O
que pretendo com esse texto é realizar uma leitura psicológica do zumbi. Vemos
hoje uma imensa atenção dada a essa figura, em filmes, quadrinhos, vídeo games
livros e séries de tevê. Desde o aclamado “The Walking Dead”, até o filme que
apresenta como protagonista um zumbi adolescente apaixonado por uma humana e
que procura pegar carona no sucesso de “Twilight”. Os exemplos do aparecimento
dos zumbis na cultura pop poderiam se estender muito mais, desde a série de
quadrinhos que transformava todos os heróis da Marvel Comics em zumbis (Marvel
Zombies), até o Anime nipônico “Hig School of the Dead” (existe até mesmo um
cardgame baseado em “Resident Evil”). Em vista desse enorme interesse sobre
essas criaturas desmortas me vi impelido a pensar sobre o que significa um tal
interesse por parte de tantas pessoas. É importante salientar de início que
esse esforço deve ser entendido apenas como um esboço inicial, um torso
inacabado por assim dizer.
Um
dos pontos interessantes da atual “mitologia” dos Zumbis diz respeito ao
“apocalipse zumbi”, que seja um acontecimento, por vezes inexplicável, em que a
maior parte da população da terra é repentinamente transformada em zumbis
comedores de carne humana. Na maioria dos exemplos atuais – como “The Walking
Dead” – não há qualquer explicação para esse fenômeno, importam seus efeitos,
já em “Resident Evil” a origem dos zumbis é o que movimenta toda a trama. Toda
a sociedade como a conhecemos é destruída por essa praga de mortos vivos e os
sobreviventes se veem obrigados a lutar incansavelmente para se manterem vivos
e tudo o que antes era dado como garantido se desfaz como fumaça. Nesse cenário
macabro, mesmo outros humanos (vivos) premidos pela fome, medo e instinto de
sobrevivência, se tornam antagonistas fatais e toda a possibilidade de laço
social fica impedida ou, ao menos, seriamente ameaçada. Nesse quesito,
apocalipse zumbi, temos como o exemplo mais bem acabado a revista em
quadrinhos, posteriormente adaptada para a tevê “The Walking Dead”, bem como a
série de filmes baseados nos jogos de videogame “Resident Evil”.
É
extremamente importante salientar, que em todos os casos atuais de aparecimento
de zumbis eles não são criaturas mágicas, mas o resultado de uma doença, um
vírus (como no caso de Resident Evil), ou algo do gênero. Há sempre uma causa
física, material, biológica para o surgimento dos monstros. O despretensioso
anime “Kore ha Zombie Desuka” é uma exceção, seu protagonista zumbi é uma
criatura criada por magia, bem como um filme da década de oitenta em que os
zumbis apareciam em virtude da profanação de um cemitério indígena, ou ainda,
os “zumbis originais” da cultura pop, que eram criaturas desmortas criadas pela
magia do Vodu haitiano. Nos casos atuais, todavia, como já salientei, há sempre
uma causalidade material, orgânica e pseudocientífica para o aparecimento da
praga de zumbis, mesmo que isso seja algo que aparece sous entendu na trama.
Antes
de analisar esse aspecto, do apocalipse associado aos zumbis, ou causado por
eles, é preciso que a criatura seja caracterizada. Em suas encarnações mais
recentes os zumbis são cadáveres animados, terrivelmente desfigurados, capazes
de se mover (algumas vezes de maneira desajeitada, outras vezes com agilidade
sobre-humana) que perdem toda e qualquer memória ou vestígio da personalidade
que tiveram em vida, que são impelidos unicamente pela fome. Os zumbis da
década de oitenta, que apareceram nos filmes e na tevê, tinham um predileção
especial por comer cérebros humanos, já os atuais são bem menos exigentes e
comem carne humana de uma maneira irrestrita. Os zumbis parecem não se
interessar por presas mortas (convenientemente eles não se devoram uns aos
outros), mas comem de maneira voraz e horrenda apenas presas vivas, com o
coração ainda pulsando. Algumas vezes, na realidade na maioria dos exemplos, o
zumbi é contagioso, se alguém for mordido, mesmo que escape a sanha assassina
do monstro, ficará infectado e morrerá em pouco tempo, para logo se juntar a
legião dos mortos. Esse aspecto está presente praticamente em todos os exemplos
hodiernos do zumbi na cultura pop, creio que uma das poucas exceções seja o
zumbi protagonista do anime de ação, romance e comédia “Kore ha Zombie Desuka”,
que mantém suas memórias e não é contagioso (é simplesmente um morto que anda e
fala).
Marie-louise
Von Franz ao analisar as fantasias apocalípticas em sonhos e imaginações ativas
de seus pacientes, ou seus paralelos em mitos e principalmente conto de fadas,
chega a duas interpretações psicológicas que me parecem pertinentes para esse
estudo. Certamente essas interpretações não são as únicas possíveis, mas em
termos heurísticos são as que mais nos fornecem uma possibilidade de estabelecer
conexões de sentindo entre os fenômenos que estou analisando. A primeira dessas
duas interpretações que sublinho aqui está em seu livro O Gato, um conto de
redenção feminina. O contexto psicológico é um pouco diverso, por isso
precisamos nos aproximar dessa interpretação com cuidado, mas, cum grano
salis, ela nos é útil para começarmos
a pensar. A interpretação de Von Franz é a de que todo o inconsciente coletivo
está agitado, há uma desarmonia entre o comportamento consciente do coletivo e
o que o inconsciente está pensando em destruição. Significando, igualmente, que
o incosciente coletivo foi tão maltratado por nossa incompreensão que se rebela
contra nós, se irrita com a falta de atenção que recebe. Ou dito de outra
maneira, não temos acompanhado as tendências significativas do inconsciente, se
você peca contra o inconsciente, ele se apossa de você. Estamos falando aqui da
força numinosa das dominantes do inconsciente coletivo, aquilo que Jung
denominou de arquétipos. Devemos compreender esses conteúdos arquetípicos como
potências coletivas psiquicamente reais e objetivas – lembrando que para Jung
tudo o que age que atua é real – com as quais não podemos nos identificar, mas
as quais devemos tentar tornar favoráveis, nos relacionando com elas. A identificação
da consciência com essas forças significa apenas presunção e inflação.
A
relação da consciência com o inconsciente se dá de maneira compensatória e
complementar – essa é uma das hipóteses basilares de Jung – nesse caso, por
meio das fantasias apocalípticas que se manifestam criativamente na cultura pop
sob a forma do fim do mundo invadido por zumbis vorazes, devoradores de carne
humana, temos a oportunidade de perceber, em termos coletivos, a quantas anda a
relação com esse pano de fundo inconsciente inexpresso, com o fato psicológico
real. Ex exposistis, o
inconsciente responde de maneiras compensatórias as disposições e atitudes da
consciência. Ergo, a maneira como
essas figuras se apresentam dependem da atitude consciente. Uma atitude
negativa para com o inconsciente gestara imagens assustadoras, uma atitude
positiva engendrará o contrário, seres prestativos. No presente caso, a
fantasia criativa se expressa de maneira horrenda e pavorosa, com cadáveres
putrefatos animados por uma avidez lunática, desprovidos de qualquer
consciência humana, irracionais e selvagens como animais predadores e sedentos
por sangue e famintos por carne humana. A figura do zumbi, e seu apelo tão
forte em nossos dias, fazendo vibrar em tantos de nós uma corda comum em nossa
alma é, ao meu ver, sintoma de nossa relação com o inconsciente coletivo.
Como
salientei anteriormente, é significativo que nossos zumbis atuais sejam tão
marcadamente materialistas e desespiritualizados, são pessoas infectadas por um
vírus, ou em filmes mais antigos, uma substância química capaz de trazer os
mortos de volta a vida nesse estado lastimável, ou mesmo, em filme recente
chamado Chernobyl, cadáveres animados pela radiação proveniente do acidente
nuclear. Todo e qualquer aspecto espiritual está ausente dessas histórias (uma
exceção são os Wights de Game of
Thrones), e os personagens ainda
vivos precisam lidar com a dor e o sofrimento de terem perdido tudo e ainda se
verem acossados por tais monstros sem qualquer auxílio de ordem espiritual.
Nesse sentindo, “The Walking Dead” é emblemático, pois lentamente a sanidade
dos personagens vai sendo corroída, assim como sua humanidade e noções de
moral. Nessa série televisiva, e nos quadrinhos que lhe deram origem (o mesmo
se dá no anime “The Highschool of the Dead), vai se tornando cada vez mais
patente que a situação em que se encontram é completamente amoral, e o
desespero que isso acarreta passa a se traduzir num crescente individualismo,
numa busca solitária e quase irracional de simplesmente viver mais um dia a
qualquer custo.
Jung,
ao analisar nosso Zeitgeist (espírito da época) conclui que nosso tempo foi
varrido por uma onda irracional da preferência sentimental e universal pelo
mundo físico. A metafísica do espírito foi suplantada pela metafísica da
matéria. A despeito do fato, de que tanto uma explicação quanto à outra
(materialista ou espiritual), são igualmente lógicas, igualmente metafísicas,
igualmente arbitrárias e igualmente simbólicas. As duas “realidades” (material
e espiritual) são vivências psíquicas que se sustentam num fundamento obscuro e
incognoscível, não existindo realidade absoluta. Essa onda irracional é uma
propensão sentimental, que por motivos inconscientes, age com poderosa força de
sugestão sobre os espíritos mais fracos de nosso tempo. “Descobriu-se” no
século XIX a verdade inquestionável de que tudo provem de causas materiais,
anacronicamente descobrimos, ao nos debruçarmos sobre o passado, que era uma
presunção intelectual de nossos antepassados supor que o homem possuía uma alma
imortal, de natureza divina, que pode até mesmo levar uma existência
independente do corpo, que existem espíritos incorpóreos e um mundo espiritual
para além de nossa realidade empírica. Ainda assim, aqui estamos nós, acossados
por fantasias apocalípticas onde zumbis (mortos que voltam à vida, não
espíritos, mas cadáveres, meros corpos animados por algum quimismo) e podemos
afirmar abobalhados, como em Goethe “se o ouvido em mim se fechar/No coração o
medo vai medrar/A cada hora mudo a forma do meu ser/ E assim exerço meu
despótico poder.”.
Tudo
o que é extramundano se converte em realidades imediatas; o fundamento das
coisas, a fixação de qualquer objetivo e mesmo o significado final das coisas
não podem ultrapassar as fronteiras empíricas. A impressão que a mente ingênua
tem é a de que qualquer interioridade invisível se torna exterioridade visível,
e que todo valor se fundamenta
exclusivamente sobre a pretensa realidade dos fatos. (JUNG, 1986, p.284, grifo
meu).
Mesmo
a mais profunda desconsideração da consciência para com o inconsciente não
anula seu poder, apenas torna a sua manifestação mais mefistotélica, ou no
nosso caso, pavorosa. Há, por certo, um medo generalizado do inconsciente, que
parece ter se intensificado em nossos dias e que se manifesta na fantasia
criativa sob a forma da ameaça dos zumbis. Persiste, todavia o fato autêntico
de que nosso mundo real se encontra ameaçado por uma irrealidade fantástica,
aqui reside uma superstição primitiva que encontra solo dos mais propícios para
deitar raízes no coração do moderno homem civilizado: a tendência quase
universal para concretizar as fantasias do inconsciente. Toda a aversão à
fantasia, assim como a desvalorização crítica do inconsciente nascem do medo
que se tem dessa tendência à concretização. Ao invés disso, deveríamos ser
capazes de levar a sério as fantasias provenientes do inconsciente, encará-las
como um desafio ao homem todo e ser capazes de interpretá-las ao invés de
simplesmente tomá-las ao pé da letra, ou como diria Campbell, de maneira
denotativa. É preciso ter em mente que a aparência não é a coisa mesma, mas
apenas a sua expressão, na podemos confundir a imagem da fantasia com o que
atua por detrás dela (JUNG, 1997). Me impressiona ver, por exemplo, serem
veiculadas no Facebook imagens e
piadas relacionadas ao “desejo secreto” que muitos alimentam de que ocorra uma
hecatombe zumbi, vemos em ação essa tendência a concretização, isso,
infelizmente não é sinônimo de se levar a sério o inconsciente.
A
outra interpretação dada por Von Franz a esse tipo de fantasia apocalíptica é
que as pessoas em geral se encontram num estado de tal tédio e mal estar que
anseiam por qualquer coisa que possa tirá-las, mesmo que de maneira forçosa e
violenta desse estado, mesmo que se trate de uma catástrofe, de uma guerra ou
hecatombe, uma solução violenta para tirá-las da insuportável estase de seu dia
a dia e do vazio intolerável de suas vidas. Isso casa perfeitamente com o
fascínio provocado pela ideia de um apocalipse zumbi, ou mesmo com o fascínio que
certas pessoas têm com relação a filmes e séries de prisão, com seus dramas
terríveis e reviravoltas violentas. É uma reação à sensação que Campbell
costumava chamar de “terra devastada”, o mesmo Campbell gostava de dizer que
estamos todos em queda livre em direção ao futuro, pois nossa sociedade carece
de mitos efetivos. É o mito que proporciona um campo onde podemos nos situar, o
que os mitos fazem é apontar o transcendente além do campo do fenômeno, como um
compasso com uma ponta na esfera do tempo e outra na eternidade. A eternidade a
que o mito se refere é a dimensão transcendente do aqui e agora, a eternidade
não tem relação com o tempo, na realidade o tempo nos exclui da eternidade. A
“terra devastada” é estarmos excluídos da eternidade, desamparados diante dos
fatos externos que parecem ter um poder absoluto sobre nós, nos esmagando sem
que exista um contraponto na alma capaz de nos manter íntegros e nos conectar
com esse aspecto da realidade que ultrapassa o campo empírico.
Deixando
por hora de lado o apocalipse zumbi, nos fixemos na figura do zumbi. Confesso
que tenho uma terrível aversão a ela. O zumbi não possui o fascínio do vampiro,
que é um indivíduo preso num dilema existencial terrível de se manter humano ou
ceder aos seus instintos bestiais de predador (ao menos em suas encarnações
mais recentes), o fascínio do vampiro, ou mesmo do fantasma, vem do fato de que
se tratam de indivíduos, personalidades, com conflitos e idiossincrasias, esse
não é o caso do zumbi. O zumbi não passa de um corpo putrefato, incapaz de
sentir dor, medo ou cansaço e movido unicamente pela fome, ela não possui alma
ou personalidade. Seja lá quem ele foi um dia, isso se perdeu para sempre, suas
roupas rotas e o que resta de sua carne são os únicos monumentos à
personalidade que ele foi outrora. O zumbi carece inteiramente de qualquer
conflito moral, carece completamente de liberdade e individualidade, ele não
passa de mais um numa horda infindável de mortos famintos de aspecto repugnante.
Fundamentalmente, o zumbi carece de consciência. Ele é uma personificação da
fome e instinto predatório e nada mais. Em si mesmo, é uma criatura das mais
desinteressantes.
Que
paralelos poderíamos encontrar para o zumbi? Bem um dos primeiros paralelos a
essa figura tão grotesca da cultura pop é outra criatura dos filmes
apocalípticos: as máquinas destruidoras do “Terminator” o Exterminador do
Futuro. Assim como os zumbis as máquinas são completamente inumanas (mas podem
se assemelhar a nós), é curioso que no filme as máquinas soldados sejam
esqueletos de metal, guiadas por uma espécie de consciência comum, como uma
colmeia onde toda a individualidade é esmagada. Mutatis mutandis, assim
como os zumbis, as máquinas são seres inorgânicos, feitos de metal frio. Ora, os
zumbis estão mortos, não passam de carne putrefata, são autômatos feitos de
carne podre. Nesse aspecto, de serem autômatos o paralelo é muito similar. Como
seres contagiosos, e que seu contágio resulta na aniquilação da individualidade,
me vem vivamente à lembrança o antagonista de Neo em Matrix, o agente Smith (sobrenome extremamente ordinário e comum no
mundo anglo-saxão) capaz de infectar (ele próprio se converte em uma espécie de
vírus no mundo virtual da matriz) qualquer um e transformá-lo em uma cópia
exata de si mesmo, apagando qualquer traço de individualidade anterior.
Outro
paralelo possível está na tradição budista. Baseio-me aqui nos ensinamentos de
S.EMA. Chagdud Tulku Rinpoche, compilados por Chagdud Khadro. De acordo com os
ensinamentos sobre os bardos, existe
seis possibilidades de renascimento na crença budista: o reino dos infernos, o
reino dos espíritos famintos (pretas, ou gakis em japonês), o reino animal, o
reino dos deuses invejosos (titãs ou asuras), o reino dos deuses (devas), e o
reino humano. Interessa-nos o reino dos espíritos famintos (ou espíritos
carentes). Nesse reino as criaturas são consumidas por uma fome e sede
insaciáveis, possuem corpos deformados com bocas minúsculas, ou pescoços
estreitos e barrigas imensas e sofrem de horrendas privações, perpetuamente
acossados pela fome e incapazes de aplacá-la. O karma que os conduz a esse
renascimento tão desfavorável é a avidez, mesquinharia e o roubo. Nesse estado
é impossível se alcançar o estado de liberação do sofrimento, o nirvana. Vários
são os obstáculos a que possam saciar sua fome, alguns são queimados por dentro
e por fora ao comerem qualquer alimento, outros enxergam a comida como
substâncias revoltantes, enquanto outros conspurcam a comida ao seu toque.
Assim como os zumbis de nossa cultura pop, essas criaturas são premidas por uma
fome intensa e implacável, todavia o caráter mais espiritual desse estado salta
aos olhos se comparado ao atroz materialismo do zumbi. Também não se
caracteriza como um estado definitivo, mas assim que se esgota o karma, segue-se outro renascimento. Na
moderna mitologia do zumbi, qualquer aspecto espiritual é completamente
sonegado, a morte é um estado definitivo e grotesco, não há paz nem mesmo na
morte.
Uma
das fontes do horror dos zumbis é que eles são personificações do aspecto
puramente material e desespiritualizado da morte: corpos putrefatos. Ainda
assim, são corpos em decomposição que se movem, comem carne humana e nos
ameaçam. São mortos inquietos e famintos que em sua avidez acabam por nos
tornar como eles. Novamente temos aqui um indício da atividade compensatória do
inconsciente coletivo. Todavia, esse não é, a meu ver, a principal fonte do
horror e fascínio dos zumbis. Devo confessar que foi através de um pesadelo que
me ocorreu o significado psicológico do zumbi, antes um completo mistério para
mim. O zumbi representa um estado de absoluta massificação, de destruição do
indivíduo e da possibilidade de vida individual, uma pungente metáfora para
outra atitude muito comum no nosso tempo.
Em
seu pequeno ensaio “Presente e Futuro” Jung reflete sobre a dificuldade da
psicologia em se desembaraçar da antinomia “o individual não importa perante o
coletivo, e o coletivo não importa perante o individual”, na realidade é
totalmente impossível se desembaraçar dessa realidade, pois a própria alma é
extremamente paradoxal, todavia, a psicologia precisa lidar com isso, pois é
uma ciência (de linguagem universalizante e geral), mas que lida diretamente
com o dado irracional que é o homem individual.
Uma
formação em princípio científica baseia-se, essencialmente, em verdades
científicas e em conhecimentos abstratos que transmitem uma cosmovisão irreal,
embora racional, em que o indivíduo, como fenômeno marginal, não desempenha
nenhum papel. Mas o indivíduo, como um dado irracional, é o verdadeiro portador
da realidade, é o homem concreto em oposição ao homem ideal ou “normal” irreal,
ao qual se referem as teses científicas. (...) as ciências naturais, em
oposição às “humanidades”, impõem, portanto, uma imagem do mundo que exclui a
psique humana real. (JUNG, 2011, p.16).
Vemos
aqui o efeito daninho e perigoso do “pensamento estatístico”, pois sob o peso
esmagador dos pressupostos científicos o indivíduo e a psique sofrem um nivelamento
que distorce a imagem da realidade e a transforma em média ideal. Essa imagem
estatística do mundo reprime o fator individual. Isso impede ou emperra toda a
possibilidade de desenvolvimento moral do indivíduo. O mote romântico de que
“tudo o que vive, vive individualmente” é esmagado aqui, mas permanece o fato
de que a única vida real é a vida individual. A sentido e a finalidade da vida
passam a ser imposto de fora para dentro do homem e decisão moral passa a ser
progressivamente retirada do indivíduo, que passa a ser encarado como mera
unidade recorrente, gerando uma caótica falta de identidade. “Quanto maior a
multidão, mais ‘indigno’ é o indivíduo. quando este esmagado pela sensação de
sua insignificância e impotência, vê que a vida perdeu o sentido (...)” (JUNG,
2011).
Disse
certa vez Jung “O homem de hoje, que se volta para o ideal coletivo faz de seu
coração um antro de criminosos”, lembrando ainda que há um complicador a mais,
é preciso ter em mente que sem liberdade a moralidade é impossível, e que todo
o progresso e todo o talento é individual, e a liberdade é diretamente
proporcional a possibilidade de desenvolvimento individual. O complicador de
que falava a pouco, consiste no fato de que tudo o que foi falado no que diz
respeito a influencia da sociedade sobre o indivíduo é igualmente válido no que
diz respeito a influencia do inconsciente coletivo sobre a psique individual,
essa influência é invisível, diferente da primeira. Vemos aqui, na imagem do
zumbi, a tendência do psique individual ao se deparar com problemas de ordens
gerais, responder com motivos mitológicos, o zumbi me parece, pelo menos num
primeiro momento, uma tentativa malfadada de compensação a essa ameaça que vem
de “dentro e de fora” e que traz a promessa de aniquilação e esquecimento. Um zumbi
não importa enquanto indivíduo, ele encontra na morte e reanimação uma espécie
absoluta de massificação, de aniquilação da individualidade, ele representa uma
ameaça real, e atua, cum grano salis,
como um símbolo, pois parece que muitas pessoas se sentem atraídas por essa
imagem justamente por esse motivo, mas de uma maneira apenas obscuramente
pressentida.
Como
disse no início, esse texto é apenas um torso inacabado e deve ser julgado
dessa maneira pelos seus leitores, acredito que no futuro retornarei a ela para
uma reflexão mais séria e profunda sobre o tema.