segurei entre meus dedos me trouxe uma trégua contra a guerra particular que travava contra o oblivion. O rio que corre na terra dos mortos e de cujas águas todos beberemos para esquecer nossos dias de tormento sobre esta terra, onde vivemos sob a sombra da morte, é mais do que necessário. Tomamos desse cálice mesmo em vida sem o sabermos, e o que ele traz é a eternidade. A eternidade é o aqui e o agora, do qual nos privamos ao estarmos presos ao que já foi ou ao que ainda será. O futuro não existe e o passado é uma ilusão, diriam os mestres Zen, esse pedaço de papel rabiscado foi meu pequeno satori.

Dias depois, caminhando de madrugada eu fui roubado. Um assaltante armado com um revólver levou meu telefone celular, e com ele uma parte artificial de minha memória. Centenas de números, alguns úteis, outros tantos inúteis, agora não os possuo mais. Ou talvez, eles não me possuam mais. Estou livre do fardo que eles representavam. Talvez nunca mais possa, mesmo que precise, ligar para alguma daquelas pessoas, e isso me traz uma sensação como de um vento fresco que sopra das montanhas. Ali havia números que não me diziam mais nada, sem sentido, esquecidos e sem importância, mas ali gravados como um lembrete do que foi e não mais será. Eles se foram, e com eles muito de mim e do meu passado, ou do futuro em que eles poderiam ser úteis novamente, estou livre para a eternidade. Para o único momento que realmente importa: o agora.

Quanto ao pedaço de papel que habitava as páginas do meu livro, ele será queimado assim que eu colocar um ponto final nesse texto. Holocausto oferecido aos deuses esquecidos e sem nome que viveram em eras tão longínquas que se perdem na aurora do tempo. Presenças invisíveis que talvez nem mesmo tivessem nomes no despertar da raça humana para o milagre cósmico que é a consciência. A fumaça irá se elevar até os Deuses e com ele um pedaço de mim, que eu já nem sabia mais que existia e que não me fará falta. Essa ausência me constitui mais do que muitas de minhas mais queridas lembranças.