sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

Palestra no curso de capacitação do livro cidade da gente em Juazeiro

Vou começar contando uma história que todos vocês já devem saber, justamente por todos vocês já saberem. Conta-se que o Padre Cícero resolveu vir morar em Juazeiro depois de ter tido uma visão de Cristo e dos doze apóstolos lhe dizendo que cuidasse do povo daqui e assim o fez. Assim como essa história, envolvendo o famoso patriarca de Juazeiro, há muitas outras que povoam o imaginário não apenas de Juazeiro, mas de todo o Ceará, como o encontro entre o padim e Lampião, ou a sedição de Juazeiro, que derrotou as forças do governo federal e depôs Franco Rabelo.
As histórias que nós compartilhamos, essas de que todos se lembram, são justamente aquelas que nos fazem sentir como uma parte viva da história. Para além da minha família imediata, eu também faço parte do lugar onde eu vivo, sou o resultado do que se passou por aqui antes de eu nascer, em certa medida, eu não sou simplesmente eu, mas sou parte de algo bem maior, a minha memória se expande para além daquilo de que me recordo da minha infância e dos meus pais, há uma memória coletiva que me permite dizer que sou de Fortaleza ou de Juazeiro, que me traz uma identidade com o lugar onde nasci ou vivo. Floro Bartolomeu era Baiano, mas constituiu aqui sua história, aqui deitou raízes e aqui em Juazeiro ele deixou sua marca ao lado do padre Cícero Romão Batista. Quando alguém diz que é de Juazeiro, sabemos que se trata da terra de Floro Bartolomeu e do Padre Cícero.
Todos nós em algum momento temos de nós perguntar “quem somos?”, e essa questão vem sempre seguida e só pode ser respondida se soubermos de onde viemos, quais são as nossas origens, onde estão as nossas raízes, de que solo viemos e como esse chão nos influencia. Tanto é que, desde muito tempo se fala na diferença entre o sertanejo e o homem que cresceu na beira da praia, o sertanejo, como disse Euclides da Cunha, é antes de tudo um forte, moldado pelo clima árido e hostil do sertão, não lhe resta alternativa a não ser a força para sobreviver em meio à aridez de sua terra. Muita gente se contenta em saber da história de seus pais e avós, na busca por essa resposta, mas isso não basta, pois não sou constituído apenas pela minha família, sou também a minha vizinhança, o meu bairro, meus amigos, não é à toa que falo “fortaleza é a minha cidade”, pois o lugar onde vivo e onde nasci é tão meu quanto eu sou dele. Mas que laços me unem aos locais e as pessoas que me são próximas? O que nos une, são as histórias que partilhamos, e o fato de sabermos que essa terra, possui uma história, que assim como o sertão com sua aridez e hostilidade, também molda o caráter daqueles que aqui habitam.
Os personagens famosos dos locais muitas vezes traduzem o caráter, a alma de um povo, nessa terra tão dura e tão severa com seus filhos, as histórias da grosseria de um Lunga, por exemplo, são engraçadas, pois esse personagem traduz um pouco daquilo que é a alma do sertanejo, sua simplicidade e o caráter direto, teimoso e sem arrudeios. É preciso ser teimoso e duro para ter sobrevivido as secas do sertão do nosso Ceará, mas ao mesmo tempo, somos famosos no Brasil inteiro pela gaiatice, e um personagem como seu Lunga sintetiza dois elementos da nossa identidade.
Ao pensarmos nas nossas histórias, elas nos dizem o que significa ser Cearense. Quando estamos fora do nosso estado, se não perdemos as nossas raízes, nos somos ao mesmo tempo um indivíduo, alguém que pode até não gostar de certos aspectos da nossa cultura ou do nosso jeito, mas que não pode negar que possui as qualidades e defeitos dos filhos dessa terra. Antes da terra nos comer, muito antes de nossos ossos serem roídos por ela, a nossa alma já assimilou, comeu a terra e fez dela uma parte de quem nós somos. E para saber quem somos, precisamos conhecer essa memória que não é só minha, mas de todos, e por ser de todos define as minhas raízes, me dá uma solidez que minha personalidade jamais teria se eu não soubesse muito bem de onde vim, que veio antes de mim. Mesmo que eu resolva dizer que não sou nada disso, só posso fazê-lo ao saber o que é tudo isso, do contrário não se pode nem mesmo negar essa influência.
Há uma importância enorme em se pensar a história dos lugares, nosso país é muito grande, e cada um desses locais possui uma realidade social, estudar a história do Brasil não basta, pensar Juazeiro apenas a partir da história do Brasil causa grandes distorções, Juazeiro é parte do Brasil, mas estamos diante de um paradoxo, pois assim como a parte, Juazeiro, não explica o todo, o Brasil, o todo não explica a parte. Voltando a pergunta inicial de quem somos, certamente uma parte disso é explicada pela tradição da nossa família, mas também somos um pouco do que ela não é, há algo de novo na nossa vida, e só posso saber o que é esse novo ao descobrir aquilo que sempre esteve aí.
Existem fenômenos que são próprios de Juazeiro, é claro que essas realidades de Juazeiro compõem o quadro mais amplo do Ceará e do Brasil, mas precisamos entender as especificidades do local, ou corremos o risco de acreditar que tudo o que vem acontecendo aqui é modelado ou ditado de fora, e isso não é verdade. O esforço de compreender a realidade social de um lugar, de entender como ela se constituiu, como foi moldada pela história, pelos acontecimentos grandes e pequenos, pelos muitos personagens que por aqui passaram, permite também perceber que a realidade em que vivemos não é simplesmente algo dado e natural, mas que passou por um processo longo de construção. Ao entender como se constituiu historicamente Juazeiro, que grandes forças atuaram aqui, posso igualmente imaginar uma outra Juazeiro, pois a história não nos aprisiona, mas nos liberta. A história não é um destino inexorável, mas algo do qual todos nós, saibamos ou não, somos atores, e ao nos darmos conta de nosso papel, podemos igualmente tomar em nossas mãos o nosso destino e o do lugar em que vivemos.
Aquilo de bom e belo em juazeiro é fruto de uma história, de uma construção histórica e social, mas igualmente, nossa pobreza e desigualdade, nossos preconceitos, não caíram simplesmente do céu, eles também foram construídos historicamente e, quando percebo isso, e me percebo como um ator dessa história, posso ser um agente transformador. A pergunta “quem eu sou? E de onde eu vim?”, nos leva igualmente a pensar “quem eu quero ser?” e “para onde eu vou”. A nossa memória, as histórias que contamos juntos se referem ao passado, mas também nos permitem imaginar um futuro. Sem o conhecimento da história, não nos damos conta das enormes mudanças que já aconteceram a nossa volta, e muitas pessoas acreditam que a maneira como as coisas são é a forma como sempre foram e devem ser. Outros, por desconhecimento romantizam o passado, com um saudosismo que vê no passado quase o idílio da infância, sem se dar conta que nossos pais e avós tiveram de superar inúmeros desafios para que chegássemos aqui, e essa visão romântica do passado nos nega o futuro.
O livro que vocês agora terão a oportunidade de utilizar foi feito com grande espírito crítico e deve ser o começo, o ponto de partida das discussões em sala de aula. Nenhum livro, por melhor que seja, e esse é sem dúvida um ótimo livro, deve ser sacralizado e tomado como a palavra final sobre um determinado assunto, mas sim como uma oportunidade para começar um debate, um ponto de partida seguro para se discutir um tema, mas o que ele lhe traz não é o conhecimento pronto e acabado, o conhecimento vai se constituir em sala, com os alunos. O livro é uma ferramenta poderosa, mas uma das ferramentas que possibilita essa construção, ele é de grande valia, pois há um material de apoio para tratar do tema da história e geografia local, um material em que o aluno pode se apoiar e retornar a ele, e até mesmo se afeiçoar a ele. O material que foi produzido, certamente o foi com muito carinho e não deve ser difícil se afeiçoar a ele. Mas em se tratando da história do lugar, o livro é um apoio fundamental, mas deve ser um apoio e não o começo e fim desse trabalho. Os alunos devem entender que o debate crítico, como o que foi realizado pelos autores é fundamental, e que aprender sobre história e geografia significa também pesquisar sobre esses temas, e não simplesmente receber o conhecimento de bandeja. Quando eu estava na universidade, uma das minhas professoras, Simone de Sousa, nos sugeriu que pedíssemos aos alunos que pesquisassem quem eram as pessoas que davam nomes as ruas próximas as suas casas, muitas delas personagens da história do local. Em outra oportunidade, sugeriu que pedíssemos aos alunos que trouxessem para a sala objetos que contassem um pouco da história da sua família, que fossem o aspecto tangível da memória compartilhada.
Há muitas maneiras de ensinar a história de um lugar, sendo que uma das mais diretas é ir ao local. Depois de ler sobre um lugar, de entender tudo o que se passou ali, esse lugar que antes parecia tão comum, se torna estranho e maravilhoso, ao mesmo tempo em que se torna, em alguma medida, muito mais familiar do que antes. Espero que com esse livro em mãos, Juazeiro se torna ao mesmo tempo, para seus alunos, um lugar mais familiar e mais estranho e maravilhoso.

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