Já tive o privilégio de conhecer e treinar com grandes mestres de artes marciais e de vários caminhos espirituais, a começar pelo meu professor de shaolin o grão mestre Chan Kowk Wai (陳國偉). Recentemente, na realidade ontem, tive a oportunidade de conhecer e treinar com um mestre de Kung Fu Garça Branca e Tai Chi renomado mundialmente, o Dr. Yang Jing Ming (楊俊敏博士), e seu filho mais novo e presidente de sua organização para difusão da arte do Kung Fu (YMAA) Nicholas Yang. Além da técnica extremamente apurada, sofisticada e sutil – Dr. Yang ministrou um curso de Chin Na (擒拿) – me impressionou a figura humana, de uma humildade e simplicidade impressionantes, dono de um conhecimento enciclopédico sobre artes marcais e medicina chinesa, extremamente aberto e afetuoso. Durante o breve período em que ele nos ministrou seus ensinamentos e em que eu servi de interprete, ele narrou várias histórias e parábolas sobre seus treinos com seu mestre e outras histórias interessantes. Apesar dos freqüentes puxões de orelha de minha professora de Budismo a venerável Bhikkhuni Ani Zamba Chozom devido ao meu interesse por esse tipo de histórias, não pude deixar de me deleitar com as várias parábolas marciais que o mestre Yang compartilhou conosco. Devido a esse fato, resolvi compartilhar com todos os que lêem o meu blog, algumas dessas historietas maravilhosas que já tive a oportunidade de ouvir de grandes mestres.
Começo com uma da Ani Zamba, estávamos recebendo alguns ensinamentos quando ela percebeu que duas pessoas, duas jovens senhoras, estavam conversando durante a sua palestra. Com muito bom humor ela as repreendeu e mandou “sentarem-se separadas”, em seguida contou a seguinte parábola:
Existem quatro tipos de estudantes, por favor, pensem em que tipo vocês são e qual gostariam de ser. Estudantes são como vasos, onde o mestre despeja a água límpida e cristalina do ensinamento. Alguns desses estudantes são como vasos que já estão cheios, e não se pode colocar mais nada, sempre que o mestre derrama a água límpida do ensinamento ela apenas derrama. O segundo tipo parece estar vazio, mas há nele um pequeno buraco, e por mais que o mestre despeje a água cristalina do ensinamento, ela sempre se perde por esse pequeno buraco. O terceiro tipo parece estar vazio a primeira vista, mas há bem no fundo uma porção pequena e quase imperceptível de veneno, e por mais que o ensinamento seja puro, ao ser despejado nesse vaso ele se contamina e se torna envenenado. O quarto tipo é como um vaso que está genuinamente vazio, e neste o mestre pode despejar a água pura e cristalina do ensinamento e ele será preenchido por ela.
Mestre Yang contou outro que é bastante conhecido e parecido com que narrei antes, mas que é muito interessante mesmo assim:
Um guerreiro, muito orgulhoso de sua própria força a habilidade, procurou um famoso mestre para treinar com ele. Esse mestre rapidamente se deu conta do orgulho e arrogância desse guerreiro que o procurava em busca de ensinamentos, devido a isso o convidou para tomar chá. Ele lhe ofereceu uma xícara e a encheu até a borda, em seguida continuou a enchê-la, fazendo-a transbordar. Ao ver aquilo o guerreiro pediu ao mestre que parasse de derramar chá, pois a xícara já estava cheia e não cabia mais nada nela, ao que o mestre retrucou “você é como essa xícara, por isso não posso ensiná-lo, já está tão cheio que não se pode colocar mais nada”.
Várias vezes durante nosso treino com mestre Yang ele falou de sua compreensão sobre arte, sobre como é preciso ter o sentimento correto sobre as técnicas e de que é preciso a partir do fundamento e da raiz correta, estar sempre e sempre criando e tornando a arte algo pessoal e único. Por isso ele contou uma parábola referente ao criador do Tai Chi Yang, Yang Lu Chang (楊露禪), se não me engano, a história é a seguinte:
O mestre ensinou por três anos uma rotina de espada de Tai Chi a um de seus discípulos, até que cada um de seus movimentos possuía o sentimento correto, isso levou três anos. Ao perceber que todos os movimentos estavam perfeitos e com o sentimento correto ele mandou seu discípulo de volta a sua vila para treinar por mais três anos e depois retornar. Após os três anos o discípulo retornou, mas ele estava desapontado e envergonhado, ele treinara duro todos os dias para não desapontar o mestre, mas ao se apresentar diante dele disse “mestre, eu lamento, mas após o meu treino, cerca de trinta por cento dos movimentos não possui mais o mesmo sentimento” ao que o mestre replicou “não, não, isso não é bom, volte e treine por mais três anos”. Resignado, o discípulo fez como lhe fora ordenado. Após mais três anos ele retornou, e não ousava nem mesmo olhar nos olhos de seu mestre, tão grande era a sua vergonha e desapontamento. “mestre, dessa vez pelo menos setenta por cento de meus movimentos não possuem mais o mesmo sentimento”, calmamente o mestre retrucou “não, não, isso não é bom, vá embora e treine por mais três anos”. Resignado o aluno retornou para sua vila e treinou com ainda mais afinco e dedicação, todos os dias. Ao retornar, findos os três anos, ele disse com tristeza: “mestre, dessa vez nem mesmo um único movimento possui mais o mesmo sentimento que aprendi com o senhor”, ao que o mestre respondeu “ótimo! Isso sim é muito bom, agora esse é o seu sentimento e não o meu!”.
O mestre Yang usou várias vezes o exemplo de Picasso, pois ele era um grande pintor e um mestre de sua arte, pois havia encontrado a sua expressão pessoal e única da arte, que não era uma mera cópia dos modelos aprendidos com seus professores. Ele também contou uma história sobre seu mestre de Garça Branca:
Quando era jovem, meu mestre me ensinou um movimento do estilo Garça Branca e eu acreditava que ele possuía apenas uma única aplicação para a luta, todavia uma vez vi vários de meus colegas praticando esse movimento e cada um deles o utilizava de uma forma diferente. Imediatamente procurei o meu mestre e perguntei qual maneira de usar o movimento era correta, ele me respondeu com uma pergunta “pequeno Yang (pois eu era pequeno aos quinze anos de idade) quanto são um mais um?” imediatamente respondi que qualquer pessoa educada sabia que um mais um são dois, ele sorriu e replicou “não pequeno Yang, não são dois”. Confuso eu repliquei que ao somar um mais um a resposta era dois. Novamente ele sorriu e disse, “não, você está errado, seu pai é um e sua mão também é um, juntos tiveram cinco filhos, logo um mais um são sete. Se a arte está morta um mais um são dois, mas se está viva são sete!”.
Finalizo com uma história das mais interessantes narrada pelo Dr. Yang:
Um mestre de artes marciais chamou seus discípulos e lhes mostrou um grande vaso e um monte de pedras, em seguida pegou as pedras uma a uma e encheu completamente o vaso. Ao terminar essa operação ele perguntou “esse vaso está cheio?”. Os discípulos se entreolharam e responderam “sim está”. O mestre então pegou um punhado de pedrinhas bem pequenas e despejou no vaso, em seguida indagou “e agora, está cheio?”. Ainda confusos os discípulos responderam “sim, agora está cheio”. Sorrindo o mestre apanhou um punhado de areia e despejou completamente no vaso, virou-se para seus alunos e repetiu a pergunta, uma vez mais eles responderam afirmativamente, o vaso estava cheio. Ainda com o sorriso enigmático nos lábios ele encheu o tal vaso de água até a borda e disse “bem, agora está cheio, agora me digam, qual a relação entre esse vaso e as suas vidas?”
Bem, deixo em aberto a resposta, que fique o enigma para aqueles que se interessarem em meditar sobre ele.