Quando
Norberto Bobbio se despediu de sua longa e prolífica carreira acadêmica, ele
citou Max Webar, “A cátedra universitária não é nem para os demagogos, nem para
os profetas.”. Webar estava correto, um demagogo não é capaz de ensinar, mas
simplesmente de convencer, não tem compromisso com a verdade, mas apenas com
seus interesses ou sua vaidade. O profeta, por seu lado, deseja seguidores que
creiam em suas visões e se acomodem a sua sombra, no otium indignitatis daqueles que subsistem na proximidade de um
mestre que lhes mantém numa cômoda infância espiritual, sem responsabilidades e
nem preocupações.
Esses
pensamentos me ocorrem justamente por estar a me despedir do meu papel de
professor universitário, que venho desempenhando desde que me graduei em
história em 2004. Não se trata necessariamente de uma aposentadoria, mas de
seguir novos rumos, que me levam ao meu velho objetivo. Nesse momento de
despedida, poderia certamente me deixar levar por certo saudosismo carregado de
sentimentalidade, mas prefiro me despedir como professor e deixar registrado o
que meus alunos me ensinaram nesses anos de docência. Os romanos já sabiam que
“dicendo dices”, e eu aprendi muito
com esse ofício tão peculiar e, como bem o sabia o velho Freud, impossível.
Há
muitas similaridades entre o papel do analista e o do professor, e alguns dos
conselhos que valem para um analista podem igualmente ser dirigidos aos
mestres. Parafraseando Jung, tudo o que você pensa saber sobre os seus alunos é
um preconceito ou uma projeção. Ao atravessar os umbrais de uma sala de aula,
estamos numa miniatura curiosa de nossa sociedade, com suas mazelas e
preconceitos, mas igualmente com tudo aquilo que nela viceja e vive, com a
sutil diferença que ali se espera que as pessoas coloquem em questão as suas
certezas e aprendam coisas novas. Por mais que ali possamos achar tudo aquilo a
que estamos acostumados, a sala de aula é um lugar de transformação, que só vem
depois da cuidadosa análise, da dissolução. Supor algo acerca dos seus alunos e
agir a partir desses preconceitos pode ter o resultado de tornar os dois lados
cristalizados, se o professor os trata como alunos eles o tratarão como
professor, e isso só leva a estagnação. Assim como o analista, o professor
precisa renunciar ao manto do saber, o que precisa ser cultivado em uma sala de
aula é a dúvida, mas não qualquer dúvida, mas sim a dúvida metódica. Já existem
certezas demais, e elas apenas nos paralisam. Gosto sempre de lembrar do mote formidável
do racionalismo crítico de Popper “pode ser que eu esteja errado e pode ser que
você esteja certo”, o primeiro a assumir essa postura racional deve ser o
professor, e para ensiná-la ele deve primeiro vivê-la.
Assim
como o analista, ao professor é direcionada toda sorte de projeções, e seus
alunos irão lhe emprestar uma parte de suas almas. Isso lhe confere um poder
sobre eles, mas lhe coloca aos ombros um fardo, pois agora pode influenciar,
mas deve renunciar a toda pretensão consciente a isso. Influenciar e ensinar
são coisas diversas, ensinar não é o mesmo que convencer. Heimrich Zimmer nos
legou uma máxima fundamental dos upanishades, “há coisas dignas de serem
aprendidas, mas que não são dignas de serem ensinadas”. As coisas mais
importantes não são dignas de serem ensinadas, e assim como no caso do
analista, a vontade de influenciar só priva o estudante de suas capacidades
vitais, de suas potencialidades e do prazer da descoberta. Há verdades
fundamentais as quais seus pupilos devem chegar sozinhos, outras podem ser
transmitidas, e um bom professor deve ter a sabedoria de saber diferenciá-las.
Jung disse, certa feita, ao homenagear seu grande amigo Richard Wilhelm, que “O
homem reconhece instintivamente que toda grande verdade é simples. Aquele cujo
instinto está atrofiado, imagina, por isso, que ela se encontra em
simplificações baratas e trivialidades, ou, por outro lado, em razão de seu
desapontamento, incorre no erro oposto de imaginar a verdade como algo
infinitamente complicado e obscuro.” . Um professor cioso de seu ofício, jamais
deve cair em simplificações baratas, ou mostrar-se obscuro para esconder sua
falta de profundidade ou impressionar seus estudantes.
Uma
das coisas mais importantes que um professor precisa estar ciente é justamente daquilo
que ele não sabe. Por insegurança, puerilidade ou mesquinhez, alguns
professores gostam de afetar um saber absoluto, sem dúvida e repleto de
certezas. Toda e qualquer contrafação em sala de aula é um erro, mas esse é um
dos piores. Fazer ciência é a arte de perguntar, e, como nos ensina Popper,
toda ciência, para ser ciência precisa ser uma conjectura. Uma das mais
valiosas lições que aprendi com Bachelard é a de que o cientista não tem
direito a opinião, logo, caso eu nunca tenha estudado, ou pesquisado sobre
algo, nunca me furtei de dizer “não sei”. Essa é uma frase libertadora, e que
remove dos alunos os grilhões da certeza. Um professor precisa desconhecer
muito mais do que aquilo que ele conhece, seu bem mais preciso é a sua
ignorância, e deve se orgulhar dela e jamais tentar ocultá-la sob um véu
pedante de autoridade. Um professor é antes de tudo um aluno, um estudante que
jamais cessou de aprender, quando o aluno morre no peito do professor, este
também fenece.
Um
dos maiores historiadores do século XX, em sua derradeira obra, afirmou “[..]
Não imagino, para um escritor, elogio mais belo do que saber falar, no mesmo
tom, aos doutos e aos escolares. Mas simplicidade tão apurada é o privilégio de
raros eleitos”. O mesmo Marc Bloch, afirma ainda nessa obra, que se a história
falhar em divertir, certamente falhará em ensinar. Tal simplicidade deve ser
almejada com afinco, pois diferente da simplificação barata de que falava Jung,
ela consegue traduzir a verdade em sua simplicidade, com esforço podemos ser um
desses eleitos, especialmente se compreendermos que esse esforço não serve a
mim ou a necessidade de prestígio do eu, mas sim a meus alunos. Uma sala de
aula precisa ser um lugar agradável, nossa sociedade nos obriga a passar anos a
fio dentro delas e por muitas horas seguidas, tornar todo esse tempo algo fastidioso
e chato é algo tolo de se fazer. Mas existem muitos obstáculo que impedem um
professor de ser divertido, ou, ao menos agradável.
Alguns
professores partem da premissa equivocada de que eles e seus alunos estão em lados
opostos, são rivais. Professores e alunos estão do mesmo lado, seu objetivo
é o mesmo, mas quando essa crença se instala, tudo o que se consegue é criar um
clima insuportável de animosidade. Outros professores, em virtude de sua
mediocridade, projetam em seus alunos a sua própria pequenez, e a usam para
justificar seu fracasso em ensinar, ou seu descaso. Já escrevi certa feita,
sobre um dos poucos ensinamentos que tive de meu pai, pois um de seus colegas
chamava suas alunas de burras ao que ele retrucou “camarada, chamar as alunas
de burras é fácil, o difícil é elevá-las ao seu nível”. O mínimo que se pode
fazer por um aluno é tratá-lo com dignidade e respeito, e nunca deixar de ter
esperança de que ele possa aprender, pois no fundo não sabemos realmente se ele
pode ou não, sem esperança é impossível ensinar.
Fundamentalmente,
como asseverou Jung, o que nós ensinamos é aquilo que somos. Assim como o
analista, a principal ferramenta do professor é a sua personalidade, e ele deve
velar por ela. Muito além do que se diz, o que mais impacta os alunos é quem
nós somos. Somente alguém que é um indivíduo, que não está identificado com o
próprio saber, o pensamento, a instituição, ou o papel de professor, é capaz de
suportar a individualidade de seus alunos e ajudá-la a florescer. O papel de
professor deve ser abandonado rapidamente, os generais vitoriosos de Roma
tinham um escravo que lhes segurava acima da cabeça durante a parada da vitória
uma coroa de louro e repetia incessantemente “tu és mortal”, e mesmo a modesta
profissão de professor, pode levar a uma tal inflação. Fora da sala de aula,
por mais que seus alunos o chamem de professor, você é apenas um sujeito que
passeia com o cachorro e leva o lixo pra fora.
No
mais, em todos esses anos, eu me diverti imensamente, tive alguns dissabores,
aprendi muito mais do que ensinei e não tenho arrependimentos. Não deixarei de
ser professor, tenho um compromisso moral com a Psicologia de Jung que me
impele a ensiná-la, e certamente todo esse tempo como professor deixa marcas
profundas. Certa feita, fui a um restaurante onde jamais estivera e, quando
terminei de fazer o pedido, o garçom me perguntou “você é professor, não é?”,
encabulado eu respondi afirmativamente. Tenho muito que agradecer a todos os
meus alunos, especialmente aos que me causaram dissabores, pois eles foram meus
maiores mestres e diante deles tive que desenvolver minha paciência e compaixão
mais do que com os outros. Por sorte ou azar, os que me ensinaram compaixão e
paciência foram poucos. Em sua maioria, eles me deram alegrias e bons momentos.
Em geral não sou alguém que sente saudades ou se mantém preso ao passado, mas
sentirei falta de todos vocês.