terça-feira, 20 de maio de 2014

O espelho de um Brasil despedaçado

Nós somos uma nação dividida, fraturada em muitos pedaços, em um quebra-cabeça muito difícil de solucionar. Nós olhamos para fora com admiração e espanto, atentos a tudo o que há de melhor no mundo que nos cerca, principalmente se isso mostrar, em contraste, tudo aquilo que temos de pior. Quando olhamos para nós mesmos, como que no reverso do conto de fadas, perguntamos ao espelho “quem é mais feio do que eu?”. Tudo é motivo de ressentimento, estamos sempre prontos a destilar ódio. No sul odeiam os nordestinos, em toda a parte se odeiam os negros, os gays, a mulheres e o governo. Incapazes que somos de nos reconhecer nesse espelho mágico às avessas, vemos, sem o saber, fragmentos de nós mesmos espalhados ao nosso redor, e os odiamos. A classe média se ressente de que o governo ajude aos mais pobres, sem se dar conta de que vivemos em uma mesma nação, sob as mesmas leis e o mesmo governo e, se o meu irmão passa fome, isso é problema meu. Se os direitos civis de alguém no norte do país são violados, os meus direitos estão em risco. Se uma jovem mãe não pode pagar os remédios de seu bebê, a minha vida se torna mais triste. Em nosso espelho despedaçado, esse idêntico à fábula de Andersen, o espelho do diabo, um pequeno fragmento de vidro amaldiçoado entrou em cada um de nossos olhos e nos faz ver sempre o pior, e, assim como no conto, um espectro gelado se apossou de nossos corações e nos impede de sentir compaixão por nossos irmãos.

Os cearenses não são meus compatriotas, que morram, menos bocas para alimentar. O homossexual que é assassinado teve o que mereceu, afinal ele escolheu ser diferente, não é? A garra gelada desse espectro que comprime nosso peito nos impede de ver naqueles que são diferentes de mim aquilo que me complementa e que, se não respeito ssa diferença, coloco em risco mortal meus próprio direito a individualidade. Mas em nossa estranha maldição, acreditamos em uma alteridade absoluta, que despe de humanidade o outro, posso ter compaixão por cãezinhos de rua, mas meninos de rua devem ser amarrados a postes. O segredo do feitiço desse fragmento de espelho é que nem suspeitamos que ele está lá, nos fazendo enxergar em preto e branco: eles e nós, sem mediações. O pior, algumas vezes, tão cegos estamos, que vítima e algoz se confundem: o nordestino assume o discusso xenófobo do sulista, o gay o discurso racista, o negro o discurso machista, o pobre repete a fala do rico a quem importa apenas o lucro.

Nossa automimagem em pedaços no impede de ver o quadro mais amplo, daquilo que nos une ao invés do que nos separa. Nosso ódio e ressentimento não fomenta a individualidade, mas o individualismo. Como o jogador político, crítico ferrenho da copa que aceita sem pudores dinheiro para lucrar com a copa. Não há contradição, afinal, é preciso levar vantagem. Qual a vantagem de alimentar um nordestino faminto? Ou levar água e luz a quem nunca as teve? Todo brasileiro adora apontar o dedo para o corrupto e os reconhece com presteza, pois nossos corações gelados são antros de ladrões. Tão atroz é nosso individualismo enregelado que acreditamos que se não votarmos estamos isentos de qualquer culpa, como Pilatos, lavamos as mãos e seguimos nossas vidas, odiando a nossa terra, sonhando com paraísos distantes, em terras mais evoluídas. E os que ficam? Eles que se virem! Quem se importa? Por acaso sou eu o guardião de meu irmão? Nossas respostas são respostas simples, impávidas diante daquele a quem nada pode ser escondido. Que se atire a primeira pedra? Ora, eu atiro à primeira, a segunda, a terceira e a décima, pois mato aos meus próprios pecados na adúltera que eu apedrejo, ou na bruxa que eu espanco até a morte, pouco importando que não seja bruxa, é mulher e isso já basta.

Brado em alto e bom som que vivemos em uma ditadura, sem temer qualquer retaliação e sem que isso não passe de basófia vazia, mas brado com coragem mesmo assim! E aponto o dedo em riste na cara dos ditadores eleitos democraticamente, depois volto pra casa, sem nenhum medo por mim ou pelos meus e me sinto grande e potente, sem a minha coragem o que seria dessa república de bananas? O que fazer com os bandidos? Que sejam todos mortos, desde que não sejam brancos, ricos e com nomes nórdicos. Quanto aos mendigos? As esmolas que eu dou no sinal deveriam bastar, por que o governo deve mimá-los ainda mais com esmola governamental? O que eu ganho com isso?

E seguimos despedaçados, até mesmo a quimera que nos unia caiu aos pedaços ao sabor dos interesses da mídia em fazer e desfazer governantes. Nos ressentimos até mesmo do futebol. Se antes ele já era para alguns o verdadeiro ópio do povo agora é o diabo em pessoa! Tudo que nasce nessa terra que em se plantando tudo dá é motivo de ódio e vergonha, até a invenção inglesa que se tornou algo tão nosso, nem mesmo esse refirgério nos resta. Não somos mais o país do futebol, mas o país da copa dos grandes desperdícios e elefantes brancos. E bradamos indignados, sem nem mesmo suspeitar da maneira como essa república que odiamos funciona. Detestamos o congresso, mas para que serve mesmo um congresso? Ah sim! CPIs é para isso que serve!

Mas a nossa situação é mesmo tão ruim assim? Talvez o meu fragmento do espelho do diabo seja um pouco menor, ou quem sabe, por viver em uma terra muito quente a dama do gelo tenha menos poder sobre o meu coração, ou quiçá eu seja apenas tolo. Mas ainda vejo aquilo o que nos une. Mesmo sendo um país que odeia em nome de fronteiras geográficas imaginárias, tivemos um presidente nordestino, não me refiro ao rico e bonitão de Alagoas, mas um pobretão bem feinho e, segundo muitos dizem, um analfabeto, e mais, um proletariado e sindicalista. Depois dele, nessa terra de mulheres espancadas, mulheres objeto seminuas na TV e no carnaval, de mulheres sem voz e nem vez, tivemos uma mulher na presidência. Alguns me dirão “mas não vês!? Eis aí o problema, a raiz de todo o mal!”. Quando um negro se elegeu presidente dos Estados Unidos da América, nos achamos lindo, mas aqui, aqui isso só mostra a extensão do problema, do meu problema bem entendido. Se a nação tem algum problema, é problema dela.

Há gestos de ódio sim, muitos, mais do que eu gostaria, mas há também pequenos milagres todos os dias. Existe ignorância em abundância, mas sei que há almas que brilham mais forte do que a escuridão que as cercam. Há egoísmo, mas existe, igualmente em nossa terra, aqueles que têm a coragem de lutar pelos outros, até mesmo por aqueles que ainda nem nasceram sob esses céus. Minha nação não é o país do futuro, mas o país que eu construo todos os dias, em que sou sim o guardião do meu irmão, em que sei que a minha felicidade depende da felicidade do meu próximo. Há, entre nós, o que pregam o ódio, mas temos também amor em abundância, disso tenho certeza, ou as coisas já seriam bem piores. Não há mudança sem dores, ou fáceis, e muitos são os desafios que esta terra nos impõe. Sempre que eu escuto alguém dizer que pretende, o mais rápido possível, fugir para uma terra distante, eu penso que é aqui que eu devo ficar, aqui na terra que os meus ancestrais escolheram para chamar de lar é que estão os desafios que a minha geração devem encarar, e não pretendo fugir, mesmo com o ódio, a intolerância, o ressentimento. Eu acredito que vivemos um momento ímpar e o que vai emergir dessa fogueira será determinado pela nossa coragem e nossas ações.

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