Como
pensador eu habito uma encruzilhada, perpetuamente encarando dois caminhos,
duas vias. De um lado a História e a Filosofia, empreendimentos pautados pela
racionalidade ocidental, de outro a obra de Jung que convida sempre a ouvir a
voz romântica do irracional com seus abismos e florestas selvagens. Jung sempre
nos convidou uma tarefa racionalmente impossível, a de sustentar em nosso peito
os opostos sem contradição, a dar igual espaço a racionalidade consciente e ao
caos do inconsciente, porque ambos têm o direito a existir e da junção de ambas
as fontes, das águas claras e das águas turvas é que brota a vida. Assim como
todos ou, ao menos, uma grande quantidade de pessoas sensíveis, me sinto
profundamente afetado pela onda de barbárie e irracionalidade demoníaca,
associada a uma racionalidade perversa e mecânica que procura a tudo e a todos
arrasar e destruir, converter nossos corações em algo feito de engrenagens de
metal. Não é possível passar incólume por esse tempo de profunda escuridão,
tampouco é possível compreendê-lo apenas pelo viés da consciência, muito menos
tratá-lo como uma pura aparição do caos inconsciente a luz do dia, como se os
monstros de nossos pesadelos subitamente deixassem as sombras e passassem a se
mostrar em plena luz com todo o seu horror. É preciso entender o que se passa
por um olhar de quem se encontra em uma encruzilhada.
Jung,
certa feita afirmou que nenhum de nós pode enunciar a Verdade, com letra
maiúscula, mas ao ser travessado por um problema contemporâneo, se pudermos
identificar como ele nos afeta, podemos enunciar uma verdade, mas uma que
reverbera. Estamos numa encruzilhada, e é preciso reconhecer essa posição, pois
estamos navegando entre Sila e Caribidis, em meio as Simplégades, estamos
coletivamente em nosso estreito de Bósforo, ou, para usar uma metáfora ainda
mais antiga, mas que muito me apetece, caminhamos ao lado de Gilgamesh em
nossas 12 léguas de escuridão. Falei a princípio em pessoas sensíveis, pois é
preciso reconhecer que muitos de nós não percebem a escuridão a nossa volta e,
diferente de nós, dão boas vindas e se regozijam nas trevas. Seja por sempre
terem vivido na escuridão, na noite primordial do inconsciente, por viverem sob
a influência de conteúdos nefastos do inconsciente desde sempre, estarem à
vontade no caos. Outros, talvez, por viverem vidas insípidas e estagnadas,
sentem-se finalmente vivos diante da destruição e da loucura. Alguns, talvez,
apenas caminhem como leminges seguindo a multidão em direção ao abismo, muitos
estão simplesmente enganados, mas uma boa parte é apenas perversa.
Para
entender os tempos em que nos encontramos, uma das categorias racionais
possíveis, como bem me recordou meu filho Ícaro de apenas 14 anos, se encontra
no sétimo capítulo da obra máxima de Maquiavel. Nesse capítulo, ele discorre
sobre principados novos conquistados com as armas dos outros ou pela sorte. Principados
conseguidos devido à fortuna são fáceis de conseguir, mas difíceis de manter,
pois a fortuna, ou a concessão do poder por outrem são duas coisas instáveis. “Eles
também não têm a sabedoria necessária para manter a posição, pois, ao menos que
sejam homens de grande valor e habilidade, não é razoável esperar que
deveriam saber como comandar, tendo sempre vivido fora do governo; além disso,
eles não podem manter o poder, pois não têm forças que possam manter fieis e
amigáveis”. Maquiavel parece descrever o nosso atual presidente, e seus aliados
que já o abandonaram e o acusaram de ser aquilo que ele sempre demonstrou ser,
um tolo grosseirão, como: João Doria, Lobão, MBL, Alexandre Frota, Raquel Sherazade,
Reinaldo Azevedo et caterva.
Bolsonaro não deitou os alicerces de seu governo, e precisaria ter a habilidade
para fazê-lo agora, sob grande risco, mas não possui habilidade ou sabedoria
para tanto. Concordo com Zizek que a comparação com a década de trinta não nos
leva muito longe, mas nesse ponto se faz necessária, pois assim como os
nazistas, seu discurso não é simples propaganda, mas um delírio real. Assim como
o manco Joseph Goebbels de fato nutria ódio irracional contar o meu povo, os
judeus, e nisso era ombreado por quase todos no círculo íntimo de Hitler, que
de fato, acreditavam nas mais estapafúrdias teorias conspiratórias, Bolsonaro e
sua família realmente acreditam em suas rocambolescas teorias conspiratórias.
Felizmente
o nosso Goebbels tupiniquim, Carluxo, não tem sequer uma fração do gênio
maligno do original. O primeiro fez uso extremamente inovador do rádio e do
cinema, praticamente inventou o que hoje chamamos de fake news. A novidade do
nosso caso, que extrapola a comparação com a década de trinta, é o uso inovador
e quase diabólico das redes sociais para disseminar mentiras, e a absoluta
falta de qualquer controle republicano sobre isso, além da incapacidade dos
políticos mais tradicionais de compreender e agir, nem que fosse para tentar
barrar essa estratégia. Sua única resposta, a torto e a direita, foi a
estupefação e incredulidade, este escritor incluso. No capítulo dezenove, Maquiavel
alerta sobre a necessidade de evitar ser desprezado ou odiado, “[...] ele deve
evitar ser ladrão e usurpador dos bens e das mulheres dos súditos, pois isso o
tornará odiado [...] Ser considerado volúvel, leviano, efeminado, miserável e irresoluto
o tornam desprezível [...] ele deve procurar mostrar, em suas ações, grandeza,
coragem, gravidade e fortaleza [...] pois aquele que conspira contra o príncipe
sempre espera agradar com a remoção dele, mas, quando o conspirador só pode
avançar ofendendo o povo, ele não terá coragem de seguir adiante”. A todos os que estudaram História e Ciência Política,
fica evidente que Bolsonaro faz justamente o oposto do que é preconizado por
Maquiavel, e ainda assim vem se sustentando no poder, e aqui encontramos os
limites das categorias racionais.
Bolsonaro
certamente não possui uma estratégia, ele é um tonto e um boçal, mas há algo
aqui a ser percebido, se não como estratégia consciente, como algo de
inconsciente que reverbera sem ser percebido em todos nós, desde seus
opositores a seus mais aguerridos apoiadores, o ódio e o desprezo não são
empecilhos, mas ferramentas de seu governo. Zimmer traduziu um texto da
tradição hindu em que dois irmãos ofenderam Shiva, e pediram uma penitência. O grande
deus lhe deu duas opções: passar 20 encarnações como seus mais fieis devotos ou
apenas 10 como seus piores e mais virulentos inimigos, pois quem odeia dedica
mais tempo e atenção ao objeto de ódio do que quem ama e admira. Nosso ódio e
desprezo é o alimento que tem engordado o poder macabro do presidente, nossos
ataques a ele são tão descoordenados quanto seus atos, dedicamos nossa libido
ao aspecto odioso, desprezível e irracional de seu governo como a tresloucada
Damares, o desprezível Weintraub, seus filhos que sempre surpreendem pela
infantilidade e grosseria. Estamos hipnotizados pelo ódio, e esquecemos da
racionalidade perversa que está nos bastidores e que destrói tudo o que toca,
arrasando a Amazônia, matando índios, aprovando venenos variados para a nossa
comida e queimando sem pudor as garantias constitucionais. Estamos todos
dançando ao som da música insana que Bolsonaro rege. A mesma que ele mesmo
dança há décadas sem nem mesmo saber.
O
que eu sinto diante dos ataques mais óbvios aos nossos preciosos marcos
civilizatórios é ódio e raiva, misturados a um nojo indizível. Eu não sei como
lidar com esse horror que faz do meu peito pesado, e que sinto nas minhas
entranhas como se uma bílis corrosiva estivesse aos poucos em devorando por
dentro. Nós estamos sendo atacados de dentro pra fora e nem percebemos, há um
mal indizível em nós que reage ao mal que grassa lá fora e nos consome por
dentro, e nos paralisa. Diante dessa maré de insanidade, de alguma maneira,
precisamos lidar com esse ódio em nós, para estarmos inteiros e impor o nosso
ritmo e a nossa razão as ações que devemos e podemos tomar. Estamos paralisado,
pois o ataque de Bolsonaro desperta o pior em nós, e coloca em xeque a imagem
de superioridade moral que a esquerda sempre nutriu acerca de si mesma. Se eu
pudesse, certamente mataria Bolsonaro com requintes de crueldade, mas é
justamente isso o que me consume, pois me torna não mais do que um espelho para
o horror que ele representa. Temos de aprender a lidar com o poço de piche de
irracionalidade que é esse desgoverno, para podermos enfrentar a racionalidade
perversa que ameaça a todos nós, pois assim como os nazistas usaram da razão
técnica europeia para massacrar meu povo com extrema eficiência, tudo aquilo
pelo qual lutamos duramente vem sendo destruído sistematicamente sem que haja
qualquer reação organizada. Depois de tantos anos discutindo coisas tão bobas
quantos adereços de cabelo, ou palavras adequadas ou indequadas, o verdadeiro
horror nos paralisou. Há um cano de fuzil apontado para as nossas cabeças, e
não o vemos por estarmos nos afogando em ódio. O ódio é uma taça de veneno que
eu bebo esperando que o outro morra, a cada dia que eu bebo um pouco mais dessa
taça, nossos inimigos se fortalecem, e urge que os derrotemos.