O termo Kung Fu normalmente é mal compreendido e gera muita confusão. De modo mais geral ele significa, ou designa “arte marcial chinesa”. Seria algo como se o termo Karate designasse todas as artes marciais japonesas, então você usaria a palavra Karate para designar tanto o Judô, quanto o Aikido ou o Kendo e Iaido; como podem ver é algo bastante confuso, visto serem artes marciais bem diferentes. O Aikido e o Judô e o Karate tem em comum um aspecto geográfico, todos são originários do arquipélago do Japão. De modo geral, o termo Kung Fu utiliza esse mesmo denominador comum, são chamadas de Kung Fu todas as artes marciais provenientes da China. Em Taiwan se utiliza um termo muito mais apropriado para esse sentido, Kuo shu (國術) que literalmente significa “arte nacional”.
Todavia, se tentarmos traduzir o termo Kung Fu de maneira mais literal, teríamos um conceito próximo aquilo a que os gregos denominavam virtude (Ἀρετή), de onde até hoje vem a nossa palavra “virtuoso”, no sentido por exemplo de um grande violinista que atingiu elevado grau de excelência. Para os gregos, virtude era a capacidade de fazer ou executar algo com excelência. O sentido de Kung Fu é praticamente o mesmo e seria até mesmo uma tradução aproximada bastante apropriada. Em chinês Kung Fu se escreve (功夫) o primeiro caractere significa trabalho, o segundo é um Hanzi (caractere chinês) arcaico que designa homem, ou homem superior, na acepção confuciana de cavalheiro. Nesse sentido mais literal, o termo poderia ser livremente traduzido como “esforço para se tornar um cavalheiro” ou “trabalho para ser um homem superior”. Esse esforço despendido, tem o mesmo sentido de virtude já discutido, pois designa não apenas um artista marcial que tornou-se habilidoso, mas qualquer um que em sua área de atuação (sejam finanças ou culinária) atingiu elevado grau de maestria. Daí a similaridade com o conceito do humanismo grego de “Virtude”.
Outro termo que designa a arte marcial chinesa é Wu Shu (武術) o primeiro caractere significa “marcial” e o segundo “arte”, logo, literalmente Wu Shu é “arte marcial”. Todavia, as palavras são polissêmicas, possuem vários sentidos e em sua história, acabam adquirindo sempre novos sentidos ou perdendo seu sentido original. Hoje em dia, se alguém perguntar a um praticante de Kung Fu sobre Wu Shu, ele quase certamente vai lhe falar sobre um esporte altamente competitivo, acrobático em certa medida similar a ginástica olímpica. Isso porque uma modalidade muito popular de desporto marcial é o “Wu Shu olímpico”, que por comodidade ou preguiça virou simplesmente “Wu Shu”. O que gera ainda mais confusão.
Ainda assim, é interessante examinar o sentido do termo Wu Shu, especialmente do Hanzi Wu “武”. Esse Hanzi é formado pelo radical “止” que significa parar e o restante do caractere simboliza um machado. O machado é um símbolo de violência, donde podemos deduzir que o sentido de marcial expresso nesse ideograma é o de “parar a violência”. Há um ditado confuciano na China que diz que “não se usa bom ferro para se fazer pregos, assim como não se usa bons homens para se fazer soldados”. Diferente do Japão, as artes guerreiras não eram muito valorizadas e se restringiam, em muitos casos, as classes mais baixas e iletradas, e tinham o intuito claro de ser um meio de interromper a violência, de ser um instrumento de pacificação. O que pode num primeiro momento soar como um paradoxo, torna-se mais claro quando se recorda que a grande “Meca” do Kung Fu chinês foi o templo de Shao Lin, um templo de budismo Chan (ou Zen como foi chamado no Japão).
Existem ainda os termos de “arte marcial interna” e “arte marcial externa”. O primeiro termo erroneamente é também chamado de estilos de Wu Dang (um famoso templo taoísta), ou estilos Taoístas, e as assim chamadas externas são também erroneamente associadas ao budismo ou ao templo de Shao Lin. As artes internas ou Nei Jia (内家) é também um termo de uso problemático, e normalmente utilizado de forma confusa ou claramente equivocada.
As, assim chamadas, Nei Jia são as três mais conhecidas artes marciais internas e as primeiras a se autodenominarem dessa maneira: Xing Yi Quan (形意拳), Ba Gua (八卦) e Tai Ji Quan (太極拳). Atualmente essas artes marciais são muito conhecidas e todas elas estão relacionadas muito fortemente as práticas de longevidade e manutenção da saúde física e mental, e são fortemente associadas à Filosofia Chinesa e o Taoísmo. Todavia, nos anos 1800, quando essas artes marciais conheceram grande popularidade entre grupos de indivíduos interessados nos aspectos práticos e nas possibilidades reais de combate, não havia muita conversa sobre manutenção da saúde, a não ser se você considerar não ser derrotado numa luta real uma forma de se manter saudável, nem tão pouco havia um interesse pela maioria dos praticantes pelos aspectos filosóficos e abstratos, menos ainda eram elas associadas a uma mesma família ou denominadas Nei Jia. Nessa época, as pessoas que praticavam essas artes eram em sua maioria fazendeiros sem qualquer educação formal que as estudavam para obter trabalhos como guarda-costas, vigias de residências de famílias ricas, escoltas de caravana ou caçadores de recompensa. As pessoas educadas na China viam os artistas marciais com profundo desprezo, e os tinham como não mais que rufiões de baixa categoria .
O próprio Sun Lu Tang admite a existência desse preconceito no prefácio de seu famoso livro. Isso era tão patente que após o lançamento do primeiro livro de Sun Lu Tang, um erudito de Beijing ao lê-lo, imediatamente concluiu tratar-se de uma fraude. Como era possível que um famoso lutador pudesse ter tão profundo e vasto conhecimento de Filosofia Chinesa e Taoísmo? Ele não tardou a procurar Sun Lu Tang e só se convenceu de que ele realmente havia escrito o livro após sabatiná-lo por quase um dia inteiro acerca dos clássicos, e ficou profundamente estarrecido ao perceber que um homem tão proficiente em lutas era também um erudito.
O primeiro grupo conhecido de artistas marciais e unir essas três artes sob o nome de “família interna” surgiu em 1894, quando os mestres Cheng Ting Hua (程廷華) e seus amigos Liu De Kuan (刘德宽), Li Cun Yi (李存义) e Liu Wei Xiang se uniram para formar uma organização de artistas marciais com o propósito de melhorar o nível de suas respectivas artes, aumentarem a harmonia nos turbulentos círculos de artes marciais, e elevarem o nível das habilidades de luta de seus estudantes. Nesse grupo Cheng Ting Hua representava a escola de Ba Gua, Liu De Kuan representava o Tai Ji, Li Cun Yi e Liu Wei Xiang representavam o Xing Yi. Eles decidiram que cada um dos seus estudantes poderia livremente aprender com os outros, e que, mesmo com as várias diferenças entre suas técnicas em cada escola particular, eles eram da mesma “família”.
A princípio, para nomear essa família de artes marciais o grupo as chamou em conjunto de Nei Jia Quan, “boxe da família interna”, posteriormente eles descobriram que já existia uma arte marcial com esse nome, eles então mudaram o nome para Nei Gong Quan, “boxe da habilidade interna”, mas já era tarde demais, o nome Nei Jia Quan já havia pegado. Essa confusão acerca dos nomes levou a um mal entendido, as três artes também passaram a ser conhecidas como “Boxe de Wu Dang”. Esse nome leva a mais um mal entendido, pois passa a falsa impressão que as três escolas podem traçar sua origem até o lendário templo Taoísta localizado na montanha de Wu dang, quando na realidade apenas o Ba Gua evoluiu diretamente de práticas Taoístas.
Durante a Dinastia Ming havia um artista marcial chamado Sun Shi San que praticava um estilo de boxe que era chamado de Nei Jia. O primeiro registro escrito desse estilo apareceu por volta do final da dinastia Ming. Um praticante de Nei Jia Quan chamado Wang Zheng Nan teve um estudante, Huang Bai Jia. Quando Wang Zheng Nan morreu, Huang Zong Xi escreveu um panegírico para ele que falava de seu estilo de boxe e dos eventos de sua vida. Huang Bai Jia subsequentemente tomou o que se pai havia escrito sobre o estilo de boxe de seu professor e publicou em um livro que ele chamou de Nei Jia Quan, que foi publicado em algum momento da dsnastia Ming ou no início do período Quin, Huang Bai Jia escreveu que essa arte havia se originado com o taoísta Zhang San Feng na montanha de Wu Dang. (SUN LU TANG, tradução minha).
Como é fácil perceber, as várias terminologias utilizadas pelas artes marciais chinesas têm um uso bastante confuso e controverso, vários desses termos são mal utilizados ou mal compreendidos. O que não é realmente uma novidade na história das artes marciais chinesas, visto a China ser um país de dimensões continentais e ter uma longa e venerável história, sempre houve diferentes denominações dependendo da localização geográfica ou do período histórico em questão, já tendo sido utilizado para denominar “arte marcial” em geral os termos Shao Lin, ou mesmo Luo Han (Buda), devido a origem das artes marciais chinesas ser tradicionalmente atribuídas ao templo budista de Shao lin.
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