terça-feira, 20 de maio de 2014

O espelho de um Brasil despedaçado

Nós somos uma nação dividida, fraturada em muitos pedaços, em um quebra-cabeça muito difícil de solucionar. Nós olhamos para fora com admiração e espanto, atentos a tudo o que há de melhor no mundo que nos cerca, principalmente se isso mostrar, em contraste, tudo aquilo que temos de pior. Quando olhamos para nós mesmos, como que no reverso do conto de fadas, perguntamos ao espelho “quem é mais feio do que eu?”. Tudo é motivo de ressentimento, estamos sempre prontos a destilar ódio. No sul odeiam os nordestinos, em toda a parte se odeiam os negros, os gays, a mulheres e o governo. Incapazes que somos de nos reconhecer nesse espelho mágico às avessas, vemos, sem o saber, fragmentos de nós mesmos espalhados ao nosso redor, e os odiamos. A classe média se ressente de que o governo ajude aos mais pobres, sem se dar conta de que vivemos em uma mesma nação, sob as mesmas leis e o mesmo governo e, se o meu irmão passa fome, isso é problema meu. Se os direitos civis de alguém no norte do país são violados, os meus direitos estão em risco. Se uma jovem mãe não pode pagar os remédios de seu bebê, a minha vida se torna mais triste. Em nosso espelho despedaçado, esse idêntico à fábula de Andersen, o espelho do diabo, um pequeno fragmento de vidro amaldiçoado entrou em cada um de nossos olhos e nos faz ver sempre o pior, e, assim como no conto, um espectro gelado se apossou de nossos corações e nos impede de sentir compaixão por nossos irmãos.

Os cearenses não são meus compatriotas, que morram, menos bocas para alimentar. O homossexual que é assassinado teve o que mereceu, afinal ele escolheu ser diferente, não é? A garra gelada desse espectro que comprime nosso peito nos impede de ver naqueles que são diferentes de mim aquilo que me complementa e que, se não respeito ssa diferença, coloco em risco mortal meus próprio direito a individualidade. Mas em nossa estranha maldição, acreditamos em uma alteridade absoluta, que despe de humanidade o outro, posso ter compaixão por cãezinhos de rua, mas meninos de rua devem ser amarrados a postes. O segredo do feitiço desse fragmento de espelho é que nem suspeitamos que ele está lá, nos fazendo enxergar em preto e branco: eles e nós, sem mediações. O pior, algumas vezes, tão cegos estamos, que vítima e algoz se confundem: o nordestino assume o discusso xenófobo do sulista, o gay o discurso racista, o negro o discurso machista, o pobre repete a fala do rico a quem importa apenas o lucro.

Nossa automimagem em pedaços no impede de ver o quadro mais amplo, daquilo que nos une ao invés do que nos separa. Nosso ódio e ressentimento não fomenta a individualidade, mas o individualismo. Como o jogador político, crítico ferrenho da copa que aceita sem pudores dinheiro para lucrar com a copa. Não há contradição, afinal, é preciso levar vantagem. Qual a vantagem de alimentar um nordestino faminto? Ou levar água e luz a quem nunca as teve? Todo brasileiro adora apontar o dedo para o corrupto e os reconhece com presteza, pois nossos corações gelados são antros de ladrões. Tão atroz é nosso individualismo enregelado que acreditamos que se não votarmos estamos isentos de qualquer culpa, como Pilatos, lavamos as mãos e seguimos nossas vidas, odiando a nossa terra, sonhando com paraísos distantes, em terras mais evoluídas. E os que ficam? Eles que se virem! Quem se importa? Por acaso sou eu o guardião de meu irmão? Nossas respostas são respostas simples, impávidas diante daquele a quem nada pode ser escondido. Que se atire a primeira pedra? Ora, eu atiro à primeira, a segunda, a terceira e a décima, pois mato aos meus próprios pecados na adúltera que eu apedrejo, ou na bruxa que eu espanco até a morte, pouco importando que não seja bruxa, é mulher e isso já basta.

Brado em alto e bom som que vivemos em uma ditadura, sem temer qualquer retaliação e sem que isso não passe de basófia vazia, mas brado com coragem mesmo assim! E aponto o dedo em riste na cara dos ditadores eleitos democraticamente, depois volto pra casa, sem nenhum medo por mim ou pelos meus e me sinto grande e potente, sem a minha coragem o que seria dessa república de bananas? O que fazer com os bandidos? Que sejam todos mortos, desde que não sejam brancos, ricos e com nomes nórdicos. Quanto aos mendigos? As esmolas que eu dou no sinal deveriam bastar, por que o governo deve mimá-los ainda mais com esmola governamental? O que eu ganho com isso?

E seguimos despedaçados, até mesmo a quimera que nos unia caiu aos pedaços ao sabor dos interesses da mídia em fazer e desfazer governantes. Nos ressentimos até mesmo do futebol. Se antes ele já era para alguns o verdadeiro ópio do povo agora é o diabo em pessoa! Tudo que nasce nessa terra que em se plantando tudo dá é motivo de ódio e vergonha, até a invenção inglesa que se tornou algo tão nosso, nem mesmo esse refirgério nos resta. Não somos mais o país do futebol, mas o país da copa dos grandes desperdícios e elefantes brancos. E bradamos indignados, sem nem mesmo suspeitar da maneira como essa república que odiamos funciona. Detestamos o congresso, mas para que serve mesmo um congresso? Ah sim! CPIs é para isso que serve!

Mas a nossa situação é mesmo tão ruim assim? Talvez o meu fragmento do espelho do diabo seja um pouco menor, ou quem sabe, por viver em uma terra muito quente a dama do gelo tenha menos poder sobre o meu coração, ou quiçá eu seja apenas tolo. Mas ainda vejo aquilo o que nos une. Mesmo sendo um país que odeia em nome de fronteiras geográficas imaginárias, tivemos um presidente nordestino, não me refiro ao rico e bonitão de Alagoas, mas um pobretão bem feinho e, segundo muitos dizem, um analfabeto, e mais, um proletariado e sindicalista. Depois dele, nessa terra de mulheres espancadas, mulheres objeto seminuas na TV e no carnaval, de mulheres sem voz e nem vez, tivemos uma mulher na presidência. Alguns me dirão “mas não vês!? Eis aí o problema, a raiz de todo o mal!”. Quando um negro se elegeu presidente dos Estados Unidos da América, nos achamos lindo, mas aqui, aqui isso só mostra a extensão do problema, do meu problema bem entendido. Se a nação tem algum problema, é problema dela.

Há gestos de ódio sim, muitos, mais do que eu gostaria, mas há também pequenos milagres todos os dias. Existe ignorância em abundância, mas sei que há almas que brilham mais forte do que a escuridão que as cercam. Há egoísmo, mas existe, igualmente em nossa terra, aqueles que têm a coragem de lutar pelos outros, até mesmo por aqueles que ainda nem nasceram sob esses céus. Minha nação não é o país do futuro, mas o país que eu construo todos os dias, em que sou sim o guardião do meu irmão, em que sei que a minha felicidade depende da felicidade do meu próximo. Há, entre nós, o que pregam o ódio, mas temos também amor em abundância, disso tenho certeza, ou as coisas já seriam bem piores. Não há mudança sem dores, ou fáceis, e muitos são os desafios que esta terra nos impõe. Sempre que eu escuto alguém dizer que pretende, o mais rápido possível, fugir para uma terra distante, eu penso que é aqui que eu devo ficar, aqui na terra que os meus ancestrais escolheram para chamar de lar é que estão os desafios que a minha geração devem encarar, e não pretendo fugir, mesmo com o ódio, a intolerância, o ressentimento. Eu acredito que vivemos um momento ímpar e o que vai emergir dessa fogueira será determinado pela nossa coragem e nossas ações.

terça-feira, 13 de maio de 2014

Dragon Ball, o macaco andarilho, mas não peregrino...

Dragon Ball (ドラゴンボール) foi um dos mais estrondosos sucessos dentre as animações e quadrinhos japoneses. Criado por Toriyama Akira (鳥山 ) e publicado pela Weekly Shōnen Jump de 1984 a 1995 em um total de 519 capítulos. Em 1986 o mangá (漫画) foi transformado em um anime (アニメ) e foi ao ar por dez anos, até 1996, além de 18 filmes e 3 especiais para a TV. O sucesso foi estrepitoso, angariando fãs no quatro cantos do mundo, inclusive esse modesto escritor que devia ter, a época, por volta de 14 anos (tempos sombrios antes da internet em que tinha-se que conseguir animes em VHS e eram sempre raros e escassos).

No que concerne a este estudo, o interesse vai recair sobre o Dragon Ball clássico – posteriormente escreverei sobre o Dragon Ball Z – principalmente em sua comparação com o clássico O Macaco Peregrino, normalmente intitulado, em suas versões anglo-saxãs de Monkey, Journey to the West, no original: 西遊記.

Dragon Ball é uma releitura, ou versão, moderna, do clássico chinês Jornada para o Oeste, escrito no século XVI por Wu Cheng'em (吳承恩). A versão em quadrinhos guarda similaridades com a obra original, mas possui mais um tom de paródia e, o que é mais importante, revela um profundo empobrecimento simbólico se comparada ao original, o que diz muito do que esse anime pode nos desvelar do pano de fundo psíquico inexpresso de nossos dias. Os protagonistas possuem o mesmo nome em ambas as obras Son Goku ( 悟空) que significa algo como “consciente do vazio”, o que tem um significado profundo na obra original, mas perde toda e qualquer importância na paródia moderna. Ambos cruzam os céus em nuvens mágicas e possuem bastões mágicos capazes de mudar de forma e se alongar, além de serem consideravelmente poderosos, fora de qualquer medida. Goku, para reforçar a similaridade com o Rei Macaco original, possui uma cauda de macaco e pode, na lua cheia, (como um lobisomem) se transformar em um gorila gigante furioso praticamente invencível.

Na história original, temos um macaco, que nasce de maneira miraculosa (me deterei nisso adiante) e que logo se torna rei, depois imortal, e progressivamente vai se tornando mais e mais poderoso até se intitular “Sábio Igual ao Céu” – esse é um título prenhe de significado psicológico – e causar todo o tipo de barafunda na corte do Imperador de Jade (玉皇), mas era tão absurdamente poderoso o Rei Macaco que nenhum dos marechais celestiais ou espíritos e imortais podia detê-lo. O equilíbrio do mundo estava por um fio, ameaçado pelas arruaças do Macaco quando, sem qualquer outra saída, a corte celeste apelou para o Buda, que desafiou o macaco (um desafio que lhe mostrou o significado profundo da vacuidade de seu nome) e, depois de derrotá-lo, o aprisionou sob uma montanha de pedra por 500 anos. Passado esse tempo em cativeiro, ele foi ordenado a acompanhar um peregrino, Tripitaka, tornando-se seu discípulo, até a Índia para conseguir trazer o cânone budista à China. Mas, psicologicamente, qual o significado dessa obra? A obra descreve minuciosamente duas coisas. Primeiramente, todavia, convém recordar que, em termos psicológicos, os mitos são, antes de mais nada, a manifestação da essência da alma. Toda mitologia é uma espécie de projeção do inconsciente coletivo. Além disso, as figuras míticas, como o Rei Macaco, Sun Wu Kong, correspondem a vivências interiores, e os mitologemas (como o mitologema da criança divina que mostrarei adiante) são elementos estruturais da psique. Existe ainda a crença muito difundida de que os mitos são meras alegorias de eventos físicos, entretanto, em psicologia existe uma sutil inflexão derivada de constatações empíricas, trata-se do fato de que o arquétipo não provém de fatos físicos, mas descreve como a alma vivência a realidade física, como asseverou Jung em interessante nota de rodapé, a psicologia não trata das coisas como elas são por elas mesmas, mas somente da maneira como são imaginadas.

Fechado o parêntese, o livro descreve, na figura do macaco, a ação do complexo de poder e aquilo que Jung chamava de inflação psíquica. O termo original, tomado de empréstimo da psicologia de Alfred Adler (que por sua vez tomou de empréstimo de Goethe) “semelhança a deus” é psicologicamente mais preciso. O Macaco não passava de um cavalariço com um título pomposo no céu, um mero empregado de coudelaria, mesmo com seu imenso poder. Ao perceber que fora logrado, passou a causar as maiores desordens e se autodenominou de “sábio igual ao céu”, o que, psicologicamente, dá quase no mesmo que “semelhança de deus”. O Macaco de Pedra Sun Wu Kong é a própria imagem da desmedida.

Para que serve, afinal de contas, em termos psicológicos, existirem mitologias? Nosso hodierno racionalismo vê nelas nada mais do que uma curiosidade pré-científica da superstição de nossos avós, ou, no máximo, o legado venerável, mas avelhantado, de nossos antepassados. Em termos práticos, uma mitologia viva nos educa a lidar com os aspectos objetivos da alma e a evitar uma conduta similar a de Sun Wu Kong. Jung, em seu Símbolos da Transformação, assevera que, assim como os sonhos, os mitos não são uma mera invencionice. Por certo, na qualidade de représentions collectives, eles passaram por um longo processo de elaboração consciente – toda a força criadora que os modernos aplicam a ciência os antigos dedicaram a mitologia – mas enquanto forem vivos (numinosos) eles não podem ser reduzidos a uma mera propriedade da consciência, mas imagens oriundas do inconsciente e que carregam a marca indelével de sua origem. Afirma ainda Jung, no mesmo livro que,

Foi esse o significado vivo do mito, o de explicar ao homem desnorteado o que acontecia em seu inconsciente, que não o largava. O mito disse-lhe: “Isto não é você, isto são os deuses. Você nunca os alcançará, por isso volte-se para a sua vida humana, temendo e venerando os deuses”. (1999, p.300).


Se tivéssemos algum apreço pela etimologia, poderíamos extrair algo de valor mesmo da crença de que o mito não passa de superstição. Essa palavra vem do latim superstitionem (acusativo de superstitio), o vocábulo possui uma origem controvertida, mas mesmo assim prenhe de sentido psicológico. Para Cícero, significava um temor exagerado diante da divindade, para os primeiros cristãos a supertição era uma forma equivocada de religiosidade, pois colocava acento demasiado em detalhes. Mesmo nessa perspectiva, o temor que está presente fala, em termos psicológicos, da característica de autonomia das potencias inconscientes e sua qualidade mercurial e compulsória. Outra possibilidade de etimologia, essa ainda mais interessante, visto o valor apotropáico dos pequenos rituais religiosos – discernido até mesmo por Freud, mas hipostasiado em sua teoria – é a de que derive de “sobrevivente”, “o que está sobre algo”, sendo inicialmente referida a vidente ou profeta, pois representava uma tentativa de explicação fora dos domínios da razão. Como gosto de recordar, Jung também chamou o Inconsciente de “fator irracional, existencial inalienável”, o que mostra a ligação, mesmo que insidiosa, do inconsciente a superstição. Jung definiu a religião, como veremos adiante, como a constante e cuidadosa atenção aos fatores desconhecidos, ergo não agir apenas e exclusivamente guiado pela razão consciente, mas prestar atenção aos fatores desconhecidos e acontecimentos sincrônicos. De acordo com Franz, essa atitude, em termos psicológicos, só degenera em superstição, quando se torna algo mecânico, ou estereotipado (cruzar com um gato preto dá azar, etc), pois não depende mais de uma atitude intuitiva.

O macaco, entre outras coisas, representa uma atitude típica de desmedida. Não é ocioso salientar que nosso Macaco, não é um ser humano, mas um herói que teve um nascimento miraculoso e se elevou a alturas titânicas, mesmo que de uma maneira atabalhoada. Durante todo o livro há uma menção ao mau uso da religião, o próprio Macaco é um mestre taoísta (que usa o poder da alquimia interna para fins egoístas) e se depara com vários magos taoistas que igualmente fazem mau uso da religião e dos poderes advindos das práticas alquímicas e meditativas, psicologicamente, sucumbem ao complexo do poder e são incapazes de realizar a metanóia necessária ao verdadeiro serviço religioso. Assim como o Macaco, caem na trágica esparrela de se considerarem detentores do mana do inconsciente. Nessa obra fundamental, Jung afirma que o quantum total de energia da alma não é igual à energia da consciência, mas que existe o númem, a energia específica do arquétipo, e que esta, não pode jamais estar sob o controle da consciência. A consciência do eu, ao se julgar possuidora do mana do inconsciente é, na verdade possuída por ela, pois possessão significa, em termos psicológicos, ser assimilado a uma imagem arquetípica numinosa. Toda a possibilidade de ação desembaraçada e realmente consciente, ou seja, toda a liberdade empírica, desaparece diante dessa atitude de desmedida, dessa “semelhança a deus”. Essa perda de liberdade é denotada na obra pelo aprisionamento de Sun Wu Kong por quinhentos longos anos sob uma montanha, que nem sua força titânica poderia erguer.

A outra coisa descrita pelo romance de Wu Cheng'em, é justamente a cura do complexo de poder. Como se liberta o nosso Macaco? Ao realizar o serviço religioso, ao se vincular vivamente ao símbolo budista, dessa forma ele consegue realizar o trabalho de diferenciar a personalidade empírica daquilo que são as potências inconscientes e autônomas. O Macaco em sua jornada descreve essa possibilidade, esse funcionamento típico. Ao servir ao símbolo organizado pelo arquétipo, ao invés de se confundir com ele, ou de julgar que pode competir com ele ou controlá-lo, encontra finalmente a libertação. Paradoxalmente, ele encontra a liberdade justamente no servir. Aqui, se expressa com clareza à possibilidade aludida por Jung do arquétipo se manifestar como destino, e, assim como acreditavam os gregos, paradoxalmente, liberdade é igual a destino.

Em Goku, significativamente, vemos um empobrecimento simbólico, típico de nosso Zeitgeist. A jornada de Goku não possui qualquer significado religioso, as esferas do dragão (Dragon Balls) quando reunidas invocam um imenso dragão celestial chamado Sheng Long (神龍) o deus dragão, que pode realizar um desejo. No fundo a errância de Goku não se trata de uma peregrinação, não possui um sentido anagógico. Diferente de Sun Wu Kong, Goku não abraça o paradoxo taoista de buscar não a força e a rigidez, mas a fraqueza e a flexibilidade, durante toda a história ele (Goku) procura incessantemente tornar-se cada vez mais poderoso. Na Jornada de Sun Wu Kong, pressentimos o sentido vivo das palavras de Lao Tzu “quem vence os outros é forte/quem vence a si mesmo é poderoso”, além disso, o significado vivo da vacuidade budista, presente no nome dos protagonistas, vai se desvelando nas imagens engraçadas das pelejas com monstros, e a sabedoria do prajnaparamita sutra “forma é vazio/vazio é forma/forma é forma/vazio é vazio”, são o fio condutor de toda a jornada, ao final, o Rei Macaco torna-se realmente “consciente do vazio”. Goku, por outro lado, afasta-se sempre dessa possibilidade, e ao se transformar em macaco, sucumbe completamente à fúria.

Toda a obra de Toriyama é uma ode ao trabalho duro, quase masoquista, bem ao gosto japonês. Recordo-me vivamente de minha leitura do clássico de Ruth Benedict O Crisântemo e a Espada, quando a autora descrevia a propaganda do governo relacionada ao exército, em que eram mostradas marchas incessantes e extenuantes, sofrimentos imensos e a grande capacidade de resistência estoica dos soldados a todo o tipo de provação, tal propaganda teria o efeito de afastar as pessoas das forças armadas no ocidente, mas não no Japão. Goku possui essa ética estoica, de suportar grandes privações, de ser capaz de trabalhar duro para ser cada vez mais e mais forte. Funakoshi Gichin, (船越 義珍) pai do karate (空手) moderno, em seu livro Karate Do Meu Modo de Vida, descreve seus mestres, Matsudaira e Itosu, quase como deuses que caminhavam pela terra, com uma gratidão que chega a ser tocante. Uma de suas histórias de treino ilustra bem essa ética de que Goku é representante. Ele descreve ter que ir treinar durante a madrugada, pois o karate fora proibido, e, mesmo após o extenuante trabalho do dia, treinava de maneira intensa, quase fanática. Seus mestres, quando notavam qualquer falta de entusiasmo em seu pupilo, como punição – ele descreve – o faziam lamber o tatame. Esse espírito japonês do pós-guerra é muito presente em Dragon Ball, e se afasta consideravelmente do espírito da obra original, sendo a perda mais significativa, a ausência quase completa de qualquer sentido religioso (o taoismo e o budismo estão completamente ausentes), bem como o sentimento religioso.

Para Jung a religião exprime uma relação subjetiva com fatores metafísicos, isto é, extramundanos.  O sentido e a finalidade da religião consistem na relação do individuo com Deus (judaísmo, islamismo e cristianismo), ou no caminho da redenção (budismo), sendo estas as bases fundamentais de suas éticas. O sentimento religioso, ou dito de uma maneira melhor, a atitude religiosa, que consiste em uma acurada e conscienciosa consideração daquilo que Rudolf Otto chamou de numinoso, com o significado de uma existência ou efeito dinâmico não causados por um ato arbitrário. Nesse sentido, a religião é um vínculo vivo com os processos anímicos que não dependem do consciente, mas o ultrapassam. Há, por certo, como um vestígio dos elementos da mitologia chinesa, especialmente em DBZ no que concerne ao mundo dos mortos, a burocracia celestial, e aos deuses e reis do mundo dos mortos, mas é pouco e explorado sem qualquer efeito dramático ou consideração metafísica ou religiosa.

Em Dragon Ball a busca que é o mote da aventura, pelas esferas, é completamente dessacralizada. Bulma, que inventou um radar para localizar as esferas, quer apenas realizar seus desejos, motivada por um individualismo típico de nossa sociedade. Bulma é uma paródia do monge Tripitaka, o personagem a quem Sun Wu Kong se submete como discípulo e guarda-costas para permitir a consecução da perigosa jornada para o oeste. O desejo que ela pretende realizar ao reunir as esferas e convocar o dragão é o de conseguir um namorado. A personalidade de Goku é bastante diversa da do Macaco de pedra, mas ambos guardam em comum possuírem alguns aspectos similares à figura do Trickster, mas no caso de Sun Wu Kong, há uma evolução simbólica em que ele paulatinamente assume o papel de herói que o seu nascimento miraculoso já prenunciava. Além de tudo, Bulma é sempre o pivô de piadas misóginas, algo comum no Japão, tendo sempre sua sexualidade explorada de maneira vulgar. Ela é a principal protagonista feminina e, ao mesmo tempo em que é mostrada como uma cientista bastante versada em tecnologia, também é retratada como uma garota cabeça oca interessada apenas em namorados e cujo principal papel é o de seduzir alguns dos vilões ou ter situações cômicas envolvendo suas roupas intimas (mesmo o seu nome faz menção, em japonês, a essa parte do vestuário). É importante recordar que a sexualidade no Japão, de uma maneira geral, não está tão vinculada a moral judaico-cristã a que estamos acostumados, e, desse ponto de vista, o corpo feminino é algo bem menos chocante (várias cenas envolvendo Bulma foram censuradas no ocidente). Mesmo assim, a imagem feminina que transparece nessa personagem é divertida, porém negativa. Quando Ulong salva o mundo de ser dominado por Piaf, pois o vilão tinha reunido as esferas, ele o faz ao “conquistar” a calcinha da Bulma. Novamente, isso é bastante revelador, visto existir no Japão uma tara comum por calcinhas usadas (como a que o porquinho retrata sem grandes pudores), há até mesmo o comércio online dessas peças (usadas) e uma modalidade de filme erótico (bastante popular) que consiste em mostrar a calcinha das mulheres chamada de pantsu (パンツ). Outro termo utilizado é panchira (パンチラ), usualmente um vocábulo utilizado entre as garotas para avisar umas as outras que sua calcinha está visível, e que se tornou sinônimo do termo inglês upskirt.

O nascimento de Sun Wu Kong é deveras interessante. Seu nascimento miraculoso, e virginal, é assim descrito logo no primeiro capítulo do livro.

HAVIA outrora um rochedo que, desde a criação do mundo, tinha sido muito bem burilado pelas puras essências do Céu e os finos sabores da Terra, o vigor dos raios solares e a meiguice do clarão da lua; por fim, ele engravidou magicamente e, num belo dia, abrindo-se deu a luz a um ovo de pedra, mais ou menos do tamanho de uma bola de criança. Fecundado pelo vento, ele desenvolveu-se tornando-se um macaco de pedra , perfeitamente constituído, com todos os membros e órgãos internos.

Este macaco soube de imediato trepar e correr, mas seu primeiro ato foi fazer uma reverência a cada uma das quatro direções.
O segundo parágrafo dá o tom do livro. O romance O Macaco Peregrino é uma obra satírica, quase burlesca, repleta de um humor refinado, e imbuída desse espírito que fala de um símbolo vivo. Drangon Ball também possui essa vertente cômica, e por certo há algo de simbólico na obra de Toriyama, mas sem o vigor e a beleza do original, muito se perde e, essa perda, diz muito sobre o nosso tempo. Sun Wu Kong é imbuído desse espírito de reverência logo ao nascer, mas, ao adquirir poder e mais poder ele o perde, para reencontrar essa sua essência após inúmeras peripécias ao lado de seu mestre (Tripitaka) e seus dois condiscípulos. Na descrição do nascimento do macaco de pedra, fica claro que se trata de um ιερός γάμος, uma coniunction entre o céu e a terra, entre as forças Yin e Yang, representadas com sutil encanto pelas “puras essências do céu e finos sabores da terra, o vigor dos raios solares e a meiguice do clarão da lua”. Além disso, trata-se de um nascimento virginal, o nascimento de um herói em sentido psicológico.

A ideia de uma concepção sobrenatural é compreendida como fato metafísico, mas psicologicamente ela diz que um conteúdo do inconsciente (“filho”) nasceu sem a participação natural de um pai humano (isto é, o consciente). Ao contrário, um Deus seria o gerador do filho, e além disso o filho seria idêntico ao pai, o que em linguagem psicológica quer dizer que um arquétipo central, a imagem divina, se renovara (“renascido”) e se “encarnara” de modo perceptível ao consciente. (Jung, 1999, p.312).
No caso de Sun Wu Kong, o “deus” que é seu pai não é outro senão o Tao () eterno. Creio que se faz necessário estabelecer a diferença, ou diferenças, em termos psicológicos, entre oriente e ocidente, para melhor compreender o nascimento do macaco de pedra com olhar de aço. Jung tratou desse tema principalmente (mas não apenas) em dois livros Sincronicidade e Psicologia e Religião Oriental, são justamente as ideias sobre esse tema que irei expor aqui de maneira sucinta. O conceito de Tao () é central para a filosofia da China, e impregna todo o seu pensamento. No ocidente a causalidade é que desempenha esse mesmo papel, adquirindo ainda mais relevância nos dois últimos séculos em virtude do sucesso sem precedentes das ciências naturais (o que foi a ruína da metafísica). Traduzir o termo Tao é algo complicado, e Jung considera a melhor tradução aquela feita por Richard Wilhelm que interpreta o Tao como “sentido”.

Em chinês moderno o hanzi (漢字) pode significar, além de Tao: direção, modelo, método, estrada, caminho, dizer, falar, conversar. A maioria das palavras que utilizam esse hanzi se relacionam ao taoismo: 场 (dào Chang/cerimônia religiosa), 道教 (dào jiào/Taoísmo), 道经 (dào jīng/textos taoístas), 道袍 (dào pão/robes taoístas), 道人 (dào rén/santo), 道士 (dào shì/sacerdote taoísta), 道院 (        dào Yuan/monastério taoísta). Possui igualmente outros sentidos não relacionados ao credo taoista que são interessantes para se perceber o complexo de significados que essa palavra representa para o espírito chinês: 道途 (dào tu/estrada), 道德 (dào dé/virtude), 道地 (dào dì/genuíno), 道儿 (dào er/método), 道理 (dào lǐ/razão, argumento, sentido, princípio, base, justificativa).

Lao Tze (老子) assim descreve o Tao “Existe algo de indistintamente completo/Anterior à origem do céu e da terra/Quão silencioso! Quão vazio!”. Lao Tze o chama de “o grande nada”, indicando com isto a sua oposição ao mundo da realidade (da percepção), a natureza do Tao é assim descrita pelo venerável mestre: “Trinta raios envolvem um meão/Mas é do nada que decorre o efeito do carro/Transformamos pratos e panelas em vasilhas/Mas é do nada que decorre o efeito da vasilha/Lavramos portas e janelas para uma sala/Mas é do nada que decorre o efeito da sala/Por isso: se alguma coisa produz a realidade/É do nada que provém o efeito”. O nada (vazio) é o sentido ou finalidade e é assim denominado, pois não aparece no mundo dos sentidos, mas o organiza. “É chamado a forma sem forma/A imagem sem conteúdo”, frequentemente o Tao é comparado também a neblina, que parece possuir qualidades similares de ser e não ser simultaneamente. Trata-se de algo que se situa na fronteira do mundo das aparências, nele os opostos se dissolvem, porém ainda existem como potencialidade. Na perspectiva chinesa clássica a realidade é cognoscível, pois existe uma racionalidade latente em todas as coisas, há um paralelismo entre o psíquico e o físico, porquanto os dois possuem o mesmo sentido e disso resulta a ordem. A perspectiva Taoísta representa bem o pensamento chinês típico, porque é um pensamento, sempre que possível, em termos de globalidade. Daí resulta uma diferença notável nas visões de mundo ocidental e oriental, afiança Jung “Para nós, os detalhes são importantes em si mesmos; para a mente oriental, os detalhes juntos é que formam sempre o quadro global”. O pensamento chinês tende a uma atitude intuitiva.

Para se compreender o drama de Sun Wu Kong, que como estamos percebendo, é bem diverso do jovem Goku, é mister ter em mente ainda outra diferença fundamental entre a mentalidade ocidental e a mentalidade oriental. Para o ocidente o espírito é a mentalidade de um indivíduo. No oriente o espírito é um princípio cósmico, a existência do ser em geral. A partir de Kant, chegamos à conclusão de que o espírito é a condição essencial para o conhecimento, ergo para a existência do mundo enquanto representação e ideia. No oriente está ausente o conflito entre religião e ciência, isso por dois motivos: a ciência não se baseia na paixão pelos fatos, e porque a religião não se baseia apenas na fé. Diferente da paixão pelos fatos, em seus mínios detalhes (cujo paragon simbólico é Sherlock Holmes) o oriente se baseia na realidade psíquica, isto é na psique, enquanto fundamento da existência. Trata-se de um ponto de vista introvertido, ao contrário do ponto de vista ocidental que é extrovertido. Ou seja, no oriente a introversão uma atitude habitual coletiva. No que concerne à atitude religiosa, no ocidente a graça provem de outra fonte, ela provém de fora. Para o espírito oriental, essa atitude não passa de um grau inferior de religiosidade, que deve ser compassivamente tolerado. No que concerne à atitude oriental, a psique é o mais importante, toda a vida jorra da psique, a realidade dos sentidos não passa do véu de Maya, meticulosamente tecido pela nossa alma, “fabricações mentais”, como gosta de dizer minha mestra de budismo tibetano. Obviamente, uma posição idiotiza a outra, pois o que é valor para uma é desvalor para a outra.

O nascimento de Goku, ou melhor, seu aparecimento, macaqueia o nascimento miraculoso do rei macaco, mas com uma diferença importante para desvelarmos seu valor simbólico. Goku também surge de um “ovo”, mas em seu caso, trata-se (descobrimos depois) de uma nave espacial em forma de esfera. Ao invés de termos o nascimento favorecido pelas forças cósmicas de Yin Yang, Goku veio do espaço. O espaço cósmico onde outrora viviam os deuses, em planetas com seus nomes (na história de Sun Wu Kong o espírito do planeta Vênus aparece com frequência), é de onde veio o jovem Goku, ele não é um deus, imortal taoista, ou algo que o valha, mas sim um alienígena com cauda de macaco. Seus poderes sobre-humanos não têm uma causa sobrenatural, mas são explicados pela sua origem extraterrestre. Jung escreveu um livro assaz interessante (e que serviu para acirrar o preconceito negativo e positivo contra ele) chamado Um Mito Moderno Sobre Coisas Vistas no Céu, em que trata do significado simbólico dos diversos casos de avistamentos de OVNIs, e tece uma comparação interessante: no ano mil da era cristã, existiu uma ampla e divulgada fantasia sobre o fim do mundo (como vimos em 2000 e, posteriormente em 2012) de motivação puramente metafísica. Nossa era racionalista não está disposta a utilizar-se da hipótese de um ato metafísico, nossa cosmovisão não espera nada desse gênero. Ainda assim, em virtude das tensões do contexto histórico (ameaça nuclear, guerra fria, superpopulação etc) surgiram os boatos visionários sobre discos voadores. Não podemos escapar da conjectura mitológica, ou seja, da projeção, entretanto nossa época necessita dar a impressão de um fundamento racional, mesmo aos seus devaneios. Tomem, por exemplo, certos contos modernos sobre vampiros como Blade, ao invés de criaturas mágicas são pessoas infectadas por um vírus. O mesmo se dá com os zumbis hodiernos vitimados por uma doença misteriosa (ou radiação, ou substâncias químicas, existiram até zumbis vindos do espaço!). Do nosso céu foram varridos e enxotados todos os deuses, mas não há força alguma que possa expulsá-los de nosso peito, onde, até hoje, secretamente têm sua morada. Em nossa época Goku não poderia ser um deus, ou um ente metafísico. Vem mais a calhar, para nossa tendência racionalista, que ele seja um ET. Ele inclusive carrega as mesmas projeções dos OVINIs estudados por Jung: era um terrível invasor que se converteu em salvador. Essa característica ambivalente lhe torna mais interessante, porém o que sobressai na imagem do jovem sayajin é seu aspecto de salvador universal.

Creio que, em certa medida, Goku representa uma variante moderna da criança divina. Essa é uma considerável diferença em relação ao macaco de pedra Sun Wu Kong, que, como indicam as primeiras linhas do livro, já nasce adulto e plenamente capaz. A mitologia, como nos ensina Kerényi ao falar das idades da vida, não pode ser confundida com a mera biografia de seus personagens (é mais e menos do que isso), ela abrange as idades da vida enquanto realidades atemporais. A criança divina – como toda figuração possível do ser – é uma forma de expressão do divino. A mitologia, ao representar seus deuses como jovens, homens régios, ou velhos rabugentos, não está expressando idades biográficas, mas a essência de Deus. Isso expressa seu valor simbólico, pois possuem plenitude de vida e plenitude de sentido ao mesmo tempo, independente de qualquer relação biográfica imaginável. O mitologema da criança divina, como uma categoria da fantasia, pode ser reconhecido pelos seus traços fundamentais que sempre se repetem. A criança divina é na maioria dos casos um órfão, uma criança abandonada e, desde cedo ameaçada por perigos extraordinários. Batman, Super-Homem e Homem Aranha são todos órfãos. No campo literário o mesmo se dá com Harry Potter, e, nos quadrinhos japoneses, Naruto. Goku, como bem sabemos, é um órfão, “abandonado” na terra e criado por seu avô adotivo Son Gohan.

Algumas vezes o pai é o inimigo (como Darth Vader em Star Wars ou Cronos e Zeus), em outros casos está simplesmente ausente (como em Naruto, ou no caso de Goku). A mãe desempenha um papel insólito, no caso de Goku ele não é jamais mencionada, em alguns casos ela não resiste ao nascimento da criança, em outros o enjeita, mas é comum a presença de amas nos mitos (no nosso caso Bulma, mutatis mutandis, desempenha esse papel) e elas geralmente possuem dois significados: a solidão da criança divina e o quanto ela se sente a vontade no mundo primitivo ou selvagem. Bulma é a primeira mulher que Goku conhece e o segundo ser humano com quem tem contato, pois, desde a morte de seu avô, vivia em completo isolamento no “mundo primitivo”, mesmo assim ele é dotado de grandes poderes e compaixão, o que denota a situação ambivalente da criança divina, já que trata-se de um órfão e, simultaneamente, um “filho favorito dos deuses”. Goku encarna bem o segundo tipo de abandono da criança divina descrito por Kerényi: a solidão da criança no mundo primitivo e selvagem. Os paralelos poderiam se elencados ad infinitum, na mitologia indiana, no Rig Veda, ela é denominada de Prajapati e compreendida simbolicamente como “a criança original na solidão original do elemento original; a criança original é o desenvolvimento do ovo original da mesma forma que o mundo inteiro é o seu desenvolvimento.” Kerényi.

É preciso ter em mente, como afiança Jung, que a psicologia complexa trata produtos da atividade da fantasia inconsciente como asserções da psique inconsciente acerca de si própria, e o drama de Goku, que alcançou uma popularidade que ultrapassa em muito o escopo do Japão, seu país de origem, certamente faz vibrar uma corda comum. Aqueles que o assistem veem, consciente ou inconsciente um drama de sua própria alma formulado de maneira humorística pelo desenho. Vemos ressurgir em Goku uma estrutura imorredoura de nossa alma com uma roupagem moderna. Um conteúdo arquetípico (inconsciente) se expressa em primeiro lugar metaforicamente, não se pode, como ensinou Campbell, entende-lo de maneira denotativa, ao falar do dragão, da pérola, do tesouro dificilmente alcançado, não se trata nem de um nem de outro, mas de um terceiro desconhecido, para o qual essas imagens o expressam mais ou menos adequadamente, todavia esse terceiro permanece sempre desconhecido e não passível de uma formulação intelectual. Precisamos ter em mente que, de acordo com a nossa hipótese dos arquétipos, Goku representa um elemento da estrutura psíquica vitalmente necessário a economia anímica. O motivo da criança representa o aspecto pré-consciente da infância da alma coletiva. Em interessante nota de rodapé (Jung tem notas de rodapé das mais fascinantes) ele complementa essa assertiva,

Na realidade psicológica, porém, a representação empírica da “criança” é apenas um meio de expressão (e nem mesmo o único!) para falar de um fato anímico impossível de apreender de outra forma. Por esse motivo, a representação mitológica da criança não é de forma alguma uma cópia da “criança” empírica, mas um símbolo fácil de ser reconhecido como tal: trata-se de uma criança divina, prodigiosa, não precisamente humana, gerada, nascida e criada em circunstâncias totalmente extraordinárias. Seus feitos são tão maravilhosos ou monstruosos como sua natureza ou constituição corporal. É unicamente graças a essas propriedades não empíricas que temos necessidade de falar de um “motivo da criança”. (Jung, 2011, p.123).
Em termos pessoais, a problemática da criança divina surge principalmente durante o processo que Jung denominou de individuação, em virtude, talvez, de uma separação violenta na pessoa de seu caráter originário a favor de uma persona arbitrária. Da mesma maneira que acontece ao indivíduo, assim também a humanidade, entra sempre em contradição com seu estado originário inconsciente, instintivo. O mito e o ritual têm a finalidade de trazer a consciência a imagem da infância e tudo a que a ela está ligado com o objetivo de manter a conexão com esse estado originário. Devemos nos recordar de que a consciência diferenciada (unilateral) é constantemente ameaçada de desenraizamento, daí a necessidade da compensação por meio do estado infantil ainda presente. Assim como a característica da consciência de concentração, seleção e exclusão, permite grande progressos por meio da dinâmica da vontade é igualmente a fonte do perigo de transgressões contra os instintos. Paradoxalmente, é a dinâmica da vontade que nos permite a ação livre e desembaraçada, entretanto ao mesmo tempo é a fonte de nossa perda de liberdade em virtude da possessão. Quando o estado infantil da alma coletiva é totalmente reprimido, o conteúdo inconsciente se apodera da meta consciente e pode destruir a sua realização. Qualquer progresso só pode acontecer por meio da cooperação de ambos.

A criança divina é o futuro em potencial, na psicologia do indivíduo significa geralmente uma antecipação de desenvolvimentos futuros, por esse motivo, afirma Jung, tantas vezes os salvadores míticos são crianças divinas, o que corresponde à psicologia individual, em que a criança prepara uma futura transformação da personalidade. Goku é um “salvador”, esse aspecto é ainda mais presente em DBZ, mais interessante ainda é a intuição desse fato por meio de imagens e piadas na internet sobre a “igreja” de Goku e o seu papel como salvador universal. Na psicologia individual a criança divina é um símbolo de unificação de opostos, um portador da salvação. Nesse sentido os destino de Goku podem ser compreendidos como representações daqueles acontecimentos psíquicos que ocorrem na gênese do Si-mesmo (Selbst). A criança como herói, que é o caso de Goku, tem uma nascimento miraculoso, normalmente totalmente sobrenatural, como se trata de uma gênese psíquica tudo tem que acontecer de um modo não empírico, porém, no caso de Goku, essa gênese sobrenatural é substituída por uma origem “extraterrestre”, mas ao gosto de nossa metafísica da matéria. Seu abandono, sua solidão, insignificância inicial e perigos a que está exposto, normalmente possuem um caráter mundano, porém elevado ao limite do divino. Goku é um “macaco” que se transforma na lua cheia e perde a consciência completamente (como Naruto ao ser possuído pela raposa) e essa ligação com um animal simbólico representa o inconsciente coletivo ainda não integrado em um ser humano, ao passo que o seu aspecto de herói semi-divino, que inclui a natureza humana, representa uma possibilidade de síntese do inconsciente a consciência humana (divino pode ser compreendido como ainda não humanizado). Significa uma antecipação potencial da totalidade. Quando Bulma encontra o jovem e inexperiente Goku, ele está abandonado à própria sorte na natureza, e depois, se expõe aos maiores perigos, assustadores mesmo diante de sua força hercúlea, o que procura representar a precariedade da existência psíquica da totalidade e a imensa dificuldade de se atingir esse bem supremo. Todos os perigos e obstáculos no caminho do jovem herói possuem um sentido propedêutico, pois no processo de autorrealização, as influências do ambiente colocam os maiores obstáculos, quase impedindo o caminho da individuação.

O principal feito do herói é derrotar o monstro da escuridão: a vitória da consciência sobre o inconsciente. É a partir da tomada de consciência que se faz o mundo cuja existência era antes insuspeita, “Fiat lux”. A meta da criança é a vitória sobre a escuridão. Estamos tão carentes de símbolos que traduzam a nossa alma que, sem o perceber, adotamos como nosso novo folclore a cultura pop (cinema, desenhos, quadrinhos) e encontramos em personagens como Goku o espelho possível para aquilo que medra em nossos corações, mas isso basta? Não creio, a não ser por alguns poucos mais sensíveis, a imagem despreocupada do desenho japonês não possibilita o confronto moral necessário para o nascimento da criança em nosso próprio peito, não temos qualquer compromisso com Goku, não como os cristãos têm com o Cristo (quando há religião genuína e não simplesmente a confissão), a vida de Goku não engendra uma ética e, no máximo, nos proporciona um momento de catarse passageira e algumas boas risadas. Talvez o aspecto do humor em Dragon Ball seja seu legado mais importante, pois como nos ensinou Jung, o humor é uma das poucas coisas que têm o poder de nos salvar de nós mesmos.

terça-feira, 6 de maio de 2014

Machado de Assis, fica fácil, fica difícil...

Eu li os contos de Machado de Assis aos 14 anos, e sua escrita sempre me maravilhou, mas eu já tinha lido, aos nove anos, toda a obra de Monteiro Lobato, o Antigo Testamento e, como já lia – vorazmente – desde os 4 anos, já acumulava aí dez anos de muitas leituras, algumas boas outras nem tanto, mas eu lia de tudo. Machado de Assis possui um lugar especial em meu coração de leitor compulsivo. Com os anos, depois dele, vieram Joyce, Thomas Mann, Goethe, Poe e muitos outros, mas sempre li muito e, desde muito pequeno, tinha um excelente vocabulário e a capacidade de compreender o significado das palavras que desconhecia pelo contexto, o que, na quinta série, rendeu o surgimento da “lenda urbana” de que eu lia o dicionário para decorar palavras, pois raramente – ou nunca – desconhecia o significado de uma palavra, por mais abstrusa que fosse. Na realidade, aos 4 anos, a primeira coisa que li sozinho foi uma revista dupla do Tarzam, se fechar os olhos ainda consigo folheá-la em meu espírito. Hoje em dia, já perto da meia idade, seria difícil contabilizar quantos livros já li, mesmo contabilizar quantos já li e reli só esse ano.
Infelizmente, sou uma exceção. A média de leitura dos brasileiros é de 1,7 livros por ano, isso por vontade própria, sem contar os livros que ele é obrigado a ler pela escola (ou, ao menos, ver o filme), na França essa cifra é de 20 livros por ano. Diante desse contexto de profundo desinteresse pela leitura, me causa um certo espanto o clamor indignado diante da tentativa de simplificação da obra do nosso maior escritor. Por que, de repente, essa indignação toda? Todo esse ódio no coração? Se somos, na média, um povo que não lê e que não dá bolas para livros?
Creio que, em parte, essa revolta toda se explica pelos nossos ressentimentos fanáticos, essa iniciativa os alimenta, mostra como somos “vira-latas”, como tudo o que se passa sob esse céu é ruim e mal orientado, e como desvirtuamos mesmo as coisas mais belas (tenhamos as lido ou não). Outro ponto míope desse debate, é que uma versão da obra não destrói ou macula para sempre a obra original, ela continua lá, do mesmo jeitinho, simplesmente passa a existir uma versão simplificada. No mundo anglo-saxão, existem versões simplificadas de clássicos muito extensos, tenho duas, The Golden Bough, de James Frazer, e The Decline of the West (Der Untergang des Abendlandes) de Oswald Spengler. Tratam-se de versões condensadas. Também tenho uma versão menor e sem gravuras do famoso “Livro Vermelho” ou Liber Novus, de Jung. Todos me são muito úteis, e sempre que eu desejar, posso adquirir e ler as versões completas.
É interessante, para debater um tema que suscita tantos afetos, conhecer um pouco de história. Quando Machado era vivo, os folhetins que escrevia e que lia desde pequeno para sua mãe e as amigas dela, eram tidos na conta de coisa sem seriedade. Não eram ocupação para homens sisudos, ou pessoas realmente cultas, mais ou menos como vemos os folhetins televisivos hodiernamente. Felizmente, isso não impediu Machado de os escrever, e de fazer isso em uma linguagem quase coloquial para sua época, de se dirigir ao leitor (algo que sempre imito) entre outros recursos de estilo inovadores. Fico pensando, cá com meus botões, o que o velho Machado teria pensado dessa iniciativa, mas essa especulação deixo aos especialistas em sua obra.
Agora vem o meu pitaco, todavia. Em uma nação em que as pessoas não leem, ou, se o fazem, fazem de maneira insuficiente, eu, homem erudito, que fala vários idiomas e lê muito, não posso, senão, aplaudir a iniciativa. O problema, ao contrário do que bradam por aí, não é simplesmente a escola pública, fui professor por dez anos e, alunos da rede pública e privada, sem muita diferença, leem mal e escrevem pior ainda. Na universidade a coisa é periclitante, o número de analfabetos funcionais é imenso, talvez a vasta maioria. Eu, como leitor contumaz que sou, acho que nossos jovens devem ler de tudo, desde quadrinhos até bula de remédio. Me recordo, da reação dos meus colegas, num dos mais caros e prestigiados colégios de Fortaleza, diante da obra de Saramago, Memorial do Convento, obra que me deu bastante trabalho, assim como, há anos venho tentando escapar do Dédalo que é Ulysses de Joyce (e eu leio no original), mas eu não chegaria a essas obras sem a coleção Vagalume, ou outras centenas de livros bobinhos que li pelo simples prazer de ler. Se alguém quer fazer algo para tornar a leitura acessível eu aplaudo essa iniciativa.
Ao ver essas reações raivosas, puristas, eu sinto um pouco da nossa vocação escravocrata, elitista no pior sentido. As mesmas pessoas que vejo apontar o dedo, não as vejo fazer mais nada pela nossa educação, nadinha. Mas se ressentem de ter seus poucos brios literários mexidos. Quando eu era meninote, e estava no começo de minha graduação de veterinária, meu pai lecionava para um curso de professoras do estado. Eram velhas senhoras, bastante cansadas, que ensinavam sem ter graduação, e o estado lhes proporcionou um curso para terem um diploma. Meu pai sempre foi um homem ocupado e, algumas vezes, me mandava lecionar história em seu lugar, e eu ia. Essas velhas professoras ouviam com muita dificuldade o meninote de linguajar rebuscado falar, e pouco compreendiam, por mais que eu me esforçasse. E elas não tinham pudores de me dizer justamente isso, que eu falava coisas interessantes e bonitas, mas que eles mal compreendiam. Por essa época, vi meu pai ter uma conversa com um amigo professor que também lecionava para essas senhoras, que as deplorava, como hoje as pessoas deploram o “machado simplificado”, e ele dizia “é fácil simplesmente criticar, o difícil e ajudá-las a chegar ao seu nível”. Essa foi uma das poucas lições importantes que aprendi com o meu pai.
O problema da leitura no Brasil não vai se resolver da noite para o dia, mesmo alunos de boas e caras escolas não leem. J. K, Howling escreveu uma série de livros que muita gente criticou, mas que transformou uma geração inteira em leitores. Ler é um ato libertador, a palavra escrita é uma das mais poderosas formas de magia que nossa espécie concebeu, sejamos, ao menos parcimoniosos, leiamos Machado no original, mas deixemos que outros, não tão sabidos, possam lê-lo e, quem sabe, possam vir a lê-lo no original, assim como eu li muitos de meus autores favoritos traduzidos para o português antes de poder lê-los em suas línguas originais. Eu normalmente detesto traduções, mas sei da importância delas para as pessoas que não podem, por um motivo ou outro, ler Jung em alemão ou ler Dumas em francês.