quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Prajnaparamita



Eu estudei e pratiquei Zen por muitos anos, para ser sincero, mais estudei do que pratiquei. Por longos anos eu li e reli dezenas, muitas dezenas de historietas e aforismos Zen, chineses e japoneses, e por muitos anos eu os compreendi mal. Interessante que, após começar a estudar e praticar o budismo tântrico, a vertente Vajrayna do budismo Mahayana, é que comecei há compreender um pouco melhor o Zen. O que soa estranho e paradoxal, já que o Zen não é feito para ser compreendido intelectualmente. Mas, seja como for, passei a entender melhor essas histórias que eu repetia antes como papagaio e a enxergar em quase todas elas um elemento comum, o ensinamento da vacuidade, tenho a impressão de que é sempre e sempre a vacuidade, em cada ensinamento budista enxergo de novo e de novo como elemento central a vacuidade. Não afirmo aqui que essa seja a melhor interpretação, mas que após muitos anos de estudo e prática é isso que percebi, é assim que enxergo as coisas no momento.
Grande parte dessa percepção se deve aos ensinamentos de Ani Zamba Chozon, não apenas as palavras e estudos e práticas realizadas, isso é apenas uma parte. Creio que quem já conheceu um mestre realizado, alguém que mergulhou profundamente em sua vida interior e nadou nessas águas turvas para retornar com a pérola da sabedoria, roubada da boca do dragão, sabe que até mesmo um gesto banal de uma dessas pessoas é prenhe de significado. É realmente uma experiência diferente, no meu caso, nas várias oportunidades que tive de ouvi-la e praticar sob sua orientação, passei por uma experiência interessante. Normalmente em suas preleções ela inicia com a pergunta “o que nós vemos?”, bom eu respondi de imediato, depois ao ver outras dessas preleções, percebi que essa resposta demorava bastante a surgir, quando surgia. Mas mesmo assim, ou apesar disso, minhas outras resposta costumavam sempre tangenciar as perguntas, por um motivo interessante. A cada pergunta eu possuía uma resposta na ponta da língua, uma história Zen, um mito Hindu, uma citação de um autor qualquer. Vendo em retrospecto, minhas respostas apontavam para o caminho certo, mas elas não eram o problema, mas sim a minha atitude.
Por mais de uma vez fui admoestado duramente a responder eu mesmo “no more historys! I want to hear about your experiences!” eu ouvi mais de uma vez, e percebi que aquelas histórias e mitos haviam se tornado um véu que cobriam a minha própria experiência, eles não atuavam vivamente em mim, com deveriam, pois eu me aferrava às palavras. Dongshan, Um mestre Zen, disse certa vez “se uma pedra for atirada a um cão, este irá atrás dela; mas se for atirada a um leão, este irá atrás de quem a atirou. Ao examinar a linguagem do Zen você deveria ser como o leão e não como o cão”. Pois bem o fato é que eu estava agindo como o cão, apesar de ser bastante inteligente, ou precisamente por causa disso. Isso me forçou a examinar, finalmente, as minhas próprias experiências, e essa atitude foi libertadora e ao mesmo tempo profundamente esclarecedora. Eu entendia os meus estados de espírito através dessas histórias e mitos, ao invés de reconhecer neles, a manifestação de sentimentos e estados de espíritos similares aos meus, uma inflexão importante. Por isso seu significado me escapava e escorria entre os dedos. Eu estava aprisionado pelas palavras.
Ani Zamba foi aluna de um mestre da tradição tibetana chamado Dzongsar Jamyang Khyentse, e sugeriu que lêssemos um livro escrito pelo seu professor, cujo título em português é “O que faz você ser um budista”, pois bem, a leitura desse livro também foi de grande valia para alterar a minha perspectiva e começar, timidamente, a perceber com outros olhos todo o conhecimento que eu havia adquirido em muitos anos de estudo sobre o budismo. É preciso que se diga que o budismo e seus vários métodos deve ser considerado tudo menos um “estudo escolástico”, mas sim algo eminentemente prático. Por sinal, em suas várias tradições, a prática é algo indispensável para que se chegue a algum nível de compreensão. É a diferenciação entre saber e realizar o ensinamento.
É meu intuito, analisar aqui algumas das historias Zen a luz dessa minha nova compreensão, nova para mim, bem entendido. Mas é preciso que se esclareçam alguns pontos antes. O budismo é acima de tudo preciso. Ouvi muitas preleções de Ani Zamba e Outros mestres, para a minha sorte possuo uma memória que alguns consideram prodigiosa, pois bem, vou tentar colocá-la em prática. Começo lembrando de uma dessas preleções, após falar longamente ela fez uma pergunta, duas amigas minhas, Márcia e Gisneide estavam anotando tudo diligentemente, e imediatamente começaram a procurar pelas respostas em suas notas, mas foram admoestadas a responder sem apelar para isso, para verem o que realmente haviam digerido dos ensinamentos. Com uma expressão singela no rosto, Ani Zamba falou de como havia perdido todos os seus pertences num incêndio recentemente, incluindo quarenta anos de anotação de ensinamentos e palestras dos maiores mestres tibetanos. Logo, elas não deveriam se fiar nesse tipo de conhecimento.
Bem, no budismo há uma definição clara e precisa do que é “real”, um fenômeno é considerado real se satisfizer duas condições, a primeira a de ser imutável, independente das condições cambiantes, de nossa “confusão mental” ou de nossa perspectiva particular ele deve se apresentar sempre da mesma maneira, independente do observador e não deve se alterar sob qualquer condição. Além disso, ele deve ser totalmente independente para existir, ele não deve depender de nada além de si mesmo para continuar a ser, em outras palavras, estar livre da “originação dependente” ou pratitya samutpada, do contrário ele é ilusório e impermanente, ou seja vazio de existência intrínseca. A impermanência e a vacuidade estão intimamente relacionadas, o ensinamento do prajnaparamita é simples de ser enunciado: “vazio é forma e forma é vazio; vazio é vazio e forma é forma”. A impermanência no budismo é enunciada também de uma maneira precisa “todos os fenômenos compostos são impermanentes”, em outras palavras, vazios de existência intrínseca, ilusórios, ou Maya. Toda via, nossos “hábitos mentais” nos levam a ver os fenômenos como reais.
Bom, já está tarde e amanhã vou sair cedo para viajar, e ainda não arrumei as minhas coisas para a viagem, logo, paro por aqui e continuo amanhã.

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