Tenho
34 anos, milito desde os 16, Cas, movimento estudantil, partido, mas não
pretendo aqui falar do meu currículo como militante, apenas deixar claro que há
quase vinte anos estou acordado. Hoje, finalmente me uni ao movimento de massa
que tomou as ruas do país, como observador curioso, não apenas militante, mas
cientista e empirista que deseja compreender o que se passa, logo, esse escrito
se trata simultaneamente de um relato da manifestação de que tomei parte e de
minha reflexão crítica sobre tudo o que tenho visto e vi in loco hoje. Trata-se do
relato de um jovem “velho comunista”, já um pouco ranzinza e cínico, mas
realista e pragmático.
Fui
à manifestação com outros dois “velhos comunistas”, companheiros que admiro, um
deles me viu pequeno e militou ao lado do meu pai, o outro foi aluno do meu pai
no seminário da prainha e seu primeiro movimento político foi uma mobilização,
ainda durante a ditadura, para que meu pai, comunista e ateu, não fosse
demitido do quadro de professores. Ainda nos acompanhava um outro jovem
camarada, o mais cético e incomodado de todos com o movimento que estávamos ali
para presenciar, fora praticamente arrastado. Confesso que estava empolgado,
levávamos vinagre e estávamos preparados para a polícia, como nos velhos
tempos. No carro meus camaradas lembravam de como encaravam a polícia do Tasso,
do saco de “bilas” usado para fazer os cavalos se desequilibrarem, das
baladeiras usadas para atacar o choque e do modo como nos organizávamos. Quando
eu mesmo marchei contra a reunião do BID no Dragão do Mar, nos tempos tenebrosos
de FHC, tínhamos uma direção, um comando, sabíamos aonde íamos e por que. Tínhamos
clareza de que nos contrapúnhamos a um projeto de nação neo-liberal e tínhamos
o nosso projeto de nação, hoje vitorioso, éramos todos de algum movimento, ou
de algum partido e éramos muitos! Não milhares, mas algumas centenas e normalmente
éramos suplantados em número pela polícia, lembro vivamente de fugir pelos
becos correndo da cavalaria, sem nenhuma bila para contra atacar, mas me perco
em reminiscências, coisa de “velho comunista”...
Pois
bem, chegamos a Praça Portugal ainda com a luz do dia, havia já milhares de
pessoas e centenas de cartazes, apoiava-se tudo e nada, um deles dizia “fora
Cid”, outro “abençoado o país que acredita no senhor”, muitos contra a PEC37, e
alguns poéticos e imaginativos, outros pedindo a saída de Feliciano e, como
sempre, muitas máscaras e sinais da cultura de massa americana. Máscaras de Guy
Fawkes, do V for Vendetta, ao menos uma máscara de Darth Vader, duas máscaras
de Storm Troper, uma máscara de Iron Man, uma máscara da banda Slipknot e a máscara
dos “jogos mortais”, camisetas variadas, algumas do Bob Esponja, e na maioria
esmagadora, jovens com menos de vinte anos. Toda essa cultura Pop não era vítima
de nossa antropofagia, ao contrário me parecia que era a máscara que nos
devorava, e a contradição que gritava eloquente aos meus olhos era muda a todos
os demais. Mas havia ainda mais de midiático nesse movimento, sempre tivemos
palavras de ordem, e mesmo com toda a “novidade” esse movimento organizado via
Facebook também tinha as suas, uma delas “o gigante despertou” tirada
diretamente de um comercial de Whisk que fazia referência a logomarca da bebida
e ao fato de a economia estar de vento em popa no Brasil e as pessoas poderem
comprar mais Scotch. O outro grito de guerra “vem pra rua” copiado de um
comercial de carro, e outro repetido muitas e muitas vezes, mostrava que somos
mesmo o país do futebol, pois esse vinha diretamente dos estádios “eeeu sou
brasileeeiiiro com muito orguuulhooo com muito amoooorrr!”, mas me adianto.
Estávamos
na praça, e logo encontramos muitos outros militantes por ali, até mesmo o vereador
Ronivaldo Maia. Roni, quando eu fazia veterinária e ele História na UECE foi
quem me levou de Kombi a uma de minhas primeiras reuniões de formação política
feita no CA de veterinária em uma casa de praia em idos de... bom, faz muito
tempo. Pois estávamos lá, observando com curiosidade, conversando, meu jovem
companheiro, o mais jovem dos quatro apontava para os cartazes com protestos e
em seguida movia seu olhar para um garoto bem pequeno vendendo água “ninguém
está nem aí pro trabalho infantil”. Então aconteceu a primeira tensão, que
quase acabou com o ímpeto da multidão ali reunida, outros militantes, mais
afoitos, levantaram suas bandeiras, coisa corriqueira em meu tempo. Todo o restante
da multidão começou o gritar “baixa a bandeira!”, “sem partido!” e “oportunista!”.
Parece que nossa consciência carece realmente de um sentido de continuidade
histórica, esses jovens não podiam recordar, ao que parece, que a geração dos
meus pais lutou pelo pluripartidarismo, proibido pela ditadura e que essa foi
uma enorme conquista... Depois de quase quarenta minutos, depois uns quarenta
minutos, em que uns anarquistas gritavam “sem estado e sem partido!” ao mesmo
tempo em que outros gritavam por educação e contra a corrupção (bandeiras
ocas), os militantes se renderam e marcharam em direção a pontes vieira.
Pensei
“ótimo, agora vamos ao palácio do governo!” era esse o intuito, mas qualquer
vestígio de direção ou comando fora já dissolvido e a mesma massa que expulsou
os militantes se moveu na mesma direção que eles, a direção oposta a do palácio
do governo. Comecei a segui-los e a me angustiar, para onde diabos eu estava
indo e por quê? Ninguém ao meu redor sabia e ninguém ligava. Estávamos apenas
seguindo como imenso cardume sabe-se lá deus para onde, e minha angústia
crescia. Enquanto eu me perguntava pelo sentido daquilo tudo, e, de maneira
menos filosófica e mais pragmática, para onde estávamos indo e com que fim, as
pessoas estavam tomadas por uma espécie de transe, de uma sensação de euforia
por estar marchando, por estar com o pé na estrada, na rua segurando cartazes
contraditórios e gritando palavras de ordem sem sentido. Nesse momento aquilo
tudo não passava de uma errância, não muito diferente das que aconteciam na
Alemanha na época de Hitler quando Wotan soprava o vento da loucura. Caminhávamos
sem objetivo, não adiantava perguntar, ou se questionar, apenas andar. Alguém me
disse que íamos à assembleia, ao que eu retruquei que já estava fechada e
vazia, mas fomos mesmo assim. Meus camaradas, “velhos comunistas” como eu,
compartilhavam de minha angústia, de não saber “para onde íamos” e nem o por
que. Passamos pela rede globo e ela foi vaiada e as pessoas gritavam “imprensa
o povo ainda pensa!”, menos para onde ir, ou “rede globo o povo não é bobo!”,
depois passamos pela Record e novamente palavras de ordem. Por fim, chegamos a assembleia,
lá encontrei o meu irmão mais novo, empolgado com aquilo tudo, sua empolgação
cessou quando compartilhei minha angústia com a falta de sentido para aquilo
tudo, mas isso foi breve, logo a chama se reacendeu e ele seguiu. Pensei que a
coisa fosse se dispersar ali, mas havia um sujeito, da direção da juventude do
PCdoB, Cidistas desde a última eleição e que estavam guiando o cardume para
longe do palácio, e a mesma massa que gritava contra as bandeiras os seguia.
Nós,
velhos comunistas, junto de um amigo meu, mais jovem, mas menos massificados,
nos questionávamos, “para onde estamos indo?”. Logo descobrimos que o tal
sujeitinho do PCdoB queria guiar a massa para a ETUFOR, beeem longe dali, com a
anuência de alguns dos nossos camaradas petistas beeem mais jovens e tolos do
que nós. Para o desespero desses camardas mais jovens, tomados pela quimera de
que estavam na direção do movimento, que não era mais do que uma turba ordeira
de umas 30 mil pessoas, corremos, nós 5 para a frente e, macacos velhos, sem
bandeira e sem nada, quebramos o movimento e o fizemos sair da Pontes Vieira e
subir a Barão de Studart em direção, agora sim, ao Palácio!
A
“direção” ficou a ver navios e a massa nos seguiu e depois nos unimos ao coração
dela e deixamos que seguisse seu curso, mais contentes agora, por estarmos
rumando para um alvo de significado político e simbólico, não sem nos rirmos da
ironia. Mais adiante eles voltaram e levantaram as bandeiras e novamente gritos
de “sem liderança!” muitos deles, impaciente eu retruquei “sem partido, sem
liderança, mas vocês estavam seguindo o cara do PCdoB em direção a ETUFOR! Com as
bandeira ao menos vocês sabem quem é quem!”, com cara de bobo ele retrucou “mas
eles querem tomar o movimento!”, deixei ele para trás e segui, com os pés
doendo, jogando conversa fora com meus camaradas, fazendo piada dos cartazes (por
um tempo, em protesto ao protesto, segurei um cartaz em branco que achei no chão,
esse me pareceu ser a principal reivindicação do movimento), até que chegamos
ao palácio, e nem sinal de polícia ou repressão, tudo muito ordeiro e politicamente
correto. Quando chegamos lá foi bonito, mesmo para um “velho comunista” cínico
e ranzinza como eu, as pessoas invadiram o mausoléu e entraram ma piscina, foi
bonito mesmo.
Uma
coisa eu compreendi, esse é realmente um movimento irracional, não apolítico,
isso não existe, mas profundamente irracional, nossa psicologia diurna não pode
explicá-lo. Mas algo me tocou, para além de minha angústia de ser mera recorrência
estatística na massa, pois isso não me traz êxtase ou terror, apenas angústia,
esses moleques parece que começam a gostar do Brasil. A mídia os ensinou que
nada nesse país presta, que tudo aqui rescinde a corrupção e decadência, que
todos os demais países são melhores, mas esse movimento irracional está
pendendo a balança para o outro lado, vamos ver no que vai dar. Além disso,
quando os moleques saem do transe da turba, eles ainda sentem algo que talvez,
talvez, tenha valor, sentem que têm algum poder, que podem fazer algo. O problema
é que em sua inocência creem estar inventando a roda. Na volta para casa,
cansados e doloridos, meus camaradas me contavam como marcharam do centro ao
Cambeba a pé, na década de oitenta e acamparam por nove dias por lá para
enfrentar Tasso Jereissate, eram tempos bem difíceis. O gigante não despertou,
mas as “crianças da pátria” sim, mas elas ainda estão um pouco sonâmbulas,
vagando a esmo, mas o que eu desejo ver realmente é o momento em que estarão
realmente despertas, talvez nossa luta tenha herdeiros, alguém a quem
passaremos o bastão quando o cansaço for demais para uma caminhada tão longa.