quinta-feira, 11 de novembro de 2010

A Tradição Mahayana

Mahayana significa “grande barco”, ou “grande veículo”, ela é a tradição de onde provêem o Zen japonês, o Chan chinês e o Budismo Tibetano. Essa tradição é mais recente que a Theravada, ou como é comumente conhecida Hinayana. Hinayana significa “pequeno Barco” ou “pequeno Veículo”, pois a essa tradição, mais antiga que a Mahayana, dedicava-se ao ideal de salvação individual através da disciplina monástica. O sentindo da Hinayana era que você tornar-se um Aharat, um santo livre de todas as paixões e liberto do incessante ciclo do Samsara governado pela ilusão de Maya. Na tradição Hinayana não havia qualquer tipo de representação de Buda, pois Buda era aquele que não mais se identificava com a ilusão do ego, então, por exemplo, ao se representar as tentações de Kama-Mara, desenhava-se de um lado as apsaras (ninfas) de Kama de um lado de um trono e do outro os ogros da morte de Mara, mas o trono estava vazio. Não se podia representar aquele que havia transcendido a personalidade e que não mais se identificava com essas ilusões.

Temos então o surgimento da tradição Mahayana, e passa-se a ter uma grande profusão de imagens de Buda, não apenas do Buda histórico, Shakyamuni, mas de toda uma miríade de Budas transcendentais e Bodhisattva “aquele cujo corpo é a iluminação”. O ideal passa a ser não mais o do santo Aharat retirado do mundo, que não passa de uma ilusão de Maya, para adentrar ao Nirvana, mas o do Bodhisattva “aquele que escolhe viver em júbilo em meio às tristezas do mundo”, mesmo tendo atingido a perfeita realização e podendo adentrar ao Nirvana o Bodhisattva escolhe permanecer no samsara “até que o último talo de grama atinja a iluminação”.

Na tradição Mahayana cai por terra à dualidade entre ignorância e iluminação, etre Nirvana e Samsara, a natureza de Buda está em todas as coisas e a ignorância e a iluminação são entendidas como a lâmina e a pedra de amolar, as duas se desgastam uma na outra e ao final nenhuma das duas resta. Nunca houve nem uma nem outra, não há diferenciação alguma, Nem mesmo entre Samsara e Nirvana, Tat Tvam Asi “tu és isto”. Tudo é Buda, logo qualquer objeto, por mais insignificante que seja, é uma representação do mistério último do ser.o Bodhisattva está no mundo, mas livre dos pares de opostos de medo e desejo, ele age com total desapego, cada um de seus atos é compassivo pois só existe um objeto se houver um eu para contemplá-lo. Segundo Campbell “esse desapego psicológico de suas paixões em relação aos eventos de sua vida é o nirvana”.

Essa compreensão está expressa em muitas das deliciosas historietas Zen que eu tanto aprecio, e assim como analisei algumas delas tendo como base para o entendimento a Vacuidade, apresento aqui algumas dessas histórias que expressam essa verdade fundamental do Mahayana, a não existência de dualidade, pois a natureza de Buda está em tudo, e que no fundo, é uma expressão da vacuidade. Toda a experiência, todos os conceitos e rótulos, toda a percepção dualista baseada na ilusão de uma identidade em separado que observa um objeto que não é ela mesma, é vazia de realidade intrínseca, ilusória e impermanente.

Começo com uma historieta japonesa das mais engraçadas, mas antes é preciso uma nota explicativa para que o trocadilho fique claro. A palavra Kami pode ser escrita de três maneiras diferentes: 紙 que significa papel, 髪 que significa cabelo, e por fim, 神 que significa espírito, divindade.

Um casal estava em viagem de peregrinação por vários santuários Xintoístas, durante sua caminhada a mulher disse ao homem que precisava aliviar a bexiga e por isso iria fazer suas necessidades atrás de uma árvore, o marido a repreendeu, pois ela haveria de insultar o kami da árvore, e continuaram caminhando, e sempre que ela sugeria um lugar para fazer suas necessidades ele explicava que ali vivia um kami que havia de se ofender, fosse uma pedra, um regato ou um arbusto, por fim o homem (que era careca) se abaixou para pegar algo no chão e ela esvaziou a bexiga na cabeça dele exclamando “aqui não há nenhum kami!”.

Um dia, um jovem de nome Yang Fu deixou seus pais e foi a Sichuan visitar Wuji, que era um Bodhisattva. Quando estava na estrada Wuji o interpelou e perguntou onde ele ia, ao que ele respondeu que pretendia estudar com Wuji o Bodhisattva. Wuji o admoestou: “em vez de procurar um mero Bodhisatva, é melhor procurar Buda” o jovem ficou intrigado e perguntou: “sabe onde posso encontrá-lo?”, “quando voltar para casa, uma pessoa usando uma manta e chinelos trocados o cumprimentará. Essa pessoa é Buda”. Yang Fu retornou rapidamente, chegando em casa tarde da noite. Em sua alegria e pressa em cumprimentar o filho a mãe de Yang cobriu0se com uma manta e calçou os chinelos trocados. Ao vê-la, Yang Fu imediatamente se iluminou.

Essa história expressa de maneira divertida a máxima Zen de que “se encontrar o Buda mata-o!” toda imagem de Buda é uma representação não de algo externo a nós mesmo, mas de nossa natureza fundamental de sabedoria. Essas imagens são ferramentas para a meditação, e apontam para além delas mesmas. Não há sentido em se procurar um Bodhisattva para se compreender o caminho que conduz a cessação do sofrimento, pois nesse caso se está concretizando a imagem do Buda e caindo nas malhas da rede da ilusão da dualidade, ao retornar e enxergar sua própria mãe como Buda, Yang Fu realizou esse ensinamento e obteve a iluminação.

Certa vez, um budista foi às montanhas procurar um mestre que o fizesse atravessar os portões do Zen. Ao encontrar o mestre e lhe explicar sua intenção, este lhe respondeu com uma pergunta: “vindo para cá você passou por um vale?” ele respondeu afirmativamente, “você por acaso ouviu o som do vale?”, ao que ele novamente respondeu que sim. “o local onde ouviu o som do vale é onde começa o caminho que leva aos portões do Zen”. Novamente vemos um mestre despedaçando as tentativas de concretização de um de seus alunos, noutra história famosa, um aluno perguntou ao mestre o segredo do Zen, e este em resposta o conduziu até um arbusto e o mostrou a ele “se achas que te escondo algo, ali está o segredo do Zen”.
Certa vez um discípulo interpelou seu mestre “mestre, um cipreste possui a natureza de Buda?” “sim” foi a resposta lacônica do mestre. “quando se tronará um Buda?” “quando o céu cair”, “e quando o céu cairá?”, “quando o cipreste tornar-se um Buda!”.

Um dia Linji foi visitar um pagode construído em homenagem de Bodhidharma, ao chegar lá um monge o interpelou e indagou a quem ele prestaria homenagem primeiro, a Buda ou Bodhidharma. Linji respondeu que não prestaria homenagem a nenhum dos dois, o monge ficou muito irritado e indagou “e o que eles fizeram para você?” como resposta Linji apenas se virou e partiu.

Certo dia um discípulo se despedia do monge Niaowo e este lhe indagou para onde ele ia. “vou viajar pelo país estudando o Dharma-Buda”, sorridente Niaowo replicou “falando no Dharma-Buda, tenho um pouco disso aqui”. Ao ver a cara de estupefação do jovem monge, Niaowo puxou um fiapo de seu manto e indagou “isto também não é o Dharma-Buda?”.

Certa vez, ao ser indagado sobre o que era o Tao, o mestre Yaoshan deu uma das respostas que considero mais belas das que já tive a oportunidade de conhecer através da tradição Zen “Nuvens no céu azul e água num cantil”. Com a bela resposta de Yaoshan me dou por satisfeito em meu intento de inutilmente tentar elucidar algumas historietas Zen.

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