Eu
comecei a dar aulas em 2004, e por um período de 6 longos anos, lecionei numa
escola particular, algo que, espero, jamais volte a fazer. Por essa época eu
era jovem e tolo (muita coisa mudou, hoje eu sou velho e tolo) e depois de
algum tempo nessa escola, outro professor teve que abandonar no meio do ano
letivo uma turma de quinta série (hoje seria de sexto ano). Há época eu
lecionava história do Brasil e história do Ceará, mas tinha um grande desejo de
ensinar história antiga. Acontece que me convidaram para substituir esse
professor e nessa turma eu poderia, finalmente, falar sobre Grécia, Roma e
todas as coisas legais que eu sempre gostei de estudar, então eu aceitei de
imediato. Esse talvez tenha sido o meu maior fiasco como professor, e eu fiz
com essa turma as mesmas coisas que faço normalmente e me dão a reputação de
ser um excelente professor, mas como todo fracasso, ele me ensinou muito mais
do que os meus sucessos. Jung gostava de dizer a seus alunos que tinham feito
algo digno de nota “então você sofreu um sucesso?”, não se tratava de ironia,
pois ele acreditava que ao sermos bem sucedidos apenas temos confirmação para
continuar fazendo o que sempre fizemos, enquanto o fracasso coloca em xeque
nossas certezas e nos obriga a rever coisas até então tidas como certas. Mas o
que eu aprendi com essa experiência de fracassar ao lecionar para um bando de
garotos?
Em
primeiro lugar, como eu disse antes, era jovem e tolo, pois bem, a coordenadora
me entregou o livro didático e me disse que teria de fazer uma prova e indicou
o capítulo: Grécia. Eu tinha falado antes com o professor, um exemplar bem
típico de sua curiosa espécie, com todos os cacoetes que se espera de alguém
forçado a lecionar para crianças em um ambiente tão adverso quanto uma escola
particular de elite. Ele me disse que já havia ministrado a prova sobre essa
matéria, mas como a coordenadora – que por sinal não tinha dado nenhuma aula a
essa turma, ou aplicado nenhuma prova, corrigido uma prova sequer e, creio eu,
sequer saberia dizer o nome de um só dos tais alunos – me disse que eu
elaborasse a tal prova sobre Grécia eu obedeci. Eu fiz a prova enviei por email
no prazo correto, pois bem, dias depois ela me chamou até a sua sala, munida de
um outro funcionário, para me dizer que eu não enviara a prova no prazo. Confuso,
eu disse que havia enviado assim como me fora pedido, ao que ela retrucou “mas
você elaborou uma prova sobre a Grécia, essa não era a matéria dessa avaliação”.
Eu assisti então, chocado, a ela me dizer que devido a isso eu deveria assinar
um documento que iria me “multar”, aqui cabe uma explicação, por essa época
minha hora aula eram ridículos 5 reais, mas eles me davam um abono que era um
tipo de fraude contábil que fazia eu receber 10, mas podia ser revogado se eu
não obedecesse os prazos. Silenciosamente eu assinei e vi o meu salário de fome
cair pela metade, e a cara da tal coordenadora impassível, e o olhar cínico
dela. Essa experiência me deixou com um saudável respeito pela desobediência e
impertinência, que carrego comigo até hoje.
Depois
desse começo promissor, mais experiências ruins começaram a se acumular. Bem,
eu estava empolgado em finalmente lecionar o que eu realmente queria, empolgado
em demasia eu diria. Vinha acumulando leituras sobre isso, e tinha um interesse
especial pelo período turbulento e fascinante do fim da república romana. Minha
primeira aula não se baseou em quase nada que estava no livro didático, e eu
levei informações sobre a língua, cultura, estratégias militares, e coisas que
achei que capturariam a imaginação dessas crianças, mas toda a resposta que
obtive deles foi “onde isso está no livro?” ou “isso vai cair na prova?”. Aqui vale
uma outra explicação, as questões das provas deviam indicar exatamente de que
página e parágrafo do livro didático estavam sendo tiradas, para que as mães
não reclamassem e os alunos soubessem responder exatamente de acordo com o
livro e tirassem boas notas. Notem que, o objetivo era a prova e as notas,
aprender alguma coisa não era nem de longe um objetivo a ser alcançado.
A
coordenação nunca precisou me repreender, ou me forçar a seguir o roteiro
pré-estabelecido para que de parte a parte não existissem problemas, os
próprios alunos se encarregaram de fazer isso. Com exceção de uma garota e um
rapazinho, todos os demais estranhavam a minha aula e detestavam o fato de não poderem
localizar no livro em tempo real aquilo que eu estava lhes falando. Eu não
encarei bem essa situação, havia passado a minha infância inteira lendo sobre
civilizações antigas, mitologia, arqueologia e eu seria exatamente o tipo de
professor que eu teria adorado ter. Meus alunos não estavam exatamente adorando,
havia um pacto que garantia uma ordem e conformidade, não havia surpresas e
tudo seguia sempre o mesmo roteiro enfadonho, e era isso que meus alunos
desejavam. A maioria deles havia estudado nessa escola desde bem pequenos e
sempre fora assim, previsível e esquemático.
Nada
do que eu fazia parecia surtir o menor efeito, bom fazia um efeito, mas era
exatamente o contrário do que eu esperava. Depois de algum tempo, eu só me
resignei e passei a pateticamente ler o livro em sala, e meus alunos ficaram
mais satisfeitos, e eu mais miserável. Ao final do ano, eu deixei aliviado essa
turma e jamais fui convidado novamente a lecionar para as séries iniciais. Eu aprendi
da maneira mais amarga que nesse tipo de educação aprender não era um objetivo
a ser almejado, tirar boas notas e manter os alunos satisfeitos sim.
Nem
imagino que fim levaram meus alunos, já devem ser adultos, espero que estejam
bem, mas imagino que devam ter tido dificuldades para lidar com o mundo real
que nem sempre se conforma as nossas expectativas, porém, mais frequentemente
eu penso que devem ter sido bem sucedidos, de uma maneira mais simples e fácil
do que eu jamais poderia sonhar, pois certamente eles sempre estavam ansiosos
para corresponder às expectativas e não ser mais do que o que os niveladores
sociais ditavam que fossem. Eu poderia ter arruinado suas boas chances de serem
apenas o que se esperava deles. Barbara Hannah escreveu que se uma ovelha
caminha a frente do rebanho ela é vista pelas demais como lobo. Desde essa
experiência eu venho mais e mais percebendo que sou um lobo, e prefiro ser, mas
um que aprendeu vez ou outra não mostrar os dentes e nem rosnar desnecessariamente,
mas tudo o que tenho a ensinar aos meus alunos é o que eu sou, e sempre espero
deles, ao menos dos melhores entre eles, desobediência e impertinência. É preferível fracassar como lobo a ser uma ovelha bem sucedida.