quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Viagem

Hoje estou às vésperas de uma viagem o que sempre é algo interessante, mas essa viagem tem elementos que a tornam ainda mais interessante. Eu costumo viajar sempre a São Paulo, conheço um monte de gente por lá, tenho lugar para ficar e vou fazer sempre algo específico, treinar Kung Fu, e normalmente planejo essas viagens com cuidado. Pois bem, estou indo para Recife, lá não conheço quase ninguém, duas pessoas apenas, nem sei bem o que fazer por lá, dessa vez vou viajar com muito pouco dinheiro e pela primeira vez vou ficar num albergue, num quarto coletivo. Não sei o que vai acontecer e tudo são possibilidades. Apesar da eminência dessa viagem, não tenho expectativas, o que talvez muitos entendam como algo estranho ou ruim. Mas não é o caso, uma das formas de perdermos aquilo que estamos vivenciando é ter expectativas, querer que as coisas sejam de um jeito ou de outro e perder o momento, a forma como as coisas se apresentam, pois a vida é como é. Outra maneira de nos perdermos é criar rótulos.
Convivi por muitos anos com psicólogos, sujeitos curiosos, a maioria se perde em análises intermináveis do que se passa com eles mesmos e os outros, esquecendo que a vida escapa a qualquer teorização, e que, como o inconsciente escapa pelas brechas da teoria. Quantas vezes ouvi coisas como “o fulano é histérico” ou “sicrano é paranóico”, um amontoado de tolices, da qual o próprio Freud advertia e chamava de “psicanálise selvagem” apesar de que ele mesmo praticava esse tipo de coisa, basta ler sua correspondência. Isso me soava e ainda me soa, como jogadores fanáticos de RPG, que vêem uma mulher bonita e exclamam “nossa! Ela deve ter carisma 18”, patético. Jung dizia, com imensa sabedoria, que é muito mais preciso dizer que alguém é um “mauricinho” do que dizer que se trata de um “histérico” ou algo que o valha. Mas estou divagando.
Expectativas nos prendem a um lugar e uma situação que ainda não existem, e nos fazem perder o presente, se diz no Zen que “o futuro não existe e o passado é uma ilusão”, há um filme que eu adoro, Kung Fu Panda, onde toda a majestade do ensinamento da vacuidade contida no sutra do Coração, o Prajnaparamita, se manifesta de maneira singela. Mestre Oogway encontra o Panda triste e chateado, preocupado com o que havia sido a sua vida e como ela viria a ser doravante e após ouvi-lo ele diz: “Yesterday is history. Tomorrow is a mystery. Today is a gift. That's why it is called the present.”. Uma linda maneira poética de expressar a mesma verdade imorredoura da máxima Zen.
Duas coisas nos afastam da transcendência, da possibilidade de enxergar as coisas com clareza e precisão: Medo e Desejo, o medo nos aprisiona no passado, e o desejo nos aprisiona na ilusão do futuro, ambos nos fazem perder a única dádiva que temos: o presente. Seja como for, minha viagem vai ser interessante, talvez não seja da maneira como eu quero que seja, mas certamente será da maneira como eu preciso que seja. As coisas são como são e elas são perfeitas dessa maneira. O mundo não precisa mudar para que vejamos a claridade transcendente através do véu de Maya, nossa perspectiva é que deve ser modificada. Há uma bela historieta Zen que versa sobre o que venho tentando expressar:
Um budista leigo chamado Pang foi visitar Yaoshan. Quando ia embora, Yaoshan pediu a dois hóspedes do mosteiro que o acompanhassem até a saída, ao sair, Pang viu a neve caindo dos céus e cobrindo as montanhas e tudo a sua volta com um tapete branco e exclamou “ah! Veja os flocos de neve, todos caindo no lugar certo.” Rindo-se, um dos hóspedes exclamou com ironia “e onde isso poderia ser?” imediatamente Pang o estapeou e replicou “olhe para você! Seus olhos vêem como um cego e sua boca fala como um mudo! E se considera um aprendiz do Zen?”.
Viajar é uma grande oportunidade de nos encontrarmos, longe dos locais familiares, distante das situações em que já estamos acostumados, saindo da nossa zona de conforto é mais fácil testar as certezas e ilusões que alimentamos ao nosso próprio respeito. Uma viagem sempre me recorda o que Campbell costumava falar em termos de “chamado a aventura”. Minha viagem é um passeio e umas merecidas férias, mas essa viagem em particular possui um contexto especial e complicado, e é um salto sobre o abismo. Bom, mesmo que desconheçam esse contexto especial, que é particular, espero que me desejem sorte. Estou prestes a adentrar na floresta escura no local onde não existe uma trilha ou pegadas a seguir.

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