Estamos em Setembro e há durante esse mês as ações do Setembro amarelo que trata da prevenção do suicídio e creio que isso merece alguma reflexão especialmente por tratar-se de um tema tão delicado. Nossa matriz cultural é judaico-cristã, e em ambas as religiões a despeito de existir uma visão positiva da morte, no sentido em que a morte é uma passagem para a vida eterna, desde que se tenha vivido um certo tipo de vida segundo alguns preceitos (preceitos esses sempre em disputa especialmente no universo judaico e protestante marcados pela fragmentação), existe nas duas um tabu acerca do suicídio, pois condenaria a alma daqueles que o cometem a danação eterna. A despeito da crença na imortalidade da alma ou da ressurreição dos mortos, a morte de deus anunciada por Nietzsche colocou em xeque nossa atitude otimista em relação à morte. Perdemos o lado bom, mas o tabu permaneceu, tirar a própria vida continua, no geral, sendo visto como algo odioso, covarde e extremado.
No que concerne aos eventos desse mês relativos ao suicídio, considero o espírito da coisa algo muito bom, mas no geral enxergo alguns problemas, problemas esses que discutirei. No que concerne ao espírito disso tudo, há algo de bom em se falar sobre algo que na maior parte do tempo não se pode mencionar, que é inconfessável, torpe e feio. Falar de maneira franca sobre o suicídio é de imenso valor, poder durante ao menos um mês debater o tema é algo inestimável, como asseverou Jung, só podemos nos defender de um inimigo que conhecemos. Na maior parte do tempo o suicídio é algo insidioso e sorrateiro, da qual se evita falar a todo custo, chega mesma a ser motivo de vergonha ter um parente que se matou.
No que concerne ao aspecto da prevenção, eu tenho cá as minhas dúvidas. Devo confessar que, mesmo depois de 20 anos de estudo da obra de Jung, e algum estudo de Psicanálise, História da Psicologia, Humanismo e afins eu não saberia como prevenir que alguém se mate, a não ser é claro sacrificando a vida psíquica da pessoa em questão com contenção física ou química, o que só tornaria essa vida insuportável e indigna de ser vivida. Se alguém realmente colocar na cabeça que deseja se matar e se decidir a esse respeito, ele ou ela vai se matar. Viver é algo bem difícil, morrer é fácil, mesmo pessoas que não desejam morrer podem encontrar com a morte com certa facilidade, desde que se esteja realmente decidido, há muitas formas de por fim a própria existência. Obviamente, algumas pessoas buscam ajuda, e confessam o inconfessável, que desejam extinguir a própria vida, mas essas certamente ainda estavam divididas quanto ao caminho a tomar. Mesmo no que diz respeito a essas pessoas que buscam ajuda, trata-se de uma situação extremamente delicada, que requer um tato e capacidade de atenção e empatia que poucas pessoas possuem, mesmo pessoas treinadas para tanto como enfermeiros, médicos, psiquiatras e psicólogos raramente estão preparados para ajudar, a maioria não suporta sequer ouvir alguém cogitar essa possibilidade nefasta.
Resta talvez a pergunta de como se pode evitar que alguém chegue ao ponto de não retorno e novamente deparamos com um nós górdio impossível de desatar. Como impedir ou prevenir que se viva uma vida que leve ao desejo de autodestruição? Muitas vezes nem mesmo sabemos as causas de um suicídio, de fato, creio que muitos suicidas também não o sabem, e mesmo assim o fazem. Como definir que tal ação é boa ou má, resultará nisso ou naquilo? Como diz o velho adágio alquímico “o touro é a mãe da serpente e a serpente a mãe do touro”, ou dito de outra maneira, não sabemos que bem gestará um mal e de que mal surgirá um bem. Jung assevera que muitas vezes em análise, justamente aquela que parece ser a atitude mais perigosa a ser tomada pelo paciente, a que potencialmente pode lhe ceifar a vida, é justamente a que lhe permitirá ganhá-la. E mais, qualquer um que viva uma vida heroica traz para mais perto de si o limite de sua vida. Quem poderia admoestar Martin Luther King a não fazer o que fez? A não correr os riscos que correu? Para usar um exemplo famoso da literatura, Hans Castorp encontrou seu destino e a sua vida ao ir para as trincheiras da primeira guerra mundial. Como disse certa vez Jung a sua maior discípula, M. L. von Franz, não nos é dado saber o que deus quer das pessoas. Não nos é dado saber, na mais das vezes, mesmo a causa de um suicídio, no fundo, na maioria das vezes podemos notar a causa eficiente, o gatilho, mas nos é invisível à intrincada rede de condições subjetivas que permite que aquele gatilho ponha em marcha o caminho de um suicídio.
A despeito de meu ceticismo, creio que é bom que mais pessoas pensem e falem sobre, creio que poucas pessoas jamais nutriram o sentimento secreto de se matar, mesmo que por um breve instante, ou em um momento de profundo desespero perderam as esperanças na vida. Devo confessar que nunca me passou pela cabeça tirar minha própria vida, mas já me ocorreu morrer, encarar a morte como um alivio possível diante de uma situação sumamente complicada que me enredou por alguns anos de padecimento. É bom que se desenvolva algum grau de empatia com quem sofre ao ponto de querer por fim ao sofrimento ao extinguir a própria vida. Não há meios de combater o sofrimento, pois é algo inerente a tudo o que vive, mas talvez seja possível dotar as pessoas de algumas ferramentas para lidar com ele, ou, ao menos, para não se horrorizarem com ele ou se sentirem fracas e menores por sofrerem. Somos todos seres de carne e sangue, seres de fraquezas e erro, mas nosso tropeço é justamente o que nos faz humanos, nosso sofrimento nos liga secretamente a toda a humanidade, quem pretende estar acima do sofrimento, se coloca numa posição impossível de isolamento dos demais e de si mesmo. Há caminhos, mas creio que os melhores desses caminhos são individuais, porém, qualquer um que acenda uma luz na escuridão estará ajudando a todos os demais que estão nas trevas. Ao nos redimirmos de nosso sofrimento, e com isso ganhando uma humilde posição entre os seres humanos sofredores, redimimos em algum nível a todos.