sábado, 9 de outubro de 2010

Zen





Retomo o meu intuito de analizar algumas histórias Zen a luz da vacuidade, lembrando o ensinamento do prajnaparamita sutra de que "vazio é forma e forma é vazio, vazio é vazio e forma é forma", recordando também que todos os fenômenos compostos são impermanentes, pois dependem de uma série quase infinita de causas e condições para que possam existir, logo, são vazios de existência intrísica. Jamyang Khyentse possui um exemplo interessante para ilustrar esse fato: imagine que você está caminhando por um parque a noite e vê um homem segurando um bastão de madeira, esse homem amarra um pano a ponta desse bastão e depois o coloca em um balde com combustível, após retirá-lo, ele usa um isqueiro para acender o pano, ateando fogo a ele e, ato contínuo, começa a girá-lo, produzindo um belo círculo de fogo. se uma criança pequena chegar nesse exato instante, desconhendo o processo que você presenciou, talvez ao ver o círculo de fogo ele imagine que ele exista de maneira independente. todavia, após presenciar todo o processo que levou ao surgimento do círculo de fogo, você percebe que, se faltar apenas uma das causas e condições, como por exemplo a mão para girar o bastão ou o combustível, ele deixaria de existir imediatamente. o conhecimento dessas causas e condições cambiantes não nos impende de admirar o espetáculo, mas o vemos como ele realmente é, uma ilusão. essa lógica, da impermanencia e da vacuidade, se aplica a tudo, mesmo ao nosso corpo, que devido a sua continuidade, função e consenso pensamos que ele realmente existe. todavia, nosso corpo muda constantemente, e mesmo parecendo sólido, ele é composto de inúmeras partes, e basta apenas uma delas deixar de funcionar para termos sérios problemas.

Pois bem, com tudo isso em mente, apresento a primeira historieta Zen, um discípulo perguntou a um mestre Zen "qual o significado do Dharma Buda?" ao que o mestre respondeu apontando para uma árvore próxima "o ciprestre em frente", o discípulo contrariado retrucou "não use uma metáfora usando objetos concretos" ao que o mestre aquiesceu, voltando a carga ele indagou novamente "O que é o Dharma Buda?" e obteve a mesma resposta, "o cipreste em frente". pensando na vacuidade, que vazio é forma e forma é vazio, acreditar que o cipreste é algo sólido é real na verdade é ignorância, pois como sendo também o cipreste um fenômeno composto, dependente de inúmeras causas e condições cambiantes para a sua existência, ele é vazio de realidade intrísica, ele é Maya. logo, ao apontar para o ciprestre, o mestre enxergava para além dele e apontou para a vacuidade. 

É preciso também destacar que, essa é uma característica particular do budismo Mahayana, no início do budismo, com a compreensão do Hinayana, o pequeno veículo, Buda nunca era representado, normalmente ele era representado por meios indiretos, como pegadas, ou sandálias deixadas para trás, ou mesmo um assento vazio, pois Buda, o desperto, ao vencer Kama-Mara, venceu a ilusão do eu e a deixou para trás, logo ele era aquele que "não veio e nem se foi", todavia, a compreensão Mahayana de que não há difrença entre iluminação e ignorância, samsara e nirvana, e a noção do Bhodysatva como aquele que "participa alegremente das tristezas do mundo" passou a encarar toda a criação como uma manifestação da natureza búdica original, logo, toda a natureza, e qualquer objeto, por mais ordinário que seja, é Buda, é um veículo para a transcendência, e pode ser visto dessa maneira quando  nossa percepção encontra-se para além dos pares de opostos de medo e desejo, o que apermite repousar em sua natureza original e perceber a pura radiância que emana de tudo.

Campbell exemplifica isso com uma bela oração Hindu: "Bhrama é a energia da consciência viva, cósmica e universal da qual somos todos manifestações, Bhrama é o sacrifício, Bhrama é a comida que estamos ingerindo, Bhrama é o consumidor do sacrifício, Bhrama é a escada que leva o sacrifício ao fogo, Bhrama é o processo do sacrifício, todo aquele que é capaz de contemplar Bhrama em todas as coisas está prestes a realizar Bhrama em si mesmo".


Em outra história Zen, a natureza da vacuidade é exposta através da vacuidade de nosso próprio corpo, que também é um fenômeno composto, logo impermanente e vazio de realidade intrínseca. houve uma vez uma bela monja chamada Uptala, um homem se apaixonou perdidamente por ela e passou a perseguí-la. apesar de tentar evitá-lo, o homem era muito persistente e não dava a menor trégua. Um dia ela foi até ele e o confrontou, mesmo aturdido ele explicou que adorava os olhos dela, sem hesitar ela arrancou os próprios olhos e entregou a ele. Uma das causas da paixão desse homem por Uptala eram seus belos olhos, sem eles o fnômeno perdia uma de suas causas e deixava de existir, é claro que o ato drástico gerou nele choque e horror, mas passado o espanto inicial ele se tornou discípulo da monja. essa historieta mostra de maneira dramática e chocante uma realidade que é fundamental ao budismo e que é uma das verdades que mais ferrenhamente evitamos, nosso corpo, como fenômeno composto, também é alvo da impermanência. nosso corpo muda constantemente, de maneiras algumas vezes imperceptíveis. e o processo de decadência se inicia assim que nascemos, por isso, para o budismo todos estamos no estado paradoxal de estarmos vivos e mortos ao mesmo tempo.


Em outro exemplo, não tão chocante, Shigong perguntou a Xitang Zhicang se era possível agarrar o vazio, ao que ele respondeu afirmativamente. Shigong então o desafio a fazê-lo, em resposta Xitang Zhicang agarrou o espaço vazio a sua frente. Shigong retrucou que ele não havia agarrado nada, irritado este disse "então como você faria?" imediatamente Shigong agarrou o nariz dele com força. novamente nos deparamos com o ensinamento do sutra do coração da sabedoria de que "o vazio é forma e forma é vazio", exemplificado de maneira divertida.


Noutra história interessante, a natureza da vacuidade e da impermanência de nosso próprio corpo (que é um fenômeno composto) surge com uma rara plasticidade. O mestre Zen Juzhi, sempre que era questionado sobre o que era o Dharma Buda, mostrava o polegar e dizia "isto", várias pessoas atingiram a iluminação através desse gesto de Juzhi, seu jovem discípulo observou o mestre fazer isso inúmeras vezes, e quando ele não estava por perto, ao ser indagado pelas pessoas que buscavam Juzhi sobre o Dharma-Buda ele repetia o mesmo gesto com igual resultado. Impressionado consigo mesmo ele foi procurar seu professor e lhe disse "mestre, as pessoas perguntam sobre o Dharma, e como o senhor ergo o meu dedo em resposta" enfurecido o mestre gritou "você age como papagaio! isso não é Zen" e bruscamente lhe cortou o polegar. ainda em choque com a violência do mestre, o discípulo o ouviu indagar "o que é o Dharma-Buda", por reflexo ele tentou erguer o dedo inexistente, ao mesmo tempo em que seu mestre fez o mesmo gesto com o polegar. quando o jovem monge contemplou seu dedo cortado subitamente atingiu a iluminação.


O ensinamento da vacuidade não se aplica apenas as coisas sólidas, nossas idéias, valores, ideologias, moral, e hábitos todos são igualmente fenômenos compostos, impermanentes, e dependentes de uma miríade de causas e condições cambiantes que em larga medida desconhecemos e sobre as quais não temos nenhum controle. há uma história Zen famosa que ilustra a natureza de vacuidade de nossos conceitos, na realidade, a ignorância surge do apego a esses conceitos, ao percebermos a natureza ilusória de todos os fenômenos, que tudo é um perpétuo ciclo de mortes e renascimentos, nosso sofrimento e ignorância tem como raiz o nosso apego a algo que é tão imaterial e ilusório quanto o tecido do sonho. Um dia, quando o monge Zen Tanzan e um jovem monje estavam viajando, eles encontraram uma bela jovem em apuros a beira de um rio. Tanzan imediatamente se prontificou a ajudá-la a atravessar o rio, colocou-a nos braços e a levou até a outra margem. quase um dia de viagem depois o jovem monje exclamou "pensei que nós monges devíamos evitar as mulheres, por que fez aquilo?" ao que Tanzan replicou "Você se refere a mulher lá atrás? eu a coloquei no chão há muito tempo. ainda a está carregando?".


Em outro exemplo clássico, típico da tradição Mhayana, para quem o nirvana "a extinção do fogo tríplice do Desejo, da Hostilidade e da ilusão" é na realidade a superação da ilusão da diferenciação dualística da distinção entre nirvana e samsara, ilusão e ignorância, é o exemplo da cobra e da corda. Dzongsar Jamyang Khyentse o ilustra da seguinte maneira: "Digamos que há um homem medroso chamado joão, que tem fobia de cobra. ele entra num quarto mal iluminado, vê uma cobra enrolada num canto e entra em pânico. na verdade ele está olhando para uma gravata listada Giorgio Armani, mas, em seu terror, interpreta mal o que vê, a ponto de quase morrer de medo - morte causada por uma cobra que não existe de verdade. enquanto ele estiver sob a impressão de que se trata de cobra, a dor e a ansiedade que ele vivencia corresponde ao que os budistas chamam de samsara, que é uma espécie de armadilha mental. Para a sorte de João, sua amiga Maria entra no quarto. Maria é calma e equilibrada, e sabe que João imagina estar vendo uma cobra. ela pode acender a luz e explicar que não há cobra nenhuma, que se trata, na realidade, de uma gravata. quando João se convence de que de que não correu risco, seu alívio é justamente o que os budistas chamam de "nivarna" - libertação. todavia, o alívio de João tem por base a falácia de que o mal está sendo afastado, embora a cobra não existisse nem nunca tenha existido nada que pudesse ter feito João sofrer".


Na filosofia Mahayna, a dualidade entre nirvana e samsara deve ser superada, ignorância e iluminação são como uma lâmina e a pedra de amolar, as duas são desgastadas no processo até que nenhuma delas reste ao final. O exemplo da "corda e a cobra", ou nesse caso da gravata Giorgio Armani e a Cobra, expressa de maneira clara um aspecto da filosofia budista que é de difícil compreensão, ou talvez ainda melhor, de difícil aceitação. vivemos num mundo marcadamente materialista, a realidade supostamente objetiva da matéria reina suprema em nossa visão de mundo, e a realidade da alma é relegada, tida como mera fantasmagoria ou efeito de segunda categoria, epifenômeno de causas físicas e materiais. o amor e toda sorte de sentimento é reduzido a algum quimismo cerebral, "algo de saboroso" que exista em nossos cérebros como disse certa vez Jung. Todavia, na visão Budista, "qualquer coisa percebida pela mente, não existia antes de ser assim percebida; essa coisa depende da mente. Ela não existe de modo independente; portanto, não existe verdadeiramente", as coisas que percebemos existem em certa medida, mas são encaradas como Maya, ilusão. Em larga medida, o exemplo ilustra um fenômeno psicológico que Jung denominou de "realidade psíquica", para resumir, ele dizia de maneira suscinta "é real aquilo que atua", enquanto João estava convencido de estar em apuros com a cobra, essa ilusão agiu atl e qual uma cobra real e seu sofrimento e medo foi idêntico ao que ele sentiria diante de uma cobra "real" de carne e osso. obviamente, na filosofia Budista, há uma sutil inflexão, mesmo a cobra de carne é osso é real "apenas em certa medida", ele é um fenômeno composto, logo impermanente, e assim como os demais fenõmenos, exatamente como a cobra de João, depende da mente para existir.


No grupo de meditação do qual faço parte todos procuram diligentemente praticar e tentar "digerir" os ensinamentos, todavia, apesar de ser sempre enfatizado por muitos mestres que o Budismo é uma disciplina prática, ao nos depararmos com a vacuidade, o vazio, acaba-se sempre tentando chegar a algum consenso sobre a utilidade prática, cotidiana, desses ensinamentos. sobre isso, tudo o que posso fazer é dar o testemunho de minha própria experiência de parca compreensão desse ensinamento. mesmo carecendo de prática de meditação e de maior compreensaõ, o ensinamento do prajnaparamita tem tido um efeito prático muito grande em minha vida. ao perceber que as coisas são transitórias, que morte e vida são inseparáveis, ao invés de levar ao cinismo ou desespero, em meu caso, tem me feito cultivar um maior contentamento com o que se passa comigo agora, nesse momento "o passado não existe e o futuro é uma ilusão", e tem em afastado mais e mais de rótulo e expectativas. além disso, é mais fácil cultivar a esperança, mesmo situações terríveis e aparentemente sem solução como por exemplo o problema entre palestinos e judeus, também é impermanente, e como todo fenômeno vazio de realidade intrínsica, ele eventualmente mudará, ou desaparecerá. tem se tornado mais fácil aceitar a vida e as pessoas pelo que são, não pelo que eu gostaria que fossem, e aproveitar as dádivas e problemas que se apresentam com maior plenitude e tenho me enredado menos em venenos da mente como raiva e rancor. certamente, ainda me resta um longo caminho para uma maior realização, mas mesmo que não chegue um dia ao fim desse caminho, se é que há mesmo um caminho ou um fim, a caminhada tem sido das mais aprazíveis. a eternidade é agora. termino com as palavras de Joseph Campbell, em seu O Herói de Mil Faces, ao se referir ao caminho Mahayana:


"O Bodisatva, todavia, não abandona a vida. voltando os olhos da esfera interna da verdade que transcende o pensamento (que só pode ser descrita como 'vazio', já que ultrapassa a palavra) para observar mais uma vez o mundo fenomênico, ele percebe, fora de si, o mesmo oceano de existência que encontrou no seu íntimo. 'A forma é o vazio, o vazio é de fato forma. O vazio não difere da forma, a forma não difere do vazio. O que for forma é também o vazio; o que for vazio também é forma. e o mesmo se aplica ao nome, à percepção, e ao conhecimento'. tendo ultrapassado as delusões do seu antigo ego auto-afirmativo, auto defensivo e voltado para si mesmo, ele conhece dentro e fora, a mesma tranquilidade. fora ele observa o aspecto visual do magnífico vazio que transcende o pensamento, onde se encontram suas próprias experiências do ego, da forma, das percepções, da palavra, das concepções e do conhecimento. e ele fica cheio de compaixão pelos seres auto-aterrorizados que vivem no temor de seus próprios pesadelos. ele se eleva, retorna ao seu meio e habita entre eles como um centro desprovido de ego, por meio do qual o princípio do vazio é manifesto em sua própria simplicidade. e esse é seu grande 'ato compassivo'; pois, por meio dele, é revelada a verdade, segundo a qual, na compreensão daquele em quem o Fogo Tríplice do Desejo, da Hostilidade e da Ilusão se extinguiu, esse mundo é Nirvana. 'ondas de dádivas' fluem desse ser para a libertação de todos nós. 'nossa vida nesse mundo é uma atividade do próprio Nirvana, não existindo a mínima diferença entre este e aquela'.".

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