terça-feira, 5 de outubro de 2010

Conversa com o meu pai

Hoje pensei em escrever sobre como me considero um pai sensacional, mas enquanto pensava sobre o assunto, resolvi escrever sobre um desapontamento que tive ao ter uma conversa com o meu pai aos oito anos. Pois bem, eu leio desde os quatro anos de idade, a primeira coisa que li sozinho foi uma revista dupla do Tarzan e do filho dele, se fechar os olhos ainda consigo virar as páginas dessas revistas e me lembro da história, na época eu a sabia de cor. Aos oito anos, estava lendo o livro que mudaria para sempre a minha vida. Quis o destino que em minha casa houvesse um livro enorme, maior até do que uma bíblia, com as obras completas de monteiro Lobato. Aos oito anos eu o descobri, ele ficava aberto sobre um sofá na sala da casa dos meus avós, e quando eu chegava da escola (que por sinal se chamava Monteiro Lobato) eu simplesmente largava as minhas coisas em qualquer lugar e retomava a leitura do ponto em que havia parado.
Passei um ano lendo esse livro, o li duas vezes, e os dois livros dessa compilação – que tenho até hoje – que mais me empolgaram foram “O Minotauro” e “Os Doze Trabalhos de Hércules”. Esse é o contexto da minha pequena decepção infantil, estava eu lendo O Minotauro, ainda no começo do livro, quando perguntei ao meu pai o que era o Minotauro. A resposta dele foi terrivelmente decepcionante, ele começou a falar que era um homem, que colocava uma máscara de touro e a coisa seguiu por aí, nesse tom. Eu sabia, já aos oito anos, que ele estava redondamente enganado. Meu pai é historiador, e eu esperava dele uma resposta mais adequada e não esse materialismo atroz. Desde aquela época eu já sabia que havia algo de muito errado com esse tipo de resposta, mas não sabia ao certo o que.
Muitos anos depois eu aprendi a resposta correta sobre o que e quem era o Minotauro. Na ilha de Creta, onde floresceu uma civilização muito antiga e misteriosa, mais antiga até do que a civilização helênica, nessa ilha, sede de um grande império marítimo reinava Minos. Ele era filho de Europa, que fora levada até essa ilha nas costas de um touro miraculoso, o próprio Zeus transformado em touro, e com ele se uniu, dessa união nasceu Minos. Esse poderoso rei era casado com Pasífae, que era mãe do Minotauro. As circunstâncias do nascimento do monstro são interessantes. Apesar de sua ascendência divina, filho do grande Zeus, deus dos deuses, Minos teve problemas para conseguir a coroa de Creta. Na luta pelo poder na ilha império, ele teve que contar com o apoio divino. Minos alegava que como era filho de Zeus, a coroa era sua por direito divino, mas mesmo assim seus irmãos lutavam com ele pelo poder. Ele pediu então um sinal aos deuses, Poseidon deveria enviar um majestoso touro saído do mar, que provaria o direito divino de Minos, em troca, como sinal de submissão, Minos o sacrificaria imediatamente.
O touro veio, saído diretamente das ondas, e Minos foi sagrado rei, mas ao ver o quão magnífica era besta enviada pelos deus dos mares, ele resolveu ficar com o animal em seus rebanhos e sacrificou outro em seu lugar. E assim o fez, e sacrificou um belo touro branco no altar de Poseidon, esperando que a troca não irritasse o grande deus. Creta tornou-se cada vez mais próspera e poderosa, e sua capital Cnosso uma metrópole imensa e luxuosa. Mas a vingança de Poseidon não tardaria. O deus, em sua vingança, fez com que a rainha se apaixonasse loucamente pelo touro divino nascido das águas. Cega de desejo, ela fez com que o grande artífice Dédalo construísse uma vaca de madeira para enganar o touro. Quando a réplica ficou pronta, Pasífae entrou na vaca e consumou sua paixão com o touro de Poseidon. Dessa indiscrição da rainha de Creta nasceu o Minotauro, para afastar o monstro hediondo dos olhos de seus súditos, Minos ordenou a Dédalo que construísse um fantástico labirinto, onde lançou o monstro com cabeça de touro e depois o próprio artífice e seu filho Ícaro.
Bem, essa é a resposta correta a minha pergunta sobre o Minotauro, aos oito anos recebi uma resposta inadequada. Campbell entendia o mito como metáfora, as imagens míticas são simbólicas. No entanto, existe duas maneiras de compreender o mito. Essas imagens podem ser entendidas de maneira denotativa ou conotativa. Se alguém interpretar essa narrativa de maneira denotativa, ou seja literal, concretizando os argumentos e considerando que são narrados fatos históricos isso leva a um problema, pois não existem fisicamente touros voadores ou pessoas com cabeças de touro, isso leva a se imaginar que se trata simplesmente de uma mentira, e aí surgem racionalizações como a do meu pai.
Quando falamos dos mitos gregos, é difícil acreditar que alguém os leve a sério a ponto de concretizá-los e realmente acreditar neles de maneira literal, mas se olharmos para os nossos próprios mitos, como o do fim do mundo narrado na bíblia, não é difícil encontrar pessoas que interpretam esses símbolos de maneira denotativa, como previsão de um evento histórico concreto, um final ígneo para a criação. Eu mesmo conheço alguns que assim o crêem, então ficamos no meio de uma grande confusão de duas respostas igualmente errôneas: alguns crêem que os mitos são fatos, realmente houve uma criação em sete dias e um jardim paradisíaco onde Adão e Eva desobedeceram um Deus personificado devido a lábia de uma serpente falante, ao ouvir isso, outros pensam “que tolice” nunca houve em parte alguma uma cobra falante, mitos não podem ser fatos, logo são mentiras.
Por outro lado, nos ensina Campbell, essas imagens podem ser entendidas como metáforas, de maneira conotativa, não como uma referência concreta a fatos ou ao mundo exterior, mas a estados de espírito, que não pertencem exclusivamente a um determinado tempo, localização geográfica ou povo em particular. O universo que elas descrevem é o reino espiritual, a vida interior.  Dizia Campbell: “A mitologia é um sistema de imagens que dota a mente e os sentimentos de um sentido de participação num campo de significados” (Isto és Tu, p. 39). Recentemente, em uma palestra que proferi sobre mitologia comparada e sua relação com a Psicologia Jungiana, falei as pessoas que estavam na palestra, sobre os ensinamentos de uma monja de budismo tibetano chamada Ani Zamba Chozom, ela explicava as palavras de um ritual tibetano, onde se buscava refúgio no Buda e no Lama, ela explicava que havia um sentido esotérico naquelas palavras, um sentido reservado a iniciados, quando se falava no Buda, a referência não era a pessoa de Sidarta Gautama, o buda histórico, mas sim a nossa própria e verdadeira natureza, assim, também o Lama, em última instância, era referência a essa mesma natureza búdica. Não à toa o Zen ensina “se encontrar o Buda mata-o”. Assim, todas as grandes tradições religiosas podem ser lidos dessa maneira, e seu sentido vivo pode ser resgatado. Não a toa o Dalai Lama rotineiramente afirma que todas as tradições são válidas, cada uma delas fala, a sua maneira, ao mistério inefável que é a alma humana.

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