domingo, 29 de abril de 2018

Um dos meus fracassos como professor


Eu comecei a dar aulas em 2004, e por um período de 6 longos anos, lecionei numa escola particular, algo que, espero, jamais volte a fazer. Por essa época eu era jovem e tolo (muita coisa mudou, hoje eu sou velho e tolo) e depois de algum tempo nessa escola, outro professor teve que abandonar no meio do ano letivo uma turma de quinta série (hoje seria de sexto ano). Há época eu lecionava história do Brasil e história do Ceará, mas tinha um grande desejo de ensinar história antiga. Acontece que me convidaram para substituir esse professor e nessa turma eu poderia, finalmente, falar sobre Grécia, Roma e todas as coisas legais que eu sempre gostei de estudar, então eu aceitei de imediato. Esse talvez tenha sido o meu maior fiasco como professor, e eu fiz com essa turma as mesmas coisas que faço normalmente e me dão a reputação de ser um excelente professor, mas como todo fracasso, ele me ensinou muito mais do que os meus sucessos. Jung gostava de dizer a seus alunos que tinham feito algo digno de nota “então você sofreu um sucesso?”, não se tratava de ironia, pois ele acreditava que ao sermos bem sucedidos apenas temos confirmação para continuar fazendo o que sempre fizemos, enquanto o fracasso coloca em xeque nossas certezas e nos obriga a rever coisas até então tidas como certas. Mas o que eu aprendi com essa experiência de fracassar ao lecionar para um bando de garotos?

Em primeiro lugar, como eu disse antes, era jovem e tolo, pois bem, a coordenadora me entregou o livro didático e me disse que teria de fazer uma prova e indicou o capítulo: Grécia. Eu tinha falado antes com o professor, um exemplar bem típico de sua curiosa espécie, com todos os cacoetes que se espera de alguém forçado a lecionar para crianças em um ambiente tão adverso quanto uma escola particular de elite. Ele me disse que já havia ministrado a prova sobre essa matéria, mas como a coordenadora – que por sinal não tinha dado nenhuma aula a essa turma, ou aplicado nenhuma prova, corrigido uma prova sequer e, creio eu, sequer saberia dizer o nome de um só dos tais alunos – me disse que eu elaborasse a tal prova sobre Grécia eu obedeci. Eu fiz a prova enviei por email no prazo correto, pois bem, dias depois ela me chamou até a sua sala, munida de um outro funcionário, para me dizer que eu não enviara a prova no prazo. Confuso, eu disse que havia enviado assim como me fora pedido, ao que ela retrucou “mas você elaborou uma prova sobre a Grécia, essa não era a matéria dessa avaliação”. Eu assisti então, chocado, a ela me dizer que devido a isso eu deveria assinar um documento que iria me “multar”, aqui cabe uma explicação, por essa época minha hora aula eram ridículos 5 reais, mas eles me davam um abono que era um tipo de fraude contábil que fazia eu receber 10, mas podia ser revogado se eu não obedecesse os prazos. Silenciosamente eu assinei e vi o meu salário de fome cair pela metade, e a cara da tal coordenadora impassível, e o olhar cínico dela. Essa experiência me deixou com um saudável respeito pela desobediência e impertinência, que carrego comigo até hoje.

Depois desse começo promissor, mais experiências ruins começaram a se acumular. Bem, eu estava empolgado em finalmente lecionar o que eu realmente queria, empolgado em demasia eu diria. Vinha acumulando leituras sobre isso, e tinha um interesse especial pelo período turbulento e fascinante do fim da república romana. Minha primeira aula não se baseou em quase nada que estava no livro didático, e eu levei informações sobre a língua, cultura, estratégias militares, e coisas que achei que capturariam a imaginação dessas crianças, mas toda a resposta que obtive deles foi “onde isso está no livro?” ou “isso vai cair na prova?”. Aqui vale uma outra explicação, as questões das provas deviam indicar exatamente de que página e parágrafo do livro didático estavam sendo tiradas, para que as mães não reclamassem e os alunos soubessem responder exatamente de acordo com o livro e tirassem boas notas. Notem que, o objetivo era a prova e as notas, aprender alguma coisa não era nem de longe um objetivo a ser alcançado.

A coordenação nunca precisou me repreender, ou me forçar a seguir o roteiro pré-estabelecido para que de parte a parte não existissem problemas, os próprios alunos se encarregaram de fazer isso. Com exceção de uma garota e um rapazinho, todos os demais estranhavam a minha aula e detestavam o fato de não poderem localizar no livro em tempo real aquilo que eu estava lhes falando. Eu não encarei bem essa situação, havia passado a minha infância inteira lendo sobre civilizações antigas, mitologia, arqueologia e eu seria exatamente o tipo de professor que eu teria adorado ter. Meus alunos não estavam exatamente adorando, havia um pacto que garantia uma ordem e conformidade, não havia surpresas e tudo seguia sempre o mesmo roteiro enfadonho, e era isso que meus alunos desejavam. A maioria deles havia estudado nessa escola desde bem pequenos e sempre fora assim, previsível e esquemático.

Nada do que eu fazia parecia surtir o menor efeito, bom fazia um efeito, mas era exatamente o contrário do que eu esperava. Depois de algum tempo, eu só me resignei e passei a pateticamente ler o livro em sala, e meus alunos ficaram mais satisfeitos, e eu mais miserável. Ao final do ano, eu deixei aliviado essa turma e jamais fui convidado novamente a lecionar para as séries iniciais. Eu aprendi da maneira mais amarga que nesse tipo de educação aprender não era um objetivo a ser almejado, tirar boas notas e manter os alunos satisfeitos sim.

Nem imagino que fim levaram meus alunos, já devem ser adultos, espero que estejam bem, mas imagino que devam ter tido dificuldades para lidar com o mundo real que nem sempre se conforma as nossas expectativas, porém, mais frequentemente eu penso que devem ter sido bem sucedidos, de uma maneira mais simples e fácil do que eu jamais poderia sonhar, pois certamente eles sempre estavam ansiosos para corresponder às expectativas e não ser mais do que o que os niveladores sociais ditavam que fossem. Eu poderia ter arruinado suas boas chances de serem apenas o que se esperava deles. Barbara Hannah escreveu que se uma ovelha caminha a frente do rebanho ela é vista pelas demais como lobo. Desde essa experiência eu venho mais e mais percebendo que sou um lobo, e prefiro ser, mas um que aprendeu vez ou outra não mostrar os dentes e nem rosnar desnecessariamente, mas tudo o que tenho a ensinar aos meus alunos é o que eu sou, e sempre espero deles, ao menos dos melhores entre eles, desobediência e impertinência. É preferível fracassar como lobo a ser uma ovelha bem sucedida.

2 comentários:

  1. compartilho da mesma angustia em relação a tudo. aconteceu o mesmo comigo, como professo e como aluno. quando eu era aluno, me faltou um professor nesse estilo, quando me tornei um professor, me faltou o aluno. canseira, tudo uma canseira. οἴμοι οἴμοι

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    1. acho que eu dava aulas esperando encontrar o meu eu criança e sedento por esse tipo de saber, talvez isso me alienasse da experiência real dos meus alunos

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