quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Sobre o racismo



Vou iniciar esse modesto escrito analisando algumas piadas que eram contadas sem nenhum pudor na minha infância, por essa época não havia celulares e nem tampouco redes sociais por onde esse ódio em forma de chiste pudesse se espalhar (e a manutenção dos mamutes peludos que usávamos pra nos locomover também tomava muito tempo), mesmo assim eram contadas sem grandes preocupações ou pudores, sequer era preciso inventar um discurso que as legitimasse baseado no pressuposto da liberdade de expressão.

A primeira delas começava com a singela pergunta “onde o cabelo da mulher é mais ruim?” (não é pior não, viu? É mais ruim mesmo), seguida de uma pausa dramática para dar tempo do interlocutor a quem era dirigida a espirituosa pergunta pensar que se tratava de uma alusão de teor sexual aos pelos pubianos femininos (que à exceção das orientais em geral, é crespo). A deixa para seguir adiante era o constrangimento de quem não queria dizer em voz alta o nome científico ou vulgar do púbis feminina, esse silêncio constrangido era cortado pela resposta correta “na África”. Essa é uma piada que, a mim me parece, sintetiza o que há de pior na nossa cultura, pois consegue ser: machista, xenofóbica, racista e sem graça. O tipo de piada que esperaríamos ouvir de um Danilo Gentili com o mal disfarçado intuito de ofender. Perceba a lógica insidiosa que subjaz a essa piada, é motivo de pudor e vergonha falar dos pelos femininos (que por sinal nossa cultura procura abolir a todo custo), mas não é vergonhoso, aliás, é engraçado ser racista. O adjetivo “ruim” é associado não apenas aos cabelos crespos, mas as mulheres negras e África. O continente africano é visto como algo monolítico, sem contradições ou uma história e culturas, é apenas aquele lugar de onde vieram os negros, que por sinal, têm cabelo “ruim”. Sendo o crespo “ruim”, por oposição o “bom e o belo” se situa do lado do liso (branco ou índio).

A próxima piada é ainda pior, mas ainda mais reveladora do nosso racismo trivial e cotidiano. Um negro estava andando de bicicleta por uma estrada quando ela quebrou. Ele pediu carona a um caminhão que passava carregado de bolas de boliche e foi em cima da carga. Ao passar por uma cidade um homem o viu em cima das bolas de boliche e correu a ligar para a polícia e disse “vocês precisam vir rápido! Tem um caminhão carregado de ovos de negro e um deles chocou e já roubou uma bicicleta!”. A piada desumaniza o negro, ele pode até se parecer com um ser humano, mas nasce de “ovos” e já nasce com uma tara genética que o leva ao roubo. O teor dessa piada expressa com clareza o que vai na alma do racista; negros não são seres humanos e são naturalmente propensos ao crime.

Freud, já em 1905, falava sobre os chistes (Witz) como um produto do inconsciente assim como os sonhos e sintomas, é uma forma de retorno do recalcado em que se diz (sem dizer realmente, ou sob disfarce) aquilo que realmente se deseja, por isso provocam um enorme alívio e uma profunda descarga de tensão. A primeira piada tem algo de chiste no sentido aludido por Freud, pois causa uma certa tensão ao resvalar em um tema sexual, mas o desvia em direção a um, não tão velado, racismo. O mesmo Freud, em 1927 escreveu sobre o humor, para a abertura de um congresso de psicanálise (vê-se tratar-se de um assunto sério), diferenciando o humor do chiste (Witz). Na lógica da primeira tópica, o humor se situa já em um estágio pré-consciente, por ação do super-ego (Über-Ich) para evitar um sentimento doloroso eminente. Na lógica de Freud nesse momento de sua obra, ambos estão a serviço do princípio do prazer. O chiste é a habilidade de descobrir similaridades escondidas, expressas de maneira econômica por meio dos mecanismos de deslocamento (Verschiebung) e condensação (Verdichtung). No humor se procura evitar desprazer causado pelo mecanismo do recalque. Em nosso caso, creio que existe a expressão de uma cultura que sobrevive a despeito de ter sido rechaçada formalmente, e que constitui esses sujeitos que contam tais piadas, pois confirmam seus preconceitos afetivos e lhes dão acesso a um outro abjeto que finda sendo um reflexo especular distorcido deles mesmos, seu quadro de Dorian Gray, onde eles veem sua desumanidade e suas piores falhas de caráter no outro, nesse outro absoluto a quem é negada até mesmo o status de ser humano. Infelizmente, para essas pessoas, há um certo interdito, pois o racismo não é mais aceito abertamente, como já o foi.

O racismo já teve até mesmo o verniz de ciência, Lombroso, um dos pioneiros da psicologia forense, ao examinar os dados das populações carcerárias e perceber que em sua maioria eram negros, procurou encontrar aí o protótipo do seu “criminoso nato”. Na tipologia física (assim como se fez na frenologia e fisiognomia que também gozaram do status de ciência) ele procurou encontrar as determinantes do comportamento, a invisibilidade de alma se revelava na carne, ou, em nosso caso, na pele. Desconsiderando a história e o contexto social dos negros que estavam encarcerados, ele supôs (o que já se supunha por meio da teologia no período colonial), a inferioridade física e moral dos negros. Nossa segunda piada revela um parentesco muito próximo com essas ideias, pois o negro já nasceria com uma propensão ao crime. Essa ideia, de um criminoso nato, é um dos preconceitos afetivos mais fortes em nossa sociedade, e é o combustível invisível e insidioso de jornalistas que lucram com o sofrimento alheio e se fazem de porta-vozes do ódio e da intolerância. Jung, em um escrito pouco lido, mas fundamental, Presente e Futuro, assevera que aquilo que compreendemos por autoconhecimento é um conhecimento muito restrito e na maioria das vezes dependente de fatores sociais, e por isso tropeça no preconceito de que tal fato não acontece conosco, com a nossa família ou em nosso meio mais imediato.


Por outro lado, a pessoa se defronta com pretensões ilusórias sobre suposta presença de qualidades que apenas servem para encobrir os verdadeiros fatos (Jung, 2011, p.13).

Esse “outro” é fundamental para mantermos essas aparências, para nos sentirmos possuidores de uma virtude que na verdade não possuímos, encarar a individualidade desse outro, passando por cima de nossos desejos quiméricos e fantasias mórbidas exige que primeiro nos voltemos a nós mesmos e compreendamos esse outro como um espelho a nos refletir nele vemos nosso ódio, nossa baixeza e pusilanimidade. Nossa miopia confunde nossos defeitos com a realidade desse outro, com isso nós roubamos deles o direito a individualidade, resta, como dizia Caco Antibes “aquela massa marrom”. Lamentavelmente, uma parte privilegiada de nossa sociedade prefere ainda a saída de Maria Antonieta “se não tem pães por que não comem bolos?”. Negando a existência do racismo (são apenas inocentes piadas), e negando a necessidade de um combate a ele. Não se trata apenas de um viés ideológico, infelizmente, mas de uma mentalidade largamente enraizada em preconceitos e quimeras as mais irracionais e muito difícil de ser atacada pela crítica que apela justamente a razão. Fala-se cinicamente em meritocracia, e citam-se exemplos os mais raros para com eles justificar todo e qualquer argumento. Temos uma imensa facilidade de esquecer a história, de esquecer séculos de miséria, sujeição e brutalidade. Ao ponto do historiador Jacob Gorender ter sugerido que os negros escravos eram sempre tratados como animais ou objetos, a não ser quando cometiam um crime, aí eram tratados e julgados como seres humanos. Essa cegueira aludida por Jung nos leva a um comportamento similar aos de nossos antepassados coloniais, ignoramos os negros e suas vicissitudes, não ligamos para os massacres promovidos pela polícia nas periferias (ou os aplaudimos, o que é pior), mas basta que um crime ocorra na porta de um condomínio de luxo para bradarmos a plenos pulmões. Nesse instante a capa de invisibilidade desaparece e passamos a nos importar com aquele indivíduo que até então fora um nada, um ninguém, pois ele deve ser julgado e preso, ou pior. Nesses momentos de aparente rasgo da nossa civilidade e normalidade, surge o que há de pior em nossa sociedade, pois rapidamente as ideias caducas de Lombroso são exumadas e, como zumbis apodrecidos, tentam nos devorar.

O diálogo nessas situações é extremamente comprometido, pois a nossa inconsciência nos torna prisioneiros de certezas inelutáveis, nossas opiniões se convertem magicamente em fatos e as ideias mais estapafúrdias e caducas, alijadas de sua historicidade, passam a ser potentes argumentos, quase auto evidentes. Quando estamos metidos nessa seara, em que a indigência argumentativa e moral (essa não percebida) são a regra, precisamos com mais força ainda da história, precisamos recolocar essas ideias em sua historicidade e lembrar que nossa nostalgia de um passado melhor e mais belo é uma fantasia (ela tem todo o direito de existir, mas não podemos nos pautar por ela sem que seja criticada), precisamos de maneira ainda mais urgente da filosofia para não termos tantas certezas assim e, duvidando metodicamente, estaremos mais abertos a ouvir. Como é difícil simplesmente ouvir nos nossos dias! Nossa própria voz parece ter o efeito de um canto de sereia e nada mais importa (pois a verdade já está do nosso lado). Precisamos da psicologia, para nos dizer que o conhecimento do mundo começa com o conhecimento de nossa alma, lá onde medram preconceitos e ódios, que se tornam mais poderosos quanto mais ignorados, e agem como demônios a nos possuir. Precisamos lembrar, que não podemos supor que a nossa psicologia possui uma validade universal, e que outras maneiras de sentir, pensar, sonhar existem e possuem igual direito a existência.

Criticar o racismo é, ao mesmo tempo, criticar uma ideia que possui uma história, uma mentalidade social, uma ideologia que está a serviço de setores de nossa sociedade, uma prática social nefasta e que causa profundo sofrimento, mas é igualmente criticar a nossa inconsciência que é a pedra fundamental sobre a qual o racismo repousa, sem esse fundamento ele desaba.

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