Caro
Heráclito,
Talvez
você já não se recorde mais de mim, mas em 2018 eu costumava ser você. Espero que
esteja bem e gozando de boa saúde, estou me esforçando bastante para que isso
seja verdade, espero que esteja em ótima forma e tenha envelhecido bem, como eu
tinha planejado. Espero sinceramente, que esteja melhor do que eu em todos os
aspectos, mas temo, sinceramente, que a agitação da sua vida e seu ímpeto
criativo o façam de fato me esquecer, e isso seria um grave erro. Estou agora
contando com 39 anos, e a última vez em que escrevi sobre mim mesmo tinha 33, e
olhando para aquele Heráclito, sinto que muitas das dificuldades que ele viveu
não foram apenas superadas, mas construíram diversas das qualidades que exibo
hoje, mas certamente eu não sou mais aquele homem de 33 anos, ainda tão confuso
e lidando com a rejeição de seu próprio pai e com os desafios de tornar-se, ele
mesmo, um pai, ainda tão prisioneiro do próprio intelecto e lutando arduamente
para se comunicar, para falar para as pessoas sobre tudo aquilo que lhe era
vitalmente importante. Em comum com ele tenho ainda o fato se permanecer um
judeuzinho pobretão, rogo para que não seja o seu caso, mas mesmo nesse
quesito, estou melhor hoje do que ontem.
Também
chego à modesta conclusão, que às portas da meia idade, estou começando a fazer
as pazes com muito daquilo que perdi, daquilo que fazia aquele Heráclito alguém
tão peculiar, e, somente agora, posso tentar conciliar com alguma maturidade. Este
ano foi, talvez, o ano mais importante da sua curta vida, ao mesmo tempo, foi o
ano em que o destino engendrou de dentro de você o dragão que finalmente te
derrotou, em que finalmente sua alma te cobrou um preço mais alto do que você
foi capaz de pagar e, depois de colar os pedaços da sua vida, estilhaçada pelo
desastroso casamento que aquele Heráclito imprudente de 33 anos nos meteu, sua
vida se partiu novamente, mas de dentro e não por fora. Por isso, meu caro, é
crucial que você se recorde de algumas das lições que aprendeu, por isso me dou
ao trabalho de lhe remeter essa missiva, para que os meus dissabores não sejam
os seus. Tudo o que eu sangrei nesse ano, espero que regue o jardim da sua vida
em um futuro não tão distante, talvez daqui há seis anos, quando realmente
formos completos estranhos.
Mas
me alongo em prolegômenos, talvez por sentir que a tarefa que tenho diante de
mim é demasiada, há tanto a ser dito e não creio que tenha a arte necessária,
ou a coragem, ou mesmo a força, visto agora estar alquebrado, para lhe
transmitir aquilo que deve ser registrado a ferro e fogo em sua alma. Nossa alma.
Não
resta dúvida que você é um homem extraordinário, mas lembre-se meu caro, ao
contrário de tudo o que você julgou por 39 anos, você é tão ciumento quanto
qualquer um, pode ser tão controlador e invasivo quanto qualquer um, e não
possui metade da paciência que julgava ter. Você simplesmente não se importava
o bastante para que a paciência fosse como uma lâmina sobre o seu coração,
nunca sentiu ciúmes por jamais ter amado ninguém, essas supostas qualidades que
você sempre julgou ter, inclusive sua proverbial calma diante de situações
adversas, não passavam de um reflexo distorcido da sua frieza e ausência de
sentimentos, quando eles foram adicionados à equação, você agiu de maneira
canhestra e inábil, mais do que seria de se esperar de um homem da sua idade.
Maturidade
não é algo linear, seu intelecto amadureceu cedo, cedo demais eu diria, e isso
teve um preço que agora estou pagando. Aprender rápido não é necessariamente
uma virtude, o poder acaba vindo antes da sabedoria para usá-lo. Você não deve
se fiar demais em seu intelecto, por mais poderoso que ele seja, muitas vezes é
a arma inadequada para encarar aquilo que surge e sua vida. Sua intuição é
muito boa, mas algumas vezes eu não acreditei nela, isso foi um erro, um erro
que cometo há anos, siga a sua intuição, escute o que os seus demônios têm a
lhe dizer, mesmo aqueles que parecem apenas querer feri-lo, esses têm a língua
afiada por dizerem a verdade. Prefira sempre a verdade ao autoengano. Por favor,
tente não tornar coisas banais e simples em fontes intermináveis de ansiedade,
somente faça o que tem que ser feito, não pense demais, lembre-se de ser mais
prático. Seu charme e competência não vão lhe livrar de ter de fazer o que é
esperado de todos os demais, seu talento não é um passe livre para agir como se
não precisasse ter as mesmas responsabilidades, esse lado da sua infantilidade
não é charmoso, é apenas ridículo e pode lhe custar caro.
Eu
sinceramente espero, que aquilo que começa a acontecer comigo já esteja firme e
cristalizado em você, meu amigo. Sempre tive uma tendência epimeteica terrível
de me deixar guiar pelas opiniões de outrem, de usar isso para afetar humildade
e mostrar que não sou um sujeito arrogante. Isso só me desviou de mim, e os
conselhos bem intencionados das pessoas agora só me irritam. Tenho passado mais
tempo só, espero que não se esqueça disso, de ficar só, pois é indispensável ao
estudo que você tanto ama, e a criação, que é o sentido de sua vida – isso não
vai mudar, não mudou desde os 4 anos de idade. Ficar sozinho te permite
refletir sobre os motivos de fazer as coisas que você faz, de fazer planos, de
ponderar sobre o que deu errado e de confabular com seus demônios. Não os tema,
em breve tomarei as medidas necessárias para que você ou mergulhe ainda mais
profundamente em sua alma e retorne mais sábio ou simplesmente enlouqueça. Qualquer
uma das possibilidades, nesse momento, me parece interessante. Se estiver
louco, talvez essa missiva lhe dê uma nesga de sanidade. Firmeza interior é
importante, finalmente a sabedoria do I Ching faz sentido quando ele diz que a
firmeza deve estar do lado de dentro e suavidade do lado de fora. Não há
motivos para temer a escuridão, ela é uma ótima companheira se souber como
lidar com ela, tudo o que você sempre julgou que lhe atormentava vindo das
trevas estava guardado no seu peito, e está lá mesmo com a luz do dia.
Cuidado
ao queimar com muita intensidade, pois essa chama tem um brilho esplêndido, mas
se consome muito rápido. Tudo pelo que passamos até agora, que eu passei, deve
agora, depois de tantos anos ter te ensinado o valor do comedimento, da paciência
e da calma verdadeira. Não se afobe, é preciso julgar as coisas com cuidado, e
isso leva tempo, especialmente para mim, que não passo de um tolo no que diz
respeito ao valor. Olhando em retrospecto, minha vida foi um pesadelo
intelectual, em que jamais soube aquilatar o que os eventos dela realmente
significaram para mim em termos de valor.
Lembre-se,
por favor, de outra quimera que sempre foi tão subjetivante para nós
Heráclitos, você não é corajoso como pensa ser, mas apenas imprudente e
insensato. Sua imprudência pode ser uma virtude, mas apenas se temperada por
compaixão e altruísmos, do contrário é apenas o sinal inequívoco da sua
neurose. Só se pode ser genuinamente corajoso quando se é capaz de sentir medo.
Naquilo que realmente importa, você é tão covarde quanto todos os demais, e, ao
saber o que realmente importa, agora nós sabemos, surge a possibilidade de ser
realmente corajoso e não um tolo imprudente que age sem pensar. É preciso saber
o que realmente importa, meu caro, ou você sempre vai meter os pés pelas mãos. Lembre-se,
você é um covarde, lembre-se de que só podemos lidar com um inimigo que
conhecemos, saber que você é um covarde te dá a oportunidade de ser bravo. Eu sou
apenas um idiota que encararia o perigo apenas por ele estar lá, e porque nunca
se deparou com algo que realmente o intimidasse, e secretamente, nos recantos
mais obscuros do seu coraçãozinho, você sempre flertou com a morte. O caminho
do samurai é encontrado na morte, sempre te pareceu algo bonito, mas se você
não ama e edifica a vida, se não se importa, a morte não pode jamais ser um
sacrifício genuíno. A vida não é simplesmente o intervalo de tempo que você usa
para escrever o seus livros, é preciso amar a vida, mesmo naquilo que ela tem
de horrendo, não apenas em termos teóricos ou metafóricos, agora, meu caro, se
você usar realmente sua proverbial memória, você sabe muito bem do que se trata
o horror em sua vidinha miserável.
Finalmente
meu querido amigo, vamos à parte mais sensível dessa carta, justamente aquilo
que devo pedir encarecidamente que você jamais esqueça, ou minha existência
terá sido em vão. Sei que logo desaparecerei para dar lugar a você, mas tenho
sofrido tanto e suportado tanto e aprendido tanto que você me desonraria e
prestaria um desserviço a si mesmo se ousasse esquecer tudo isso. Meu recato
não me permite entrar em detalhes, mas vou lhe lembrar do essencial. Seu coração
é mais jovem do que o restante de você, nesses vinte anos de dedicação a sua
alma, você habilmente levou anos e anos para entender o óbvio, mesmo com toda a
insistência do seu espírito, e assim fugir da luta mais importante, devido a isso, os Heráclitos que me antecederam
deram passos modestos, que resultaram na minha atual adaptação social, porém,
para mim ficou a parte mais ingrata do caminho. Perceber finalmente as quimeras
que cegaram nossos antecessores, que sempre estiveram embevecidos demais com a
própria mente, cegos pela própria teimosia, e exageradamente cônscios da violência
e habilidade de que você seria capaz se assim desejasse, para enxergar o real
problema. Mal esse véu se rasgou, mal eu adquiri algum grau de realismo, e todo
o problema que se avolumou no seu coração por décadas veio à tona aos
borbotões.
Sua
alma é uma bruxa ingrata, que ou te faz correr atrás de diversas mulheres ou te
amarra a mulheres inadequadas. Infelizmente, seus sentimentos são ingênuos e
sinceros quando finalmente aparecem. Os feitiços de sua alma, que te enredaram
por tanto tempo nas teias dessas maldições parecem estar se quebrando, mas a
que preço! Cuidado a quem você vai entregar o seu coração, ao primeiro sinal de
egoísmo e narcisismo fique alerta. O Heráclito que escreveu o texto aos 33 anos
era alguém bondoso, ingênuo e descuidado, inapto socialmente ao ponto da
caricatura. Sua bondade vinha de sua ingenuidade, hoje, creio eu, que depois de
passar pelo terrível ordálio pelo que passei, posso novamente ser bondoso. Não por
ingenuidade, mas por saber o que as pessoas sentem, como dói, como é terrível. A
dor pode ter o condão de destruir, mas igualmente de criar, eu já vi os efeitos
destrutivos da dor, a morte interior que ela pode causar, a devastação que
deixa para trás apenas uma casca vazia que se julga invencível, ou pior, que
deseja que o mundo se converta no deserto que é a alma daquele que padece.
Lembre-se, você jamais será inabalável, do contrário não poderá sentir
compaixão. Para mim, meu caro, para sua ventura, a dor foi criativa, e
didática. Finalmente pude sentir em primeira mão a dor que meu egoísmo causou
em tantas pessoas, pois para nossa eterna vergonha, sempre que havia a menor
possibilidade de seus sentimentos surgirem, os Heráclitos que nos precederam
foram apenas tremendos egoístas, desprovidos de compaixão e grandes filhos da
puta. Eu lamento por eles, mas lamento mais por mim que tive de pagar esse
preço. Não importa o quanto você sofra, lembre-se que há beleza nesse mundo, há
pessoas a serem amadas, confortadas, ensinadas, que quanto mais bondade você
puder trazer a esse vale de lágrimas, melhor. Não é possível ser bondoso e
egoísta, isso não passa de uma farsa, não é possível ser bondoso apenas por um desígnio
intelectual. Não é possível amar sem ter consciência dos próprios sentimentos,
e por essa consciência se paga um preço tão elevado que nesse exato momento eu
penso não ter valido a pena. Eu espero sinceramente, Heráclito, que você possa
ler essas linhas e pensar “valeu sim”.
Nenhuma
dor, nenhuma decepção, meu caro, vale o preço de deixar de crer naquilo que eu
descobri, não meu amigo, sei por experiência própria que seus sentimentos são
valiosos e, apesar de singelos, têm também uma qualidade adamantina insuspeita.
O fluxo da vida tem um jeito engraçado de nos pregar peças, nesse exato
instante, eu pensei que essa carta me custaria um pedaço da minha alma, que
seria uma dor inenarrável ponderar sobre tudo isso para que você possa tirar
melhor proveito da minha existência. Não foi tão duro, mas creio que ao chegar
próximo ao final dessa longa missiva, percebo que essa carta também é o meu
testamento, minhas últimas palavras dirigidas ao homem que vou me tornar, pois
sinto que a minha morte está mais próxima do que imaginava, hoje fui ferido de
morte, e creio que o choque me fez ainda não sentir a profundidade do golpe, eu
certamente sentirei com o tempo, só espero que essa dor não te atinja. Meu espectro
ainda vai te rondar por um bom tempo, essas lembranças vão te assombrar, mas
creio que quando você estiver lendo isso, e eu há muito tiver desaparecido,
serão memórias agridoces. Minha vida e a minha morte devem ser o começo do seu
triunfo, torne-se o homem que está predestinado a ser, nossos antecessores
perderam muito tempo, não há mais tempo a perder. E com um último alento, lhe
peço, seja responsável, sempre arque com as consequências dos seus atos, não há
nada mais fundamental.
Quase
me esquecia! Você fez em seu braço uma bruxaria para não se perder, mas se
perder é fundamental, perca-se! O país do castelo do Graal é o lugar a que só
se chega sem o saber! A jornada verdadeira da aventura só começa ali onde não há
caminho, finalmente, finalmente aprendi verdadeiramente essa lição, não a
esqueça. Perca-se e tudo ficará bem. Estou perdido agora, é duro, mas sei que o
caminho que leva a mim mesmo jamais foi trilhado por outrem, não há mapa, não
há marcas, e é imprescindível se perder. Estou perdido agora para poder
encontrá-lo, caríssimo amigo, e você continuará essa jornada ali onde eu
tombar, e será em breve, marque o lugar da minha queda com uma rosa, uma com 3
espinhos.
Sinceramente seu, Heráclito 06/06/2018