quinta-feira, 18 de outubro de 2012

A Escrita


De vez em quando me permito escrever algo mais pessoal, e hoje resolvi escrever sobre os motivos que me levam a escrever. Certamente há algo de paradoxal em minhas motivações para a escrita, pois a despeito de possuir um enamoramento com as palavras também sinto um certo recato. Ao escrever, ao dispor as palavras sobre o papel, seja sobre que tema esteja tratando, do mais objetivo dos temas ao mais fatalmente subjetivo, tenho sempre a sensação de que ali se encontra a minha alma pelo avesso. Minhas entranhas expostas de maneira obscena para a observação de estranhos. Mas esse sentimento é derrotado por outros mais poderosos que me compelem a continuar arrumando as palavras com esmero ao dispô-las sobre o papel.

O principal e mais poderoso motivo que me leva a sempre escrever é que sei que é isso que deus quer de mim. Escrever é o meu caminho de bem-aventurança, algo que eu preciso fazer, algo que torna meu destino e minha liberdade idênticos. Só sou livre quando compelido a escrever. Mas há uma motivação um pouco mais prosaica. Talvez eu possa traduzi-la melhor através de um exemplo concreto. Estava hoje assistindo a uma aula enfadonha de um professor medíocre, na realidade procurava me abster o mais possível da tal aula, e lia o livro de William James “varieties of religious experience” clássico escrito em 1902. A letra de James possui em mim efeitos os mais estranhos. Primeiro há uma sensação de alegria e deleite nos píncaros de intelectualidade e brilhantismo que enxergo em sua obra, há em sua erudição algo que me intoxica, como um vinho forte e me remete de maneira poderosa ao reino das ideias, me exila do meu corpo e me coloca a refletir furiosamente como nenhum outro autor consegue fazer, nem mesmo Jung.

Enquanto estava eu preso de meu enlevo intelectual e estético, a aula prosseguia, em sua monotonia e mediocridade, e o enlevo deu lugar, como fatalmente acontece, a um profundo sentimento de solidão. Ao comparar a minha leitura as tolices sendo proferidas em sala de aula, pude perceber como a ciência e a cultura, especialmente a Psicologia, podem caminhar a passos largos para trás. Como nossa consciência é efêmera e se prende as platitudes do momento que não fazem jus aquilo que homens de vulto como James pensaram décadas atrás, mas o fetiche pelo novo faz com que sejam repetidas fórmulas vazias e a tara moderna pela metafísica da matéria de maneira irrefletida e medíocre produz obviedades.

Nesse momento, meu Cáucaso Particular, sinto-me profundamente isolado, cercado de gentes, mas sozinho. A terra das ideias e pensamentos é uma terra bela, mas árida, onde poucos se aventuram a penetrar em seus locais mais recônditos e o viajante incauto está fatalmente caminhando sozinho. Muito poucos são capazes de apreciar o valor da obra de William James, menos ainda são capazes de compreender suas ideias, e um número ainda mais reduzido de fazer algo com elas, como, por exemplo, Jung fez. Não sei se posso me contar entre esses poucos, elite de seres quase fantasmagóricos e ensimesmados. As ideias e imagens que habitam o meu peito, meus sonhos e visões, meus estudos e leituras marcam as minhas entranhas, e queimam a ferro a minha alma, de tal sorte que essas escarificações me constituem e me distinguem de modos que eu mesmo não posso compreender totalmente. O alimento da minha alma, eucaristia que tomo com até mais ardor do que o alimento de meu corpo me separa do convívio dos meus semelhantes. E toda solidão é triste, pois há em nós o poder do instinto gregário a querer unir e não separar, almejar ser igual e não diferente, a querer concordar e não ser ovelha negra, mas ovelha alva a balir docilmente como as demais.

Eu tendo ao exagero, mesmo que haja um prazer perverso na massificação, que atrai pela via fácil do esquecimento de si em prol da ficção de um estado todo poderoso, ou de qualquer outra ficção que reduza o homem a mera recorrência estatística, não é disso que eu falo. Mas da compreensão muda e calorosa que há entre os homens simples. Certa feita assisti a um filme em que o protagonista se descrevia como “a simple man with simple thoughts”, sua maior realização tinha sido no reino do sentimento, pois amara com todo o seu ser e todo o seu coração. Eu invejei esse personagem! Como gostaria de juntar meus pedaços contraditórios em um todo simples, os muitos eus em algo coerente e simples.

Há nesse desejo pela compreensão daquilo que me vai a alma, da sensação, mesmo que efêmera, de que não estou só pois há algo de mim que pode ser comunicado, que me fascina na escrita. Mesmo a fala não possui esse encanto, nela o corpo confunde e obscurece, nas palavras escritas a alma pode se revelar sem maiores pudores e de maneira mais clara e assim suas cicatrizes ficam a mostra. Assim, mesmo sendo uma labuta solitária a escrita se destina a alguma alma irmã, que de alguma maneira misteriosa terá um certo enlevo com minhas palavras e sentirá algo do arrebatamento que sinto ao ler aquilo que James escreveu já há mais de cem anos. Existe a esperança, nem que seja ilusória, de que por um momento que seja, estarei na companhia de alguém, mesmo que seja apenas um fragmento de minha alma que viaja junto das letras a distâncias que não posso nem mesmo começar a imaginar. As distancias que separam duas almas em muito superam as incríveis cifras da astronomia, mesmo para alguém que está de pé ao seu lado.

Por esse, é outros tantos motivos, alguns desconhecidos mesmo para mim, pois existem distâncias mesmo no interior de minha própria alma, territórios que quedam ainda inexplorados, que escrevo. Escrevo pelo motivo prosaico de que sou um homem solitário e não tenho qualquer outro meio de comunicar minha solidão aos meus semelhantes. Minha fala me trai, há sempre um sorriso, um comentário jocoso, uma tirada espirituosa a ludibriar aqueles que me escutam. Meu corpo me trai, pois há sempre um gesto altivo, um olhar distante, uma postura desempenada e presunçosa que revela apenas a superfície e esconde as profundezas. Apenas a letra, quando estou nesse ofício longe de tudo e todos, me é fiel, fidelíssima. Ela revela mais do que esconde, nela meu rosto está oculto, minha voz é muda e meu sorriso uma quimera! Apenas a alma se revela em sua melancolia e solidão. Mas não é apenas isso que se revela, ai de mim se eu fosse apenas isso. De meus passeios eu trago pensamentos e belezas, imagens grandiloquentes, tudo aquilo que me transforma e me faz ser quem eu sou, que mesmo que me separe, que me isole, precisa ser comunicado de alguma forma.

Triste sina essa, estar junto de meus semelhantes apenas quando deles estou separado. E que incrível paradoxo, tantas são as barreiras que nos separam quando seus olhos fitam minhas palavras e através desse prisma a minha alma, mas à distância nos une. Há aqui um mistério e uma maravilha que vale a pena todo sacrifício. Pode parecer que para mim é penoso escrever, mas essa impressão é falsa, é algo que liberta dos grilhões da minha prisão, tal qual Héracles a partir as correntes de Prometeu. Há algo de divino que se insinua no mundo mortal apenas através das letras, afinal elas concedem imortalidade. Há muito o corpo de William James virou pó, mas há algo de sua alma, de sua grandiosidade, humor e inteligência que vive e inspira vida em mim através das letras que ele lidamente dispôs sobre o papel...

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