domingo, 19 de abril de 2020

O Pensamento Vivo de Jung


[essa é apenas a primeira sessão de um escrito bem mais longo, aproveitem]
O intuito desse escrito é ajudar a compreender de que maneira se articula o pensamento de Jung e por quais parâmetros podemos entender a maneira como elaborou sua Psicologia. Utilizo o termo “pensamento” justamente por seu caráter genérico e pouco específico, e para evitar o uso da palavra “teoria”, que, como veremos, é inadequada para descrever a Psicologia de Jung. Existem muitos preconceitos e incompreensões que cercam a sua obra, algumas dessas mistificações se devem a qualidade e ao caráter de seus leitores, e quanto a isso nada, ou muito pouco pode ser feito. Por outro lado, há de fato uma imensa dificuldade em adentrar ao pensamento de Jung, e, não raro, numa primeira visada temos impressões equivocadas, especialmente porque, assim como os americanos, Jung esperava a inteligência de seus leitores.
Jung conta uma historieta interessante. Quando estava nos Estados Unidos ao passar por uma linha férrea notou que, diferente da Europa, não havia uma cerca impedindo que as pessoas arriscassem a vida passando por cima dos trilhos, havia apenas uma placa de advertência. Diante desse fato da cultura material, dessa comparação tão peculiar, ele deduziu que os europeus pressupõem a burrice, pois é preciso impedir pessoas idiotas de morrerem por serem incautas, apressadas ou intrépidas usando uma cerca. Já os americanos, supõe que basta um aviso, pois você é inteligente o bastante para não assumir um risco desnecessário. Americanos pressupõem a inteligência e os europeus a burrice. Talvez haja uma outra conclusão acerca do fato observado por Jung, os americanos não dão a mínima para os idiotas, enquanto os europeus se importam o bastante para que seus idiotas sejam mantidos vivos, apesar de si mesmos. Se me permitem ampliar ainda mais a alegoria, não pretendo fazer aqui uma placa de advertência, mas uma cerca conceitual, então, eu lhe peço desculpas estimado leitor, mas, diferente do que usualmente faço, vou supor que os leitores de Jung são, em média, idiotas.
Essa não é uma opinião apenas minha, um outro autor, de quem particularmente não gosto, James Hillman, compartilha da mesmíssima opinião, diz ele que: “Junguianos são em sua maioria gente de segunda linha com mente de terceira categoria”. Se você, estimado leitor, não está descrito nessa frase, certamente sabe do que eu e Hillman estamos falando.
Se você ainda está lendo, significa que talvez seja alguém que só precise de uma placa, e não de uma cerca, esse escrito, porém também vai lhe ser útil. O universo Junguiano é tão apinhado de falsidades, desonestidade, e crasso desconhecimento de Jung e seu pensamento, que pessoas inteligentes se afastam assustadas ou francamente horrorizadas. Eu mesmo devo ter permanecido, porque inicialmente não tive o menor interesse em conversar com “junguianos” ou me inteirar de que existia uma comunidade ao redor da obra de Jung. Durante os primeiros dez anos de leitura da obra, ela me absorveu completamente devido ao imenso desafio intelectual, espiritual e moral que representa. Só depois eu descobri que essa comunidade era na verdade um circo...
O trabalho a que me proponho aqui, possui um certo viés epistemológico, mas não se trata de uma obra de epistemologia, especialmente por se dirigir a uma finalidade prática. Jung propôs um método psicoterapêutico, e os estudiosos do seu pensamento, podem acabar se tornando psicoterapeutas. A psicoterapia é uma prática dificílima, extremamente arriscada e perigosa. Jung criou o mais abrangente e profundo método de psicoterapia, algo de uma imensa utilidade prática, capaz de ajudar muitas pessoas, desde que se compreenda seu pensamento e saiba atuar de acordo com seu método. Como o fito desse escrito é ajudar justamente as pessoas que se aventuram nessa senda, ele não se caracteriza como um escrito de epistemologia propriamente dito.
Como pretendo construir essa “cerca” conceitual? Esclarecendo algumas categorias que ou estão presentes na obra de Jung, ou que a descrevem e circunscrevem. Eu acredito que se você, estimado leitor, as compreender, poderá honestamente retornar aos textos de Jung evitando ser atropelado pelo trem do misticismo, o vagão do pensamento teosófico, a locomotiva da interpretação anacrônica de Jung, o vagão do sincretismo com a psicanálise, ou os vagões do psicologismo, da pseudo-metafísica e do racionalismo aplicado.
Quais são essas categorias? A dialética, Jung nomeadamente chama seu método clínico de “método dialético”, compreender do que se trata e de como Jung se utiliza em termos práticos é fundamental para evitar ser atropelado pelo psicologismo e pela mistura espúria com a psicanálise ou qualquer outra teoria da moda. A segunda categoria é o nominalismo, Jung afirmou diversas vezes que nunca fez uma teoria, mas sim um “nominalismo culto”, compreender isso evita ser atropelado por uma interpretação racionalista da obra de Jung. O pragmatismo e o empirismo, bem como a noção de ciência de Jung compõem outra parte dessa cerca juntamente com o funcionalismo/estruturalismo e, por fim, as duas últimas partes têm a ver com Kant: o seu agnosticismo e Dualismo. Como um adendo importante, também me deterei naquilo que considero ser a ética proposta por Jung, e esse viés perpassará toda a discussão desse escrito.
Jung denomina o seu método clínico de método dialético, no entanto ele não possui uma definição regional de dialética, ou em outras palavras, ele não redefine o sentido de dialética em seu sistema de pensamento. Muito pelo contrário, ao falar em dialética ele usa definições simples e diretas. Em seu livro A Prática da Psicoterapia, Jung afirma que a psicoterapia deixa de ser vista como um método simples e mesmo evidente, e pouco a pouco passa a ser vista como um procedimento dialético, que ele define simplesmente como uma discussão entre duas pessoas, para em seguida dar duas definições igualmente concisas. Tratava-se originalmente da arte de conversação entre os antigos filósofos, mas que logo adquire o significado de “método para produzir novas sínteses”.
Mais adiante, no mesmo livro, ele torna essa definição tanto mais complexa, quanto a regionaliza um pouco, ou seja, ele faz um uso do termo dialética que é um pouco mais específico ao seu sistema de pensamento. Ao especificar a sua contribuição no desenvolvimento da moderna psicoterapia, que surge com Freud, recebe uma contribuição de Adler e, por fim, Jung aparece subsumindo os dois como casos particulares de sua psicologia mais geral e acrescenta algo que seus dois antecessores não foram capazes ou não se interessaram em integrar em seus métodos clínicos. Nesse sentido, trata-se da capacidade de desenvolvimento individual do paciente, ou seja, do processo de individuação.
O método dialético é justamente o indicado para lidar com esse aspecto individual, pois a individualidade é única, imprevisível e não interpretável. Ao lidar com esse imponderável, o médico deve renunciar a todos os seus pressupostos e técnicas e limitar-se a um método puramente dialético, ou dito em outras palavras, evitar todos os métodos. Jung doravante efetua uma correção em sua afirmação anterior, de que o método dialético seria o mais recente fruto da evolução dos métodos psicoterapêuticos, porém não se trata de uma evolução dos métodos, mas de uma completa renúncia a eles. Nesse sentido a dialética se converte numa atitude, com as características de ser “a menos preconcebida possível”. Na atitude dialética, o médico abandona sua posição ativa e simplesmente vivencia junto um processo evolutivo individual. Fundamentalmente, no método dialético ou atitude dialética, ou processo dialético, o psicoterapeuta está em pé de igualdade com aquele que ainda é considerado paciente.
Antes de avançarmos, convém recordar que a problemática que força o médico a adotar a dialética como procedimento é a da individualidade, ou seja, o fenômeno da individualidade do paciente: a sua separação da primitiva participação mística seja com as imagos parentais ou com a sociedade; é o que obriga ao abandono de todos os métodos e ter como única ferramenta a própria personalidade. Aqui se revela uma característica empírica de Jung, ele não força o objeto (nesse caso a individualidade) a se conformar a conceitos ou categorias pré-concebidas, puramente racionais. Dito de outra maneira, somente a individualidade do médico pode lidar com a individualidade do paciente em um diálogo livre de preconceitos teóricos ou filosóficos. O que nos remete a antinomia entre conhecimento e compreensão, que eu formulo, a partir de Jung como “o conhecimento não importa perante a compreensão e a compreensão não importa perante o conhecimento”. Jung afirma, em Presente e Futuro, que não pode haver autoconhecimento a partir de uma teoria, pois quanto mais uma teoria pretende validade universal menor sua possibilidade de aplicação a uma conjuntura de fatos individuais. Como as teorias se baseiam na experiência elas são estatísticas, estipulam uma média ideal que elimina todas as exceções e esse valor médio ideal figura na teoria como um fato fundamental, com isso as exceções se anulam reciprocamente.
O método estatístico nos dá um termo médio ideal de uma conjuntura de fatos e não a sua realidade empírica, esta por sua vez se caracteriza justamente pela irregularidade. A conclusão é que não pode haver autoconhecimento por meio de pressupostos teóricos, já que o objetivo do autoconhecimento é um individuo, ou seja, uma exceção e uma irregularidade relativas. O indivíduo não é caracterizado pelo regular (médio) e o universal, mas pelo único. Ele não é uma unidade recorrente, mas algo único que não pode ser comparada e nem mesmo conhecida de antemão. Em nosso, caso, o do método dialético, ou seja, a compreensão de um outro indivíduo no processo analítico, é preciso abandonar os pressupostos teóricos pelo fato da individualidade não ser um valor ideal, ou uma regularidade, tampouco unidade recorrente, mas uma exceção e irregularidade não passível de comparação com dados preexistentes da realidade ou teóricos. Assim o conhecimento se dirige ao regular e universal, enquanto a compreensão se dirige ao individual. O que é vantagem para o conhecimento redunda em desvantagem para a compreensão, no caso do terapeuta ele deve sustentar os opostos sem contradição e atentar tanto para o conhecimento quanto a compreensão, visto a compreensão ser indispensável ao tratamento psíquico que tenha como horizonte a individuação, em outras palavras, que seja pautado pela ética da individuação.
Jung não propõe o abandono da ciência ou do método estatístico, apenas aponta sua patente limitação quando se trata de uma psicoterapia que tem diante si não um termo médio ideal, mas um ser humano de carne, osso com uma existência individual, e que possui em si o germe, a potencialidade da individualidade psíquica. Ele gostava de um velho ditado suíço, o de que não se deve jogar fora o bebê junto da água suja do banho, ao criticar o método estatístico ele o faz não simplesmente para abandoná-lo, mas para constituir uma perspectiva que possa levar em conta a individualidade, sem abrir mão de constituir uma Psicologia geral de cunho científico, como veremos adiante.
Como podemos compreender isso a luz da dialética? Entender a ligação dessa sofisticada discussão metodológica e epistemológica de Jung que redunda na sugestão de uma ética analítica, com a arte de conversação entre os antigos filósofos? Eu usarei o conhecimento histórico e filosófico como uma maneira de ajudar você, estimado leitor, a melhor compreender Jung. Tudo o que eu apresentar doravante, são ferramentas heurísticas, isto é, explicativas. Jung supõe uma vasta erudição em seus leitores, nenhum leitor culto médio possui o grau de erudição requerido para se compreender sua vasta obra, não se culpe por isso. Desde cedo eu segui o conselho de Joseph Campbell de procurar os autores que eram referência para os grandes autores que eu estava lendo, como Jung, e seguir seus rastros intelectuais para melhor compreendê-lo.
Uma coisa importante é marcar a diferença entre Jung e os “antigos filósofos”, a primeira e mais fundamental é a de que Jung jamais foi filósofo. Se pensarmos em Platão em especial, muitos acusam Jung de praticar uma espécie de neo-platonismo ao falar em arquétipos (visto esse ser um termo platônico, uma perífrase explicativa para a ideia, o eidos, platônico), todavia a noção de arquétipo de Jung pouco ou nada tem a ver com a noção platônica. É preciso que fique claro que Jung negava a metafísica, não era filósofo e era um cientista, como veremos ao falar em seu agnosticismo e nominalismo culto, e principalmente, não era um racionalista, mas um empirista e pragmático. O problema é que no meio do “circo”, ou seja, da comunidade junguiana, algumas pessoas fazem um uso dos arquétipos como se eles fossem de fato um platonismo psicológico, e incorrem num horrendo psicologismo.
Jung não parte em sua análise dos fatos psicológicos de princípios prontos, que regeriam a articulação entre os fatos psicológicos. Ele faz justamente o oposto, procura compreender a maneira como os fatos psicológicos se articulam sem recorrer a qualquer princípio que os regule de maneira universal e apriorística, procurando no interior dos próprios fatos psicológicos a sua forma de estruturação. Jung também não simplesmente generaliza os fenômenos empíricos e a partir dessas generalizações cria conceitos que existem apenas na sua cabeça, é por isso que ele se apressava em dizer que não criou uma teoria, pois seus conceitos não são essas generalizações que se afastam dos fatos empíricos. Ele até mesmo nomeia seus conceitos de “conceitos empíricos” ou “conceitos experimentais”. Seus conceitos descrevem os fenômenos, mas não os explicam. Não é a toa que ele compara os arquétipos a classificação botânica, pois a classificação botânica não é um fato empírico, mas descreve e classifica o fato empírico da similaridade entre as famílias das plantas. Assim como a classificação botânica, os arquétipos não regem a articulação dos fatos empíricos, mas são nomes que descrevem fenômenos análogos. Os conceitos de Jung foram criados com o intuito de traduzir objetivamente a realidade dos fenômenos psíquicos obervados.
Nesse sentido, quando eu vou encarar um fenômeno individual, que não pode ser comparado, mas que é uma irregularidade relativa, se antes eu já não dispunha de princípios prontos que regeriam a articulação dos fenômenos, à moda racionalista, aqui eu perco até mesmo a possibilidade de usar generalizações teóricas, ou o método estatístico de propor uma média ideal, pois a individualidade não é uma média, mas uma exceção à média. Nesse caso, o método clínico é um procedimento dialético, pois a dialética é uma forma de compreender as coisas em si e por si mesmas, assim, ao invés de saber de antemão, aprioristicamente os princípios universais que regem a articulação dos fenômenos psicológicos, Jung descobre dialeticamente a lógica de articulação desses fenômenos neles mesmos.
Curiosamente, isso resolve o problema do abandono de todos os métodos, pois a dialética não é um método que já vem pronto de antemão e pode ser simplesmente aplicado de maneira mecânica a realidade dos fatos psicológicos e que me permite chegar a um certo resultado. Paradoxalmente, o método depende dos objetos em questão, do percurso percorrido no trato com esses. A dialética não aponta um caminho de antemão, pois é a lógica interna desses objetos investigados que vai indicar e constituir o caminho, ou seja, o método. Isso já era assim em Platão e Heráclito, por mais que o filósofo de Éfeso seja apontado como o pai da dialética, é em Platão que o termo é incorporado ao léxico filosófico pela primeira vez, e aí inicia uma longa carreira, que passa por nomes como Aristóteles, Hegel e Marx.
Acerca de Platão, lemos em Filosofia e Método, do padre Henrique de Lima Vazes, que o caminho dialético não obedece a um caminho de regras fixadas de antemão, mas segue as peculiaridades próprias do conteúdo investigado, a partir de uma pergunta ou dificuldade inicial.
Nos diálogos socráticos de Platão, vemos alguns aspectos da dialética que podem nos ajudar a compreender melhor o que Jung se propõe a fazer. Sócrates não se coloca como um grande conhecedor de nenhum tema específico, ao contrário, como atesta a sua famosa afirmação “tudo o que sei é que nada sei”, ele assumia uma postura de ignorância, ou seja, de ausência de pressupostos. Assim, ele partia de uma pergunta ou problema inicial para averiguar o conhecimento de alguém que alegava ter um saber sobre determinado assunto por meio de uma conversa que consistia em perguntas que não estavam prontas de antemão, mas que dependiam das respostas dadas ao problema inicial. Esse problema era, em geral, aparentemente simples.
Sócrates fazia perguntas para testar o conhecimento alegado pelo seu interlocutor, mesmo não tendo ele mesmo esse conhecimento, pois pressupunha que não se podia ter o conhecimento de um fato isolado, mas que esses fatos estavam em interação. As perguntas eram então dirigidas à pessoa que julgava saber o que era o amor, ou a verdade etc., e estavam sutilmente conectadas ao problema original da conversa, caso uma contradição emergisse isso era o indicativo de que o interlocutor não possuía o saber que alegara de início. A verdade, seja ela qual for, não é imediatamente revelada por esse tipo de diálogo, mas se estabelece a existência de contradições o que invalidam a alegação inicial de conhecimento sobre algo.
Resumidamente, temos duas pessoas uma que vai propor uma pergunta e a outra que vai responder essa pergunta, em seguida, o interlocutor que fez a pergunta vai testar a resposta dada por meio de uma série de perguntas sutilmente ligadas ao problema inicial proposto, com o intuito de averiguar a existência de contradições o que tornaria a resposta inicial falsa.
Obviamente esse é um resumo da generalização mais ampla possível do método dialético em Platão, pois a maneira como ele o apresenta varia de acordo com a obra que estivermos observando. Em termos muito gerais, ao se observar diversos momentos da dialética platônica em suas obras, percebe-se que o primeiro objetivo de Sócrates era negativo, ou seja, demonstrar o erro de seus interlocutores, mas já em Sócrates existe um segundo movimento de considerar as similaridades entre as proposições particulares que pudessem indicar a existência de um universal capaz de subsumir as proposições particulares. Tanto em Sócrates quanto em Platão, por influência de Parmenides temos um direcionamento do método dialético para as formas eternas, aos universais em sentido realista e não nominalista.
Platão, em seus diálogos posteriores a fase socrática, não abandona o método dialético como proposto por seu mentor, mas o torna algo mais complexo, basicamente um método de análises seguida de sínteses. Platão faz uma negação do mundo sensível como algo enganador, e o seu método dialético tem o objetivo de virar as costas ao conhecimento sensível do mundo e dirigir o olhar para as formas eternas, puramente racionais, o que pode ser entendido como a orientação original da alma humana, que anseia secretamente por essa verdade já vislumbrada, vagamente pressentida, porém esquecida, coberta por um véu de ignorância. Um aspecto crucial do método dialético como compreendido por Platão/Sócrates é que ele não é um procedimento solitário, no caso filosófico, o professor e o aluno são partes integrantes e indispensáveis do método, o professor convida o aluno a formular suas crenças na forma de hipóteses e em seguida ou o questiona e desafia a negar ou afirmar certas proposições sutilmente ligadas à pergunta original e/ou extrai as consequências das hipóteses levantadas pelo aluno.
Uma coisa muito curiosa, é que lendo Platão para tentar compreender melhor o que Jung chama de dialética, certos aspectos que passariam despercebidos numa leitura de interesse puramente filosófico saltam aos olhos. Por exemplo, por mais que o método dialético tenha a ver com o logos, ou seja, a palavra, o discurso, a mente, a racionalidade, existe uma ligação entre os dois professor e aluno que se dá não pela via do logos, mas sim do Eros, e que permite que o diálogo não descambe simplesmente em uma polêmica ou agressividade. Mesmo correndo o risco de ser anacrônico, soa muito como a noção de transferência formulada por Freud e posteriormente modificada por Jung em virtude de sua noção diferente de um inconsciente psíquico.
Por mais que eu adorasse me alongar ainda mais nessa remissão a Platão, o melhor é retornar a Jung, ou meu excesso de zelo erudito pode transformar meu esforço numa mera placa. O principal é entender que o caminho dialético não obedece a um caminho de regras fixadas de antemão, mas segue as peculiaridades próprias do conteúdo investigado, a partir de uma pergunta ou dificuldade inicial. Muitas pessoas me perguntam se há uma contradição quando Jung propõe que se abandonem todos os métodos e técnicas, mas indica o uso de um método para isso, bom, creio que isso responde a essa dúvida tão frequente. Além disso, é preciso que fique claro que o método dialético depende dos objetos em questão do percurso percorrido no trato com eles.
Retornando a Jung, é importante notar que um de seus conceitos mais importantes, símbolo, é um resultado direto da dialética e está intimamente ligado a ela. Por meio da compreensão de símbolo podemos adentrar na dialética de Jung no terreno da psicologia e de seu nominalismo culto. O símbolo, em resumo é uma síntese dialética. Uma neurose é uma desunião consigo mesmo, de uma maneira elegante, Jung a define como a existência de duas tendências opostas na consciência, sendo que uma delas é inconsciente. Eu vou esboçar aqui de maneira esquemática como se pode entender dialeticamente o símbolo unificador em Jung (vereinigende Symbol).
Antes de começar, deixe-me fazer um parênteses erudito, nas obras completas, no Tipos, o termo que aparece em português é símbolo de união, porém o termo vereinigende no original em alemão pode ser o particípio presente do verbo vereinigen (unir), assim como o adjetivo unificador. O substantivo união em alemão é Union ou menos frequentemente Vereinigung. Quando eu digo em português símbolo de união, corro o risco entender símbolo em sentido corriqueiro do nosso idioma e achar que ele não participa dinamicamente do processo, mas que apenas o representa. Porém, o símbolo unifica nele os opostos de maneira dinâmica, por isso vou usar a minha tradução símbolo unificador. Malgrado essa crítica pontual, a tradução das obras completas de Jung é muito boa no geral.
Voltando a vaca fria. Há uma tendência consciente que é a tese, essa tese é a atitude consciente que tem uma tendência natural à unilateralidade, pois toda atitude para ser adaptativa precisa de uma direção. A atitude atua direcionando, selecionando e excluindo, com isso, ao ser tornar mais adaptada (a consciência é um mecanismo momentâneo de adaptação) ela vai deixando de lado cada vez mais possibilidades vitais que são excluídas e formam um “contrapeso” no inconsciente, até que essa especialização não se conforma mais aos fatos objetivos, parando a progressão da libido. Essa libido agora desaparece da consciência e reativa regressivamente os conteúdos inconscientes (princípio energético da equivalência), agora com essa quantidade extra de energia, se instalam na consciência e a dividem. Como num cabo de guerra em que os dois contendores possuem exatamente a mesma força e nenhum dos dois lados consegue derrotar o outro. Por isso a consciência perde a sua função adaptativa e sobrevém a estagnação característica da neurose. A unilateralidade é indispensável à adaptação, o que se perde na neurose é justamente essa direção da consciência, seu ponto focal.
Assim a consciência passa a ser assombrada por sintomas (a antítese oprimida), e, ao mesmo tempo, a tese consciente é mantida teimosamente por uma infinidade de razões que tem enorme importância prática, mas que não cabem nesse esquema. Paradoxalmente, a neurose traz a sua própria terapêutica, pois é justamente naquilo que foi negado pela atitude consciente que está à saída para o dilema neurótico. Porém não adianta simplesmente se entregar ao sintoma, como os dois têm igual força nada acontece verdadeiramente. É por isso que Jung denomina o papel do analista de espelho dialético, assim como no método socrático ele vai questionar o paciente de maneira crítica acerca de suas posições conscientes, numa espécie de dialética negativa (como exposto anteriormente), diferente de Sócrates, não temos o bom e o belo eternos para nos guiarmos e sequer sabemos se eles existem ou não (devido à posição de agnosticismo), o que temos como guia é a manifestação sintomática do inconsciente que podemos simultaneamente criticar e ao mesmo tempo espelhar dialeticamente e apresentá-la como antítese da posição consciente, tendo em mente a hipótese basilar de que a relação entre consciência e inconsciente é compensadora.
O símbolo para Jung é um fenômeno natural e espontâneo, que unifica as duas posições que dividem a consciência em uma terceira via onde as duas, tese (atitude consciente) e antítese (sintoma inconsciente) continuam tendo igual valor, porém podem ser unificadas e com isso a energia que escoou para o inconsciente pode retornar a consciência e esse processo dinâmico de unificação dialética leva a uma nova adaptação, ou seja, a uma nova atitude e a uma nova progressão da libido. Infelizmente a função transcendente, ou dito de outra maneira, o símbolo, não é simplesmente um produto da técnica, por mais que ele seja essa nova síntese que surge da análise das duas posições em conflito, mediadas pelo Eros que une os dois: médico e paciente, ele permanece sendo um produto autônomo da psique inconsciente, mas que só pode surgir com a colaboração da consciência.
Não é ocioso resaltar, que o esquema que esbocei aqui da dialética proposta por Jung, do papel de espelho dialético, bem como da função dinâmica do símbolo e o seu papel na dialética é esquemático e obviamente incompleto. A vida e a dinâmica desse processo possuem detalhes que são de suma importância, devil is in detail! Podemos perceber que há uma enorme sutileza na dialética psicológica de Jung, pois no fundo se trata num nível mais superficial de um diálogo entre o médico e o paciente, num nível um pouco mais profundo entre o médico e o inconsciente do paciente em que o paciente dialoga com o seu inconsciente por intermédio da figura do médico (espelho dialético) e, num nível mais profundo, um diálogo entre a consciência e o inconsciente do paciente. Obviamente esse esquema poderia se complicado ainda mais com a adição de outros elementos, mas se eu assim o fizesse, ele perderia o valor de ser simples.
Quando os sintomas estão superados, e podem ser superados por uma análise redutiva dos mesmos, surge à possibilidade do desenvolvimento da personalidade, pois a clínica psicológica não é o lugar apenas de quem está doente, mas igualmente da pessoa sã, mas que sente a premência de se desenvolver, não no sentido inicial de se transformar, mas no de tronar-se quem se é, ou dito de outra forma, surge toda a problemática que tocamos inicialmente, a individualidade, e que demanda uma postura dialética. Novamente sublinho, Jung não era nem filósofo, nem platônico, metafísico, tampouco gnóstico, tudo do que estou falando aqui está no campo psicológico. É preciso ressaltar que ao se utilizar um procedimento dialético, você descobre dialeticamente a lógica de articulação desses fenômenos neles mesmos, sem que seja imposto nada de fora. Creio que isso ficará ainda mais claro quando passarmos adiante. Passemos ao nominalismo culto de Jung.