quinta-feira, 20 de junho de 2013

O movimento de massa em Fortaleza

Tenho 34 anos, milito desde os 16, Cas, movimento estudantil, partido, mas não pretendo aqui falar do meu currículo como militante, apenas deixar claro que há quase vinte anos estou acordado. Hoje, finalmente me uni ao movimento de massa que tomou as ruas do país, como observador curioso, não apenas militante, mas cientista e empirista que deseja compreender o que se passa, logo, esse escrito se trata simultaneamente de um relato da manifestação de que tomei parte e de minha reflexão crítica sobre tudo o que tenho visto e vi in loco hoje. Trata-se do relato de um jovem “velho comunista”, já um pouco ranzinza e cínico, mas realista e pragmático.
Fui à manifestação com outros dois “velhos comunistas”, companheiros que admiro, um deles me viu pequeno e militou ao lado do meu pai, o outro foi aluno do meu pai no seminário da prainha e seu primeiro movimento político foi uma mobilização, ainda durante a ditadura, para que meu pai, comunista e ateu, não fosse demitido do quadro de professores. Ainda nos acompanhava um outro jovem camarada, o mais cético e incomodado de todos com o movimento que estávamos ali para presenciar, fora praticamente arrastado. Confesso que estava empolgado, levávamos vinagre e estávamos preparados para a polícia, como nos velhos tempos. No carro meus camaradas lembravam de como encaravam a polícia do Tasso, do saco de “bilas” usado para fazer os cavalos se desequilibrarem, das baladeiras usadas para atacar o choque e do modo como nos organizávamos. Quando eu mesmo marchei contra a reunião do BID no Dragão do Mar, nos tempos tenebrosos de FHC, tínhamos uma direção, um comando, sabíamos aonde íamos e por que. Tínhamos clareza de que nos contrapúnhamos a um projeto de nação neo-liberal e tínhamos o nosso projeto de nação, hoje vitorioso, éramos todos de algum movimento, ou de algum partido e éramos muitos! Não milhares, mas algumas centenas e normalmente éramos suplantados em número pela polícia, lembro vivamente de fugir pelos becos correndo da cavalaria, sem nenhuma bila para contra atacar, mas me perco em reminiscências, coisa de “velho comunista”...
Pois bem, chegamos a Praça Portugal ainda com a luz do dia, havia já milhares de pessoas e centenas de cartazes, apoiava-se tudo e nada, um deles dizia “fora Cid”, outro “abençoado o país que acredita no senhor”, muitos contra a PEC37, e alguns poéticos e imaginativos, outros pedindo a saída de Feliciano e, como sempre, muitas máscaras e sinais da cultura de massa americana. Máscaras de Guy Fawkes, do V for Vendetta, ao menos uma máscara de Darth Vader, duas máscaras de Storm Troper, uma máscara de Iron Man, uma máscara da banda Slipknot e a máscara dos “jogos mortais”, camisetas variadas, algumas do Bob Esponja, e na maioria esmagadora, jovens com menos de vinte anos. Toda essa cultura Pop não era vítima de nossa antropofagia, ao contrário me parecia que era a máscara que nos devorava, e a contradição que gritava eloquente aos meus olhos era muda a todos os demais. Mas havia ainda mais de midiático nesse movimento, sempre tivemos palavras de ordem, e mesmo com toda a “novidade” esse movimento organizado via Facebook também tinha as suas, uma delas “o gigante despertou” tirada diretamente de um comercial de Whisk que fazia referência a logomarca da bebida e ao fato de a economia estar de vento em popa no Brasil e as pessoas poderem comprar mais Scotch. O outro grito de guerra “vem pra rua” copiado de um comercial de carro, e outro repetido muitas e muitas vezes, mostrava que somos mesmo o país do futebol, pois esse vinha diretamente dos estádios “eeeu sou brasileeeiiiro com muito orguuulhooo com muito amoooorrr!”, mas me adianto.
Estávamos na praça, e logo encontramos muitos outros militantes por ali, até mesmo o vereador Ronivaldo Maia. Roni, quando eu fazia veterinária e ele História na UECE foi quem me levou de Kombi a uma de minhas primeiras reuniões de formação política feita no CA de veterinária em uma casa de praia em idos de... bom, faz muito tempo. Pois estávamos lá, observando com curiosidade, conversando, meu jovem companheiro, o mais jovem dos quatro apontava para os cartazes com protestos e em seguida movia seu olhar para um garoto bem pequeno vendendo água “ninguém está nem aí pro trabalho infantil”. Então aconteceu a primeira tensão, que quase acabou com o ímpeto da multidão ali reunida, outros militantes, mais afoitos, levantaram suas bandeiras, coisa corriqueira em meu tempo. Todo o restante da multidão começou o gritar “baixa a bandeira!”, “sem partido!” e “oportunista!”. Parece que nossa consciência carece realmente de um sentido de continuidade histórica, esses jovens não podiam recordar, ao que parece, que a geração dos meus pais lutou pelo pluripartidarismo, proibido pela ditadura e que essa foi uma enorme conquista... Depois de quase quarenta minutos, depois uns quarenta minutos, em que uns anarquistas gritavam “sem estado e sem partido!” ao mesmo tempo em que outros gritavam por educação e contra a corrupção (bandeiras ocas), os militantes se renderam e marcharam em direção a pontes vieira.
Pensei “ótimo, agora vamos ao palácio do governo!” era esse o intuito, mas qualquer vestígio de direção ou comando fora já dissolvido e a mesma massa que expulsou os militantes se moveu na mesma direção que eles, a direção oposta a do palácio do governo. Comecei a segui-los e a me angustiar, para onde diabos eu estava indo e por quê? Ninguém ao meu redor sabia e ninguém ligava. Estávamos apenas seguindo como imenso cardume sabe-se lá deus para onde, e minha angústia crescia. Enquanto eu me perguntava pelo sentido daquilo tudo, e, de maneira menos filosófica e mais pragmática, para onde estávamos indo e com que fim, as pessoas estavam tomadas por uma espécie de transe, de uma sensação de euforia por estar marchando, por estar com o pé na estrada, na rua segurando cartazes contraditórios e gritando palavras de ordem sem sentido. Nesse momento aquilo tudo não passava de uma errância, não muito diferente das que aconteciam na Alemanha na época de Hitler quando Wotan soprava o vento da loucura. Caminhávamos sem objetivo, não adiantava perguntar, ou se questionar, apenas andar. Alguém me disse que íamos à assembleia, ao que eu retruquei que já estava fechada e vazia, mas fomos mesmo assim. Meus camaradas, “velhos comunistas” como eu, compartilhavam de minha angústia, de não saber “para onde íamos” e nem o por que. Passamos pela rede globo e ela foi vaiada e as pessoas gritavam “imprensa o povo ainda pensa!”, menos para onde ir, ou “rede globo o povo não é bobo!”, depois passamos pela Record e novamente palavras de ordem. Por fim, chegamos a assembleia, lá encontrei o meu irmão mais novo, empolgado com aquilo tudo, sua empolgação cessou quando compartilhei minha angústia com a falta de sentido para aquilo tudo, mas isso foi breve, logo a chama se reacendeu e ele seguiu. Pensei que a coisa fosse se dispersar ali, mas havia um sujeito, da direção da juventude do PCdoB, Cidistas desde a última eleição e que estavam guiando o cardume para longe do palácio, e a mesma massa que gritava contra as bandeiras os seguia.
Nós, velhos comunistas, junto de um amigo meu, mais jovem, mas menos massificados, nos questionávamos, “para onde estamos indo?”. Logo descobrimos que o tal sujeitinho do PCdoB queria guiar a massa para a ETUFOR, beeem longe dali, com a anuência de alguns dos nossos camaradas petistas beeem mais jovens e tolos do que nós. Para o desespero desses camardas mais jovens, tomados pela quimera de que estavam na direção do movimento, que não era mais do que uma turba ordeira de umas 30 mil pessoas, corremos, nós 5 para a frente e, macacos velhos, sem bandeira e sem nada, quebramos o movimento e o fizemos sair da Pontes Vieira e subir a Barão de Studart em direção, agora sim, ao Palácio!
A “direção” ficou a ver navios e a massa nos seguiu e depois nos unimos ao coração dela e deixamos que seguisse seu curso, mais contentes agora, por estarmos rumando para um alvo de significado político e simbólico, não sem nos rirmos da ironia. Mais adiante eles voltaram e levantaram as bandeiras e novamente gritos de “sem liderança!” muitos deles, impaciente eu retruquei “sem partido, sem liderança, mas vocês estavam seguindo o cara do PCdoB em direção a ETUFOR! Com as bandeira ao menos vocês sabem quem é quem!”, com cara de bobo ele retrucou “mas eles querem tomar o movimento!”, deixei ele para trás e segui, com os pés doendo, jogando conversa fora com meus camaradas, fazendo piada dos cartazes (por um tempo, em protesto ao protesto, segurei um cartaz em branco que achei no chão, esse me pareceu ser a principal reivindicação do movimento), até que chegamos ao palácio, e nem sinal de polícia ou repressão, tudo muito ordeiro e politicamente correto. Quando chegamos lá foi bonito, mesmo para um “velho comunista” cínico e ranzinza como eu, as pessoas invadiram o mausoléu e entraram ma piscina, foi bonito mesmo.

Uma coisa eu compreendi, esse é realmente um movimento irracional, não apolítico, isso não existe, mas profundamente irracional, nossa psicologia diurna não pode explicá-lo. Mas algo me tocou, para além de minha angústia de ser mera recorrência estatística na massa, pois isso não me traz êxtase ou terror, apenas angústia, esses moleques parece que começam a gostar do Brasil. A mídia os ensinou que nada nesse país presta, que tudo aqui rescinde a corrupção e decadência, que todos os demais países são melhores, mas esse movimento irracional está pendendo a balança para o outro lado, vamos ver no que vai dar. Além disso, quando os moleques saem do transe da turba, eles ainda sentem algo que talvez, talvez, tenha valor, sentem que têm algum poder, que podem fazer algo. O problema é que em sua inocência creem estar inventando a roda. Na volta para casa, cansados e doloridos, meus camaradas me contavam como marcharam do centro ao Cambeba a pé, na década de oitenta e acamparam por nove dias por lá para enfrentar Tasso Jereissate, eram tempos bem difíceis. O gigante não despertou, mas as “crianças da pátria” sim, mas elas ainda estão um pouco sonâmbulas, vagando a esmo, mas o que eu desejo ver realmente é o momento em que estarão realmente despertas, talvez nossa luta tenha herdeiros, alguém a quem passaremos o bastão quando o cansaço for demais para uma caminhada tão longa.

5 comentários:

  1. Amigo, muito bom seu texto, mas tenho uma ou duas passagens a comentar:
    Quanto aos gritos de ordem, você está considerando meramente o significante e ignora o novo significado dado diante do contexto atual. Comercial de carro e whisky, não importa: a embalagem recebe um novo conteúdo dependendo da ocasião, e foi o que aconteceu. Obviamente, não estamos gritando "vem pra rua" como se fosse apologia a uma marca de carro.. estas frases foram re-significadas.
    E quanto a ser um protesto vazio, acho que também há um engano: acho que a própria existência da passeata, o próprio andar já é uma direção. A rua é a direção. O motor impulsionador é a revolta, o grande "NÃO" que todos gritam - à impunidade, ao desvio de verbas, ao abandono do governo e descaso social. Agora, temos que torcer para que o movimento amadureça e o "NÃO" furioso transforme-se num "SIM" - a busca de formas de efetivar todas estas demandas.

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    1. Obrigado Priscila, eu não discordo de vc, de fato essas palavras de ordem foram resignificadas, as palavras são polissêmicas, vc está certa, mas a origem dessas palavras de ordem não deixa de ser reveladora. No seu segundo ponto, eu discordo, mas espero estar enganado, não acho que a ação seja um valor em si, e a minha angústia se deveu justamente a esse andar por andar, não creio que a rua seja uma direção, pois essa direção se não é consciente certamente será inconsciente e só há ação e decisão moral consciente, do contrário somos vítimas de cruel automatismo inconsciente e da força avassaladora dos instintos. mas eu espero sinceramente que vc esteja com a razão e que haja uma transformação cultural resultando disso tudo, que esse não a tudo e a nada seja em algum momento um sim, só me preocupa um sim a quê...

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  2. Realmente admiro seu espírito combativo, oh Veterano. Permita-me deixar aqui registrada a gratidão que nós, "crianças da pátria", sentimos por vós, Pais Conscritos.

    Admiro ainda mais a sua lucidez. Não dá pra discutir com os meus colegas, jovens militantes "de esquerda". Eles são muito inocentes, não gostam de pensar por si mesmos, são cheios de ideias erradas e cheios de pregas no rabo. Ao contrário de vocês "macacos velhos", que já foram currados e sabem quem é quem, quem espera você se distrair pra faturar em cima.

    Porém, oh Veterano, devo dizer, não sem muito pesar e muito carinho, que você...infelizmente, engessou no tempo.

    Você não acompanhou o andar da sua era. Você está fisicamente no presente, mas suas ideias e espírito estão no passado. O seu saudosismo é um sintoma de doença muito pior. A modernidade passou, vivemos em tempos um pouco mais estranhos ("tempos líquidos";Z.Baumam). A pós-modernidade não é para iniciantes (que não é o seu caso) e nem para aqueles que se deixam ficar para trás. E pode ser uma era deveras angustiante para aqueles acostumados com os velhos caminhos.

    Você cometeu o PIOR crime que tanto o pensador quanto o revolucionário (não há um sem o outro) podem cometer. Você envelheceu...

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    1. Quanto ao movimento ser irracional, isso é verdade. "A humanidade é OK, mas 99% das pessoas são idiotas tediosos" Slavoj Zizek. A massa de freud nunca se comportou de maneira racional. Não esperaria mais dos jovens que saem, em massa, nas ruas.

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    2. Todos envelhecem, destino que compartilha todos os que vivem no vale da sombra da morte, eu sinceramente gostava do bauman antes de ele virar uma franquia de simesmo, e desconfio dos superlativos hiper, super e companhia, eu concordo com Jung de que há um sentido e significado em envelhecer, não vejo pecado nisso, e todo movimento de massa padece de irracionalidade, não se trata de um juízo de valor, mas uma constatação empírica. Zizek está coberto de razão, a pesar do cinismo da afirmação. felizmente, não consigo ser tomado pelo mesmo extase de quem parece hipnotizado pelas ruas, e não posso deixar de lado os meus anos de batalha, ou deixar de lembrar, que a consciência é um adaptação momentânea a realidade e sem a história não pode haver cultura e, é sempre bom lembrar aos jovens, que a roda já foi inventada...

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