O título do post se refere aos títulos de dois livros de divulgação científica do jornalista e escritor Laurentino Gomes. Os livros, que fazem parte de uma trilogia sobre o século XIX se destinam ao público leigo e procuram popularizar e revitalizar o interesse pela história do Brasil. Para começo de conversa, eu não li os livros, nesse momento vocês devem estar se perguntando o motivo de eu estar aqui escrevendo sobre eles, o que me leva a uma história curiosa. Ontem eu assisti por engano, junto do meu irmão mais novo Iago a palestra realizada na Livraria Cultura pelo autor dos dois livros em questão. Na realidade eu acreditava que ontem seria a palestra de um americano que escreveu uma biografia sobre Clarice Linspector, devido a isso larguei todos os meus compromissos e fui ver a tal palestra, que na verdade acontecerá hoje, como podem ver sou um homem a frente do meu tempo. Acontece que estava realmente acontecendo uma palestra e para não perder a viagem fiquei por lá e assisti.
Acontece também, que de todos os meus interesses, apenas a história ainda não havia sido contemplada no meu blog, daí eu estar escrevendo sobre a tal palestra. Que fique claro que estou escrevendo especificamente sobre a fala que escutei do tal Laurentino Gomes, por sinal um sujeito bastante afável e que lotou o auditório da Cultura, com muitas pessoas assistindo a palestra em pé ou sentadas nas laterais.
A divulgação científica é um trabalho importante, de alguma maneira, creio que de uma forma bem mais modesta, faço algo parecido aqui. Também é importante frisar que, qualquer um que faça as pessoas lerem merece o meu aplauso, e esse parece ser o caso do autor, Laurentino Gomes. Há alguns anos atrás, estava numa casa de praia com amigos e junto de uma amiga bióloga eu deplorava a revista Super Interessante, um amigo jornalista tomou para si o encargo de defendê-la e usou um argumento interessante “nem todo mundo é cientista e historiador”, o que é um fato inelutável. Mesmo as pessoas sem formação específica nessas áreas possuem interesse sobre esses temas e o direito de se informar, essa conversa, provavelmente já esquecida pelos outros dois interlocutores me abriu os olhos. Não obstante, há um papel crítico importante a ser desempenhado pelo especialista, papel do qual ele não deve se furtar.
Como de costume, quando começou a seção de perguntas e todos estavam meio inibidos, eu fui o primeiro a perguntar algo, e perguntei sobre a relação dele com os historiadores e sobre o fato, óbvio para um historiador, que ele não estava escrevendo um tratado de história, mas sobre memória. Com o claro intuito de revitalizar a memória do povo brasileiro para sua própria história, desempenhando papel similar ao que os historiadores e folcloristas alemães do século XIX tiveram para dar coesão e identidade ao país recentemente criado.
Ele me respondeu a princípio dizendo que havia recebido elogios e críticas e que acreditava que um jornalista podia escrever reportagens sobre qualquer coisa, inclusive história do Brasil, de fato. É preciso também lembrar, que alguns dos grandes nomes da historiografia mundial não eram historiadores de formação, mas o eram de fato. No caso do autor, ele não fala do lugar do historiador, mas fica claro que ele não abandona jamais os sapatos de jornalista. Quanto à segunda pergunta, sua resposta foi bastante simplória e equivocada, fazendo uma separação artificial entre a narrativa e a teoria e a compreensão acerca dos fatos.
Nesse ponto, por mais que eu seja simpático a iniciativa do autor, não posso me abster do meu papel de especialista. O autor desconhece ou se esquece de que “não há história em um problema”, não é debalde que a narrativa saiu de moda nos círculos de história. A narrativa por si mesma, dependia da noção da história metódica de “fato histórico objetivo”, no sentido da existência de um “fato” observável pelo historiador, como talvez, um biólogo observa microorganismos pelas lentes de seu microscópio, daí esses fatos puderem ser narrados. Na resposta do autor ele afirmou que a teoria tinha de vir depois da narrativa, essa bem simples e didática, para que as pessoas soubessem os fatos. Infelizmente, os fatos não existem por si mesmos. A grande contribuição teórica da escola dos Annales francesa foi à noção da “construção do fato histórico”. O fato existe na medida em que é criado pelo historiador, e não de maneira objetiva, independente do historiador. A história é “imaginação sobre o que já foi imaginado”, e é estranho que ele não se aperceba disso, pois citou reiteradas vezes Sérgio Buarque de Holanda, que se dizia um “historiador impressionista”. Num sentindo Kantiano mais profundo, toda história é uma mentira, pois sempre há de se tratar de perspectiva, jamais do fato ontologicamente puro.
Além disso, mais de uma vez ele apelou para o “ídolo da origens” e para o jargão, ou clichê, mais do que batido de que “precisamos conhecer o passado para compreender o presente e nos prepararmos para o futuro” e da velha e coroca explicação positivista para o presente do “arco hermenêutico” onde os fatos do presente só podem ser entendidos se compreendidas suas “raízes” (para usar o termo usado por ele) do passado, esquecendo-se da revolução proposta por Marc Bloch de que o interesse da história é justamente o oposto, não do passado para o presente, mas do presente para o passado. Para o historiador, interessa muito mais o presente! Em que pese também o interesse didático dele, de ensinar história, pois o que há de mais moderno em termos de ensino de história é que antes de se ensinar os fatos e narrativas, interessa mais munir os alunos dos instrumentos da crítica historiográfica, justamente, e novamente, o oposto do que afirmou o autor em resposta a minha indagação. No frigir dos ovos, trata-se da velha história positivista, linear e política travestida de algo novo pela linguagem romantizada, algum viés crítico, e fatos curiosos que prendem a atenção do leitor.
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