domingo, 20 de setembro de 2015

Sobre o libertarianismo


Me proponho a escrever sobre esse tema não para analisá-lo, tampouco com qualquer intuito expresso ou velado de denegri-lo, mas para refletir sobre esse fenômeno, que a mim, a minha sensibilidade me espanta, e o que fazer desse espanto? Justamente, talvez, esteja aqui a falar desse meu sentimento de espanto e menos do tema que me proponho, quase de uma maneira impressionista me ponho a falar sobre esse movimento que em seu nome procura ter relação com a liberdade, mas me parece um tanto autoritário, todavia, esse não é o ponto.

Para nós que somos velhos militantes de esquerda, sim essa palavra que parece tão gasta já, ele parece eivado de contradições, no mínimo tão contraditório em si mesmo quanto o nosso próprio movimento. Não compartilho da opinião de que se deve cunhar palavras novas para designar as coisas, isso por dois motivos. O primeiro é o de que não sou animado pelo preconceito de que as palavras ou os conceitos explicam aquilo que denotam, não se trata por certo de palavras carregadas de poder, um poder adâmico de nomear, ou a força numinosa de um demiurgo, não, as palavras são carregadas sim, mas de história. O que me leva ao meu segundo motivo, que é justamente a história, as palavras existem no tempo e na sociedade e são pelo tempo e pela sociedade significadas e ressignificadas, assumem sentidos e perdem significados com a polissemia que lhes é uma característica tão marcante. Abrir mão dessas velhas e gastas palavras é abrir mão dessa história venerável que elas carregam, e, com isso abrir mão da potência que possuem para o novo, ou para o novo de novo. Por isso, e não por um maneirismo de velho militante – talvez também por isso, mas não apenas isso – use essas velhas amigas. O fato é que enxergo esses “novos” movimentos que agora parecem ter certo apelo entre nossos jovens em uma estreita relação com aquilo que foram nossas utopias, nossas da esquerda.

Nossas utopias, nosso desejo de mudar o mundo, parece a um certo olhar que se fez em pedaços quando a cortina de ferro caiu junto do muro de Berlim e, por um instante fugaz, pudemos crer que nosso mundo era novamente um só, mas se tratava apenas de um jogo de espelhos e fumaça, um truque. Esse olhar iguala nossas utopias com os processos sociais e históricos que com ela se identificaram, fazendo tabula rasa de suas diferenças no tempo e no espaço, lhes conferindo uma unidade ilusória, e, por fim, lhes atribuindo uma fidelidade impossível tanto a essas utopias quanto a origem histórica dessas ideias que reconhecem com exclusividade em Marx, como se fosse ele o profeta dessa verdade que, em virtude desse fracasso que se lhe atribui deve logicamente ruir e ser jogada no lixo da história.

O que me proponho a problematizar de uma maneira um pouco menos míope – visto que todos nós sofremos de algum mal da vista causado pelo tempo e pela geografia, bem como por nosso constituição mais íntima – é que o fracasso de diversos modelos que possuem sua origem direta ou indireta nessa utopia de esquerda, nesse desejo de mudar o mundo no sentido de uma maior igualdade entre os homens por meio da redistribuição da riqueza e do poder, não significa de maneira necessária o fim dessa utopia. Ideias além de uma história possuem um valor que talvez ultrapasse ainda mais o peso de seus movimentos no tempo, muitas ideias possuem um valor simbólico inestimável que servem como guia em uma determinada direção, que produzem os homens e suas lutas e cujo significado não parece poder ser esgotado nos compêndios de filosofia ou sociologia de onde aparentam terem surgido. Nenhuma utopia pode ser alcançada, desse modo, a rigor, nenhuma utopia fracassa. A utopia se constitui em um horizonte de ampliação as possibilidades do presente, e quanto mais essas possibilidades se alargam em direção ao que parece ser esse horizonte mais ele se afasta. O valor simbólico dessas ideias de utopia são justamente um dos fatores que engendram num sentido íntimo os movimentos da história, em uma ação paradoxal que acontece de fora para dentro e de dentro para fora ao mesmo tempo e sem contradição. A ideia da morte de uma utopia, em virtude da impossibilidade dessa morte é, em si mesma, uma utopia. Mas o que essa ideia engendra em nós e na nossa sociedade?

Parece-me que há, de maneira insidiosa, animando esse movimento essa ideia negativa, a utopia do fim das utopias, e ao invés de uma tentativa de mudar o mundo, há, isto sim, uma ação no sentido de tornar ainda mais profundas e acentuadas justamente as características contra as quais nos levantávamos. O intuito parece ser tornar o mundo ainda mais igual ao que ele é, não a mudança, ou ao menos a mudança em direção ao máximo de imobilidade, mudar para que nada mude. Não há um horizonte, não se pode olhar além, as utopias morreram. Sobre esse cadáver deve-se erigir um mundo novo, mas ele é o velho mundo só que sem qualquer outra possibilidade, sem espaço para o outro, a liberdade é uma liberdade de ser mais do mesmo. A minha impressão é que esse pensamento só é possível em desafio as nossas utopias, o que mostra uma profunda dependência, daí a necessidade da utopia da morte das utopias.

A prova que se procura dar dessa ideia se faz por meio de um discurso que nega toda a diferença que é inerente aos diversos processos históricos e culturais. Negam-se as evidentes diferenças e contradições internas do que houve na China, na Rússia, em Cuba, no Vietnam na Coréia e se busca uma unidade justamente na utopia compartilhada. Ora, nada mais contrário a si mesmo que a esquerda, nada mais avesso a ideia de unidade, nada mais contraditório e fugidio. Faz-se uma história capenga, feita de “fatos” pretensamente objetivos e inelutáveis (nunca leram Marc Bloch) e cria-se essa unidade que demonstra o fracasso e a morte da utopia comunista. Todavia essa pretensa unidade é apenas o efeito de um discurso, faz parte de uma certa retórica que se parece muito com o conceito nefasto de ideologia como pensado por Marx. Fundamentalmente a morte utopia parece ser cega ou avessa à diferença. Assim, o que importa salientar no que concerne a história da Rússia, China, Cuba etc., é a sua unidade no fracasso e, segue o argumento, na morte da utopia que os anima. Resta-nos então, de maneira inelutável o capitalismo em sua face liberal. Nesse ponto a vulgata historicista dá espaço ao argumento econômico que assume o lugar cimeiro, tudo se explica pela economia – essa ciência tão exata e precisa – e, por uma ironia carregada de significado, nesse ponto se aproximam da forma de explicação do Marxismo vulgar.

A economia e seus dogmas (livre mercado, empreendedorismo, estado mínimo, meritocracia etc.) leva a um determinado tipo de sociedade em que há uma negação dos direitos usando o argumento da liberdade. Surge de maneira redentora o indivíduo, não o indivíduo em sentido psicológico – esse que é fundamental as sociedades – mas sim um tipo de indivíduo que me parece atomizado, apartado ou liberto dos laços culturais e sociais, detentor de uma vontade poderosa que é o ideal vitoriano redivivo (o horror das duas grandes guerras que fez esse ideal cair por terra só é lembrado para se provar por meio da economia que o nazismo era um movimento de esquerda), um ser racional e guiado por essa luz da ração em suas escolhas econômicas, um ser mítico que qual um São Miguel vitorioso, pisa na cabeça de Freud e o declara de uma vez por todas morto. De uma maneira insidiosa faz-se do egoísmo uma virtude e toda explicação social deve dispensar a sociedade e a cultura, pois a ação individual é o motor da explicação, da racionalização da sociedade e da vida dos povos. Retorna-se, talvez sem que se perceba, a velha e caduca história narrativa que sabia bem que eram os sujeitos dela: os grandes homens. Eis que o aspecto ideológico desse discurso, dessa retórica se revela: é a vontade que faz os grandes homens, diante do malho da vontade nenhum muro pode resistir. Ainda assim esse poder quase demoníaco é usado em prol de que as coisas permaneçam imóveis.

Zizek, quando realça a qualidade psicológica da utopia comunista por meio de um raciocínio Hegeliano, ao nos dizer o óbvio, que essa ideia funciona como um universal concreto hegeliano, no sentido de ter a potencialidade, a habilidade de ser reinventada em cada nova situação histórica. Isso aponta que a maneira como o século XX encarnou essa ideia está morta e fracassou, ninguém nega tal coisa. Mas a ideia de uma emancipação humana radical está além do tempo e da morte. O que urge fazer é reinventá-la novamente. Deleuze, ao definir a esquerda, a definiu justamente pela sua preocupação primeiro com o coletivo, é um tipo de percepção que se interessa em primeiro lugar não por mim e por meus problemas individuais, mas que enxerga em primeiro plano os grandes problemas sociais, ao avesso do que é o endereço postal. Parece-me que a ideia de liberdade, pautada por um egoísmo insidioso, deixa de lado qualquer noção de solidariedade, e coloca como o modelo ideal de sociedade a competição (justamente a única relação ecológica em que os dois lados saem prejudicados). A noção de esquerda de Deleuze me faz pensar no ideal de Bodsatva do budismo Mahayana, que ao invés de buscar a libertação individual percebe que não pode libertar-se até que o último talo de grama atinja o estado de libertação das ilusões.

Se aceitarmos essa retórica que nos oferece um mundo sem utopias, sem compaixão, sem direitos (pois podem entravar a liberdade), cujo leitmotiv é o "direito" a propriedade (que vem em graus, no grau máximo aos super-ricos e no mínimo a todos os demais), verdade dogmática e inquestionável, temo pelo nosso futuro. Nós velhos militantes precisamos deixar que o século XX acabe, e sem nenhum temor viver plenamente no século XXI, pois esse século precisa que reinventemos essa ideia emancipação humana radical. A esquerda vê primeiro o horizonte, nosso horizonte é a nossa utopia que segue viva e bem, mas ainda não a conhecemos, apenas pelos seus velhos nomes que já não lhe servem mais, precisamos tomar esse palavra, comunismo e reinventá-la, ou então seremos mais um desses potentes indivíduos senhores da razão que devem se contentar em ser obedientes.

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

No ringue da internet somos nós que perdemos

Recentemente assisti a um vídeo em que o jovem libertário Kim Katagiri alfineta o deputado Jean Willys. O rapazote pinçou uma fala do deputado em que ele erra as datas de alguns fatos históricos na tentativa de sustentar a afirmação de que os gays são o grupo mais perseguido na história. Kim rebate o erro cronológico e, como macartismo tacanho que lhe é característico, ataca o socialismo e aponta os defensores da liberdade ou libertários como sendo o grupo mais perseguido e odiado da história.

Bom, nenhum dos dois é historiador e estão a se meter em uma seara em que, me parece, um entendo pouco e outro nada. Esse, todavia, não é o ponto, o que me chama a atenção nesse episódio, é o fato lamentável de um debate importante como gênero, sexualidade e direitos dos LGBT seja reduzido a uma vendeta pessoal entre duas figuras públicas.


Essa é uma estratégia publicitária das mais antigas e mais eficazes. Assim como adoramos ver gente trocando sopapos nos ringues até que estejam cobertos de sangue e suor, reduzidos a uma massa grotesca de inchaços e hematomas, também adoramos ver uma boa lavagem de roupa suja em público e um debate acalorado em que importa menos o que se debate e mais o aspecto belicoso da coisa toda. No começo de sua carreira como costureiro, Clodovil arrumou um rival e, de comum acordo, trocavam alfinetadas pela mídia, assim cresciam ambos. Com esse vídeo que o jovem Kim (ironicamente com um penteado que parecia imitar o de Jean) certamente não espera realmente debater, mas conseguir mídia espontânea, likes e compartilhamentos, até eu que não nutro simpatia por ele vi. O irônico da história, é que essa estratégia ajuda os dois lados e só atrapalha o público, que se vê levado pelas emoções a escolher um lado da contenda como sendo o portador da verdade e o outro como o vilão e inimigo a ser derrotado.

O chato é que, da posição de historiador, ambos estão prá lá de equivocados. Primeiro não há um ranking dos mais perseguidos da história. Atenas era democracia homoerótica, em Roma era esperado que os homens fossem bissexuais, apenas para citar alguns exemplos. Se eu tivesse que dar um palpite sobre que grupo foi mais oprimido e perseguido durante a nossa história num primeiro momento eu pensaria nos judeus, mas logo em seguida eu me recordaria que, mesmo entre os oprimidos e perseguidos judeus, as mulheres eram muito oprimidas, e colocaria em primeiro lugar as mulheres. Kim, com um senso de história quase tão extenso quanto sua idade, parece não conhecer o fato de que as ideias são polissêmicas e possuem uma história, e uma história venerável. Creio que o sentido que ele atribui à liberdade seja justamente aquele que surge com a ascensão da burguesia com o advento das revoluções francesa e industrial, na acepção que lhe dão os filósofos iluministas, logo, não havia defensores desse tipo de liberdade antes do século XVIII.
Nesse tipo de debate que não passa de estratégia de propaganda, importam menos os argumentos e muito mais a retórica e oratória de cada um dos contendores. A falácia do Ad Hominem é a regra, pois o que se deseja demonstrar é justamente a incapacidade do meu interlocutor, ele é um parvo e defende ideias contrárias a minhas, logo, só um parvo defende ideias contrárias as minhas e eu, que nesse caso fico no lugar de sabido, não só estou certo, como estou do lado de uma verdade infalível. A isso se somam as mais populares falácias: argumentum ad ignorantiam, argumentum ad populum, e o mais importante  deles, o coração do seu macartismo, argumentum ad baculum, tremei, pois a revolução comunista espreita e estou aqui para salvá-los! Tudo o que se busca com esse estratagema é popularidade.

Lamentavelmente, um dos aspectos de nossa indigência política é justamente essa terrível pusilanimidade argumentativa, pautada por uma profunda desonestidade intelectual e por esse sentimento primitivo de torcida. Nesse caso em particular, os dois falaram besteira, mas ainda assim encontram quem os aplauda. No MMA fica claro quem vence, no nosso caso, só fica claro quem perde e somos todos nós. Empobrecemos nossa capacidade de interpretar o mundo, nos deixamos levar pela emoção, e, ao invés de pensar e analisar, apenas torcemos. É triste que poucos se recordem de um axioma psicológico proposto por Jung, o de que “se é aquilo que se combate”. Eu, de minha parte, além de lamentar e escrever algo a respeito, não sei muito bem o que fazer, visto o palco das redes sociais onde circulam essas “peças publicitárias” ser o menos adequado possível ao debate franco e honesto. Falta-nos história, falta-nos lógica, falta-nos filosofia, falta-nos tanta coisa que é difícil superar os abismos que nos separam. Urge que interpretemos aquilo que chega até nós, ao invés de simplesmente aderir com rapidez aquela informação que melhor se conforma aos meus preconceitos afetivos e desejos quiméricos.

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Sobre o racismo



Vou iniciar esse modesto escrito analisando algumas piadas que eram contadas sem nenhum pudor na minha infância, por essa época não havia celulares e nem tampouco redes sociais por onde esse ódio em forma de chiste pudesse se espalhar (e a manutenção dos mamutes peludos que usávamos pra nos locomover também tomava muito tempo), mesmo assim eram contadas sem grandes preocupações ou pudores, sequer era preciso inventar um discurso que as legitimasse baseado no pressuposto da liberdade de expressão.

A primeira delas começava com a singela pergunta “onde o cabelo da mulher é mais ruim?” (não é pior não, viu? É mais ruim mesmo), seguida de uma pausa dramática para dar tempo do interlocutor a quem era dirigida a espirituosa pergunta pensar que se tratava de uma alusão de teor sexual aos pelos pubianos femininos (que à exceção das orientais em geral, é crespo). A deixa para seguir adiante era o constrangimento de quem não queria dizer em voz alta o nome científico ou vulgar do púbis feminina, esse silêncio constrangido era cortado pela resposta correta “na África”. Essa é uma piada que, a mim me parece, sintetiza o que há de pior na nossa cultura, pois consegue ser: machista, xenofóbica, racista e sem graça. O tipo de piada que esperaríamos ouvir de um Danilo Gentili com o mal disfarçado intuito de ofender. Perceba a lógica insidiosa que subjaz a essa piada, é motivo de pudor e vergonha falar dos pelos femininos (que por sinal nossa cultura procura abolir a todo custo), mas não é vergonhoso, aliás, é engraçado ser racista. O adjetivo “ruim” é associado não apenas aos cabelos crespos, mas as mulheres negras e África. O continente africano é visto como algo monolítico, sem contradições ou uma história e culturas, é apenas aquele lugar de onde vieram os negros, que por sinal, têm cabelo “ruim”. Sendo o crespo “ruim”, por oposição o “bom e o belo” se situa do lado do liso (branco ou índio).

A próxima piada é ainda pior, mas ainda mais reveladora do nosso racismo trivial e cotidiano. Um negro estava andando de bicicleta por uma estrada quando ela quebrou. Ele pediu carona a um caminhão que passava carregado de bolas de boliche e foi em cima da carga. Ao passar por uma cidade um homem o viu em cima das bolas de boliche e correu a ligar para a polícia e disse “vocês precisam vir rápido! Tem um caminhão carregado de ovos de negro e um deles chocou e já roubou uma bicicleta!”. A piada desumaniza o negro, ele pode até se parecer com um ser humano, mas nasce de “ovos” e já nasce com uma tara genética que o leva ao roubo. O teor dessa piada expressa com clareza o que vai na alma do racista; negros não são seres humanos e são naturalmente propensos ao crime.

Freud, já em 1905, falava sobre os chistes (Witz) como um produto do inconsciente assim como os sonhos e sintomas, é uma forma de retorno do recalcado em que se diz (sem dizer realmente, ou sob disfarce) aquilo que realmente se deseja, por isso provocam um enorme alívio e uma profunda descarga de tensão. A primeira piada tem algo de chiste no sentido aludido por Freud, pois causa uma certa tensão ao resvalar em um tema sexual, mas o desvia em direção a um, não tão velado, racismo. O mesmo Freud, em 1927 escreveu sobre o humor, para a abertura de um congresso de psicanálise (vê-se tratar-se de um assunto sério), diferenciando o humor do chiste (Witz). Na lógica da primeira tópica, o humor se situa já em um estágio pré-consciente, por ação do super-ego (Über-Ich) para evitar um sentimento doloroso eminente. Na lógica de Freud nesse momento de sua obra, ambos estão a serviço do princípio do prazer. O chiste é a habilidade de descobrir similaridades escondidas, expressas de maneira econômica por meio dos mecanismos de deslocamento (Verschiebung) e condensação (Verdichtung). No humor se procura evitar desprazer causado pelo mecanismo do recalque. Em nosso caso, creio que existe a expressão de uma cultura que sobrevive a despeito de ter sido rechaçada formalmente, e que constitui esses sujeitos que contam tais piadas, pois confirmam seus preconceitos afetivos e lhes dão acesso a um outro abjeto que finda sendo um reflexo especular distorcido deles mesmos, seu quadro de Dorian Gray, onde eles veem sua desumanidade e suas piores falhas de caráter no outro, nesse outro absoluto a quem é negada até mesmo o status de ser humano. Infelizmente, para essas pessoas, há um certo interdito, pois o racismo não é mais aceito abertamente, como já o foi.

O racismo já teve até mesmo o verniz de ciência, Lombroso, um dos pioneiros da psicologia forense, ao examinar os dados das populações carcerárias e perceber que em sua maioria eram negros, procurou encontrar aí o protótipo do seu “criminoso nato”. Na tipologia física (assim como se fez na frenologia e fisiognomia que também gozaram do status de ciência) ele procurou encontrar as determinantes do comportamento, a invisibilidade de alma se revelava na carne, ou, em nosso caso, na pele. Desconsiderando a história e o contexto social dos negros que estavam encarcerados, ele supôs (o que já se supunha por meio da teologia no período colonial), a inferioridade física e moral dos negros. Nossa segunda piada revela um parentesco muito próximo com essas ideias, pois o negro já nasceria com uma propensão ao crime. Essa ideia, de um criminoso nato, é um dos preconceitos afetivos mais fortes em nossa sociedade, e é o combustível invisível e insidioso de jornalistas que lucram com o sofrimento alheio e se fazem de porta-vozes do ódio e da intolerância. Jung, em um escrito pouco lido, mas fundamental, Presente e Futuro, assevera que aquilo que compreendemos por autoconhecimento é um conhecimento muito restrito e na maioria das vezes dependente de fatores sociais, e por isso tropeça no preconceito de que tal fato não acontece conosco, com a nossa família ou em nosso meio mais imediato.


Por outro lado, a pessoa se defronta com pretensões ilusórias sobre suposta presença de qualidades que apenas servem para encobrir os verdadeiros fatos (Jung, 2011, p.13).

Esse “outro” é fundamental para mantermos essas aparências, para nos sentirmos possuidores de uma virtude que na verdade não possuímos, encarar a individualidade desse outro, passando por cima de nossos desejos quiméricos e fantasias mórbidas exige que primeiro nos voltemos a nós mesmos e compreendamos esse outro como um espelho a nos refletir nele vemos nosso ódio, nossa baixeza e pusilanimidade. Nossa miopia confunde nossos defeitos com a realidade desse outro, com isso nós roubamos deles o direito a individualidade, resta, como dizia Caco Antibes “aquela massa marrom”. Lamentavelmente, uma parte privilegiada de nossa sociedade prefere ainda a saída de Maria Antonieta “se não tem pães por que não comem bolos?”. Negando a existência do racismo (são apenas inocentes piadas), e negando a necessidade de um combate a ele. Não se trata apenas de um viés ideológico, infelizmente, mas de uma mentalidade largamente enraizada em preconceitos e quimeras as mais irracionais e muito difícil de ser atacada pela crítica que apela justamente a razão. Fala-se cinicamente em meritocracia, e citam-se exemplos os mais raros para com eles justificar todo e qualquer argumento. Temos uma imensa facilidade de esquecer a história, de esquecer séculos de miséria, sujeição e brutalidade. Ao ponto do historiador Jacob Gorender ter sugerido que os negros escravos eram sempre tratados como animais ou objetos, a não ser quando cometiam um crime, aí eram tratados e julgados como seres humanos. Essa cegueira aludida por Jung nos leva a um comportamento similar aos de nossos antepassados coloniais, ignoramos os negros e suas vicissitudes, não ligamos para os massacres promovidos pela polícia nas periferias (ou os aplaudimos, o que é pior), mas basta que um crime ocorra na porta de um condomínio de luxo para bradarmos a plenos pulmões. Nesse instante a capa de invisibilidade desaparece e passamos a nos importar com aquele indivíduo que até então fora um nada, um ninguém, pois ele deve ser julgado e preso, ou pior. Nesses momentos de aparente rasgo da nossa civilidade e normalidade, surge o que há de pior em nossa sociedade, pois rapidamente as ideias caducas de Lombroso são exumadas e, como zumbis apodrecidos, tentam nos devorar.

O diálogo nessas situações é extremamente comprometido, pois a nossa inconsciência nos torna prisioneiros de certezas inelutáveis, nossas opiniões se convertem magicamente em fatos e as ideias mais estapafúrdias e caducas, alijadas de sua historicidade, passam a ser potentes argumentos, quase auto evidentes. Quando estamos metidos nessa seara, em que a indigência argumentativa e moral (essa não percebida) são a regra, precisamos com mais força ainda da história, precisamos recolocar essas ideias em sua historicidade e lembrar que nossa nostalgia de um passado melhor e mais belo é uma fantasia (ela tem todo o direito de existir, mas não podemos nos pautar por ela sem que seja criticada), precisamos de maneira ainda mais urgente da filosofia para não termos tantas certezas assim e, duvidando metodicamente, estaremos mais abertos a ouvir. Como é difícil simplesmente ouvir nos nossos dias! Nossa própria voz parece ter o efeito de um canto de sereia e nada mais importa (pois a verdade já está do nosso lado). Precisamos da psicologia, para nos dizer que o conhecimento do mundo começa com o conhecimento de nossa alma, lá onde medram preconceitos e ódios, que se tornam mais poderosos quanto mais ignorados, e agem como demônios a nos possuir. Precisamos lembrar, que não podemos supor que a nossa psicologia possui uma validade universal, e que outras maneiras de sentir, pensar, sonhar existem e possuem igual direito a existência.

Criticar o racismo é, ao mesmo tempo, criticar uma ideia que possui uma história, uma mentalidade social, uma ideologia que está a serviço de setores de nossa sociedade, uma prática social nefasta e que causa profundo sofrimento, mas é igualmente criticar a nossa inconsciência que é a pedra fundamental sobre a qual o racismo repousa, sem esse fundamento ele desaba.