segunda-feira, 4 de junho de 2018

As histórias de amor de Tolkien, Campbell e Jung


Tenho refletido ultimamente sobre a natureza do amor, mas em termos abstratos, creio que ele seja impossível de capturar, como Proteus o ancião do mar, que sempre que era agarrado assumia uma nova forma e escapulia. Tive uma inspiração, todavia, sobre como tratar desse tema de uma maneira menos fugidia, como de costume, a fagulha de inspiração veio de fora, ao ler uma reportagem acerca de uma exposição sobre a vida de Tolkien. Tenho alguns poucos heróis, dentre eles alguns dos homens que moldaram com suas obras a minha vida e o meu destino, entre eles, os modelos que tive para a minha vida adulta, estão Joseph Campbell, Carl Gustav Jung e J. R. R. Tolkien. Por isso resolvi escrever um pouco sobre as histórias de amor de meus heróis intelectuais, e pais do meu espírito, a quem devo tudo. Talvez assim ilumine algum recanto obscuro da minha própria alma e compreenda melhor como o amor me afeta.
Começo pela que eu acho mais bonita e singela, e que sei de cor, literalmente, como Joe Campbell conheceu sua esposa Jean. Campbell tinha acabado de voltar da Europa, tendo desistido de defender sua tese de doutorado, e em seu retorno teve de lidar com os efeitos da grande depressão de 29. Ele passou dois anos “no mato”, lendo, tendo apenas dois dólares na carteira. Após esse período, ele enviou dezenas de cartas com seu currículo em busca de emprego, até que sua antiga escola o contratou como professor. Um emprego do qual ele não gostava, lembrem-se, esse ainda não era Joseph Campbell, o autor, apenas Joe Campbell, nem mesmo seu primeiro livro A Squeleton Key to Finnegans Wake havia sido publicado ainda. Foi quando recebeu o convite para lecionar no Sarah Lawrence College, uma escola superior apenas para garotas. Joe não estava lá muito empolgado, mas em dado momento ao se ver cercado de belas garotas pensou que não seria mal trabalhar ali.
Campbell era um professor severo, que para evitar qualquer mal entendido exigia ser chamado pelo sobrenome por suas alunas, ainda assim muitas se apaixonaram por ele, sem que jamais o severo professor aceitasse as investidas. Ele conta, porém, que um dia, depois de algumas semanas, notou que em algumas aulas ele se sentia acelerado, levou alguns meses até que descobrisse a causa dessa sensação, era Jean. Enquanto ela foi sua aluna, cultivou uma discreta relação de amizade e proximidade com ela, sem jamais fugir ao decoro de professor. Apenas quando ela se formou, antes de sair em um cruzeiro com os pais ele lhe deu um presente que qualificou de “carregado”, uma cópia do Declínio do Ocidente de Spengler. Quando ela retornou, ele finalmente a pediu em casamento. Ele narra que, quando saíram de carro para a lua de mel, cruzaram com um carro fúnebre, e Campbell interpretou isso como um sinal de que ficariam juntos até a morte, e assim foi. Jean dividiu a vida com Joseph Campbell até o dia de sua morte, ela ainda está viva, tem 103 anos e é uma mulher extraordinária. Nunca tiveram filhos.
Tolkien tem uma história igualmente interessante e singela, da maneira como conheceu e casou com sua amada esposa Edith. A verdadeira história de Beren e Lúthien. A história de amor de John e Edith. Em carta ele escreveu sobre amor e casamento, eu traduzo:
Quase todos os casamentos, mesmo os felizes, são equívocos no sentido que quase que certamemte os parceiros poderiam ter encontrado pares mais adequados, mas a sua verdadeira alma gêmea é aquela com a qual você se casou.

Nenhum homem, por mais verdadeiro que tenha amado sua prometida e noiva na juventude, viveu fiel a ela de corpo e alma sem um esforço deliberado e consciente de vontade, sem auto renúncia.
Tolkien acreditava ardentemente no amor verdadeiro e em seu poder, mas sabia que os homens e mulheres de carne e osso precisavam sempre fazer a sua parte.
John e Edith se conheceram na adolescência, e se apaixonaram perdidamente um pelo outro, ele tinha apenas 16 anos e ela 19. Seu tutor legal, devido a morte prematura de seus pais, o padre Francis Xavier Morgan não estava nada satisfeito com o romance, pois a jovem era Anglicana e não católica. Ele proibiu John de ter qualquer contato com ela até que completasse 21 anos. Ele obedeceu e pacientemente esperou pelos próximos 5 anos. Eu mal posso começar a imaginar a agonia terrível que foram esses 5 anos, 5 longos anos, e só posso crer que o apóstolo Paulo estava correto ao afirmar que o amor é paciente. Ele escreveu ao seu filho Michael contando sobre a extraordinária provação desses longos anos, de como isso foi terrivelmente duro para ela, e de como ele jamais se queixou de qualquer ação tomada por Edith, pois não tinham nenhum voto ou juramento. Nos primeiros 3 anos ele sequer a escreveu, e viveu na mais estrita obediência a vontade de seu tutor.
Na noite em que John completou 21 anos ele finalmente se encontrou com Edith sob o arco de uma ponte, e declarou sou amor a ela novamente, bem como o desejo de passar o resto da vida ao seu lado. Edith, convencida da sinceridade de John, devolveu o anel de noivado que recebera de outro pretendente, desmanchando os planos de casamento, converteu-se ao catolicismo e anunciou publicamente, pouco tempo depois o seu noivado com o estudante pobretão de Oxford. Quando Tolkien esteve nas trincheiras da primeira grande guerra, de onde escapou com vida miraculosamente, todos os seus amigos morreram, ele levava consigo uma carteira que continha apenas 2 fotos de sua amada Edith.
Finalmente chegamos a Jung, talvez o mais turbulento e complicado dos meus 3 heróis. Assim como eles, quando conheceu sua futura esposa, nem de longe era o gigante intelectual que viria a ser, mas apenas um estudante pobretão de medicina, tendo que tomar um vultuoso empréstimo de seu tio, e trabalhar como marchand amador para sua tia para poder custear seus estudos. Não fosse isso o bastante, ainda tinha que lidar com as excentricidades de sua mãe.
Emma Rauschenbach era filha de Bertha Rauschenbach-Schenk, que Jung casualmente viu passando por entre a luz difusa das folhagens de uma árvore e que com seus olhos azuis e cabelos dourados, nessa época uma bela jovem, lhe causou profunda impressão. Mal sabia ele que a reencontraria 21 anos depois e que seria a sua sogra. Muitos anos depois de ter conhecido sua futura sogra, quando ele ainda estava no Gymnasium, Carl foi visitar seu pai, que estava em Sachseln e aproveitou a ocasião para visitar o eremitério onde vivera o santo suíço Bruder Claus. Ele ficou fascinado com a atmosfera do lugar, e ainda sob esse efeito de fascínio, quando descia da colina se deparou com uma jovem beldade loira, esguia e vestindo roupas tradicionais de camponesa que lhe causou grande impressão. Eles desceram o caminho juntos e o jovem Carl tentou conversar com ela, mesmo que desajeitadamente, pois não havia garotas no colégio. Após algumas tentativas ele percebeu que “havia uma parede impenetrável entre eles” e permaneceu calado pelo resto do caminho.
Interiormente Carl ficou abalado com esse encontro por muito, muito tempo, e parece ter acordado do estado infantil de sono inconsciente acerca de sua própria alma. Como ele mesmo afirmou, como ele poderia perceber os fios do destino que ligavam Bruder Klaus aquela bela jovem e a ele mesmo? Ele não podia, mas eles estavam lá.
Tempos depois, Carl ainda era um estudante em Basel, no seu segundo semestre, e estava prestes a visitar um amigo em Schaffhausen, justamente o local onde passara sua infância. Ao saber desses planos, sua mãe sugeriu que visitasse a senhora Bertha Rauschenbach, a jovem de belos olhos azuis que ele conhecera na infância. Carl tinha 21 anos e não a via há pelo menos 20 anos, e iria apenas cumprimentar a senhora Rauschenbach e levar os cumprimentos de sua mãe. Quando ele chegou a casa da rica família, ele viu de relance uma garota loira com os cabelos presos em dois rabos de cavalo e de súbito soube que se tratava de sua futura esposa. Emma Rauschenbach contava nessa época 14 anos. Em suas memórias ele escreveu,
Eu estava completamente trêmulo, pois eu a tinha visto por apenas um breve instante, mas eu soube imediatamente, com absoluta certeza de que ela seria a minha esposa.
Quando Jung contou isso a um amigo ele riu a valer, especialmente pela família Rauschenbach ser muito bem situada socialmente e financeiramente, ainda por cima, Jung não trocou nenhuma palavra com Emma. Seis anos depois, já com um diploma de medicina nas mãos, e ainda profundamente convencido do poder avassalador de sua intuição ao vê-la, Carl pediu Emma em casamento, mas ela o rejeitou. Jung não desistiu, e lhe escreveu inúmeras cartas apaixonadas, todas carregadas de grande beleza e sensibilidade. Emma não resistiu ao charme do jovem Jung e na sua segunda proposta de casamento ela aceitou. Quando ele viajou para estudar em Paris com Pierre Janet em 1902 eles já estavam noivos e se casaram em 14 de fevereiro de 1903.
Emma era brilhante, linda e rica, era uma mulher quieta e de forte personalidade, muito observadora e de uma aguda inteligência. Seus livros sobre a psicologia feminina e as lendas do Graal são um testemunho de seu brilhantismo e profunda compreensão da Psicologia criada pelo seu marido. De acordo com Aniella Jaffe, a calma e tranquilidade interior, que Emma emanava compensava o temperamento vulcânico do marido.
O que eu posso aprender com os meus mestres no que diz respeito ao amor e aos sentimentos, além de seu imenso legado intelectual? Todos eles tiveram uma formidável paciência e persistência, e não duvidaram da verdade e intensidade do seu amor. Todos eles foram arrebatados pelo inconsciente, como Jung acreditava, decisões realmente importantes, como a escolha de uma parceira para a vida toda, não devem ser simplesmente ponderadas conscientemente, mas sim emergir do inconsciente e serem guiadas pelas mais profundas necessidades de nosso ser, de nossa totalidade e não apenas da consciência. Os três tão similares, todos intelectuais, professores e escritores, interessados em filologia e mitologia, todos grandes criadores imensamente criativos e intuitivos. No campo do amor se deixaram guiar pelo fio do destino traçado desde as profundezas de suas almas, sem que o soubessem ou pudessem explicar, foram persistentes e pacientes, suportando o sofrimento da rejeição e da separação, mas sem jamais desistir daquilo que emanava de seu ser mais profundo. Assim como em tudo o mais na minha vida, me resta me inspirar nos gigantes que moldaram o meu espírito, talvez haja aqui lições importantes a serem aprendidas, me resta o esforço de compreendê-las.



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