Há um certo tempo, que eu tenho algo meio engasgado
pra dizer, um desabafo. Na verdade, sempre me esquivei de fazê-lo, apesar de
não parecer, sou uma pessoa reservada. Muitos conhecem meus posicionamentos
políticos e intelectuais, mas apenas um número muito reduzido de pessoas pode
dizer o mesmo acerca dos meus sentimentos, mas creio que já é chegado a hora de
fazê-lo. O motivo de fazer algo que, no fundo, me desagrada tanto, é a reação
de duas pessoas queridas ao se aproximarem um pouco mais de mim, e sua
expressão de um certo receio no que concerne a mim, o que me entristeceu profundamente.
A primeira foi uma reação a uma frase banal pra mim, quando afirmei desconhecer
algo e tive, dessa pessoa querida, a seguinte resposta “então você admite que
não sabe de tudo?”. O intuito das palavras não foi o de ferir, mas esse foi o resultado,
e me senti na obrigação de me explicar. Certa feita, meu amigo Filipe, me disse
que quando eu estou falando, lecionando ou proferindo uma conferência eu sempre
mostro o melhor, não titubeio, não duvido, sempre tenho uma resposta rápida e
sagaz, e que isso é algo um tanto demoníaco e assustador, pois o tropeço é
justamente o que desperta a nossa compaixão, ou, para usar a expressão de outra
pessoa querida, sou “assertivo”. Levei a sério essa admoestação, e acrescentei
uma dose maior do humor judaico ao meu repertório, mas creio que a impressão
causada foi duradoura. Quando me expliquei a essa amiga, lhe expus algumas das
minhas mais caras convicções, o que lhes faço agora.
Eu não creio que qualquer teoria seja capaz de dar
conta do mundo, assim como Popper, creio que nosso conhecimento é finito
enquanto nosso desconhecimento é infinito, e que a postura intelectual e moral
adequada ao cientista é aquela expressa pelo racionalismo crítico “eu posso
estar errado e você estar certo”, tenho fé na minha razão, mas maior é a minha
fé na razão dos outros. Acredito na tolerância, que deve ser dada aos outros a
oportunidade de expor seus pontos de vista mesmo que sejam opostos aos meus, e,
o mais importante dessa postura, acredito firmemente que, mesmo alguém culto e
inteligente, ou bem preparado ou o que seja, deve rejeitar qualquer pretensão
de autoridade, ninguém deve ser o seu próprio juiz. Nenhum conhecimento genuíno
vem da autoridade e todo ele é conjectura. Assim como Aristóteles expos em sua
retórica, eu creio firmemente que o papel do professor não é convencer, mas
ensinar. Assim como William James, um dos meus heróis intelectuais, não creio
na existência da “Verdade”, única e com v maiúsculo, não penso que o universo
seja um enigma que possui uma resposta, uma palavra de poder que ao ser
encontrada me permite descansar, os “nomes dos demônios” que Salomão possuía.
Ao contrário, acredito em verdades operacionais que servem até o momento em que
puderem ser veículos para me levarem mais longe, como atalhos conceituais que organizam
o caos da experiência e geram mais trabalho. Assim como Jung, de quem sou
discípulo póstumo, creio que há um limite existencial, e inalienável a toda e
qualquer pretensão de saber, que há coisas que ignoramos e ignoraremos (e essa
postura ele retira, em parte, de Kant), que por melhor que seja o meu ponto de
vista, as minhas teorias, ele depende, em larga medida, da minha equação
pessoal, logo, é necessariamente limitado. O que me anima como professor,
especialmente de Psicologia Junguiana, é saber que há coisas que eu jamais
seria capaz de formular e que apenas outras equações pessoais, poderão. Assim,
me anima a esperança de ver meus alunos, ao descobrirem quem são, serem capazes
de formular sua verdade a partir de sua individualidade, dizendo coisas novas
para mim e ampliando, assim, o meu horizonte. Muitos são os fatores que me
limitam, eu sou um homem, falo da perspectiva do logos, e, há coisas que eu não
vejo e nem sinto, e que devem ser ditas e formuladas não por mim, mas pela alma
das mulheres, pelo eros. Assim como acreditava outro dos meus heróis, Marc
Bloch, também creio que só posso afirmar aquilo que o tempo em que vivo me
permite, sou limitado por uma mentalidade coletiva, e dela posso escapar apenas
sutilmente. Mas, fundamentalmente, eu acredito nos outros, que sentido haveria
em ensinar se assim não fosse? Há na vida um aspecto artístico, as grandes
verdades devem ser ditas novamente a cada geração, de uma maneira adequada a
essa geração, nas palavras que eles possam compreender, assim, o trabalho da
cultura é um que jamais cessa. Creio, assim como Jung, que se eu tento formular
uma grande verdade, mas finjo que não sou atingido por ela, que ninguém está a
falar eu falho miseravelmente, mas que se falo a partir da maneira como um
problema que atinge a todos, também me atingem, estando visceralmente implicado
nisso eu posso enunciar uma verdade, que é minha, mas é uma experiência comunicável
que pode traduzir a experiência dos meus semelhantes.
Aprendi poucas coisas úteis com o meu pai, uma delas
foi a postura de educador. Há muitos anos, o governo do estado fez um curso
para velhas professoras, para que tivessem o diploma de curso superior, e meu
pai lecionava para elas, mas era muito atarefado. Como tinha muitas ocupações,
vira e mexe mandava o filho, estudante de história lecionar para elas, e ele
(eu) se esforçava para falar tudo o que podia e dar uma ótima aula, e,
invariavelmente tinha uma resposta plácida das senhorinhas, que diziam que eu
falava coisas bonitas e interessantes, porém entendiam pouco ou nada. Nunca me
queixei disso ao meu pai, mas um dia, depois de uma dessas aulas, meu pai se
queixou, não das alunas, mas de um colega professor. Esse colega, sempre falava
mal delas, e não tinha pudores em considerá-las um caso perdido, ao me narrar
isso, ele se virou pra mim e disse que retrucou ao tal colega desdenhoso “falar
mal delas é fácil, o difícil mesmo é trazê-las para o seu nível”. Desde esse
dia, eu tomei como regra jamais subestimar meus alunos ou meus ouvintes, evitar
pedantismos, mas, igualmente evitar me colocar num patamar de superioridade,
sempre que eu falo, sou animado pela crença na inteligência do meu público. Ainda
mais novo, meninote, vi o meu pai lecionando nas salas vazias da UFC da década
de oitenta. Havia 5 alunos, duas o ouviam com atenção falar sobre a Grécia, uma
se sentava mais distante e alheia, e um outro lia um jornal. Ao final da aula
eu perguntei a ele o motivo de não ter ralhado com o sujeito do jornal, achava
a atitude acintosa, sem pestanejar, ele disse “é problema dele, assiste aula
quem quer”. Nenhum de nós pode ser coagido, fundamentalmente somos livres, e
isso implica a liberdade de não querer estar ali, ou não ouvir, por mais que
seja o meu dever tentar tornar as coisas o mais interessante possível.
Por fim, ainda com Jung, tenho descoberto de novo e
de novo, a verdade de que tudo o que julgamos saber sobre nossos semelhantes é
um preconceito ou uma projeção. As pessoas são muito mais do que julgamos,
nosso julgamento é limitado e só podemos ver nos outros o que medra em nosso
coração, dependemos da trave em nosso olho para ver o cisco no olho do nosso próximo.
Eu tenho tido, sempre, a grata surpresa de me espantar com as pessoas que me
cercam, ou com aqueles que só via ao longe, há ali tanto que desconheço, que
seria uma pretensão genuinamente diabólica crer que meu preconceito sobre alguém
pode ser a verdade daquele sujeito. Cada ser humano com que me deparo, por
melhor que seja a minha intuição ou percepção é um grande mistério, e,
igualmente, um milagre irrepetível. Sim, minha querida, eu não sei de tudo e
nem pretendo saber, apesar de saber bastante, paradoxalmente, quanto mais eu
sei, mais devo compreender que não sei. O mundo pode não ser um enigma, mas,
certamente, é um mistério.
O outro motivo desse pequeno desabafo, dessa confissão
subjetiva dos valores que me animam, do meu “credo epistemológico”, é que outra
pessoa muito querida, ao se avizinhar mais de mim e do meu coração, disse do
receio de que a minha postura arrogante ser a base para uma atitude grosseira
ou desrespeitosa, e isso me feriu ainda mais. Não é à toa que escrevi um livro
sobre Naruto, todos os meus heróis empalidecem diante dele. O garoto idiota,
sem talento e odiado, não reconhecido e que, contra tudo e contra todos afirmou
sua individualidade, não para se vingar desses que o desprezavam, mas para ser
o maior bastião para defendê-los (o hokage). Poucas imagens poderiam descrever
melhor aquilo em que acredito quanto à narrativa de Naruto, a pistis, a fé confiante em si mesmo, necessária
a consecução de quem se é. Eu posso ser assertivo, muitas vezes duro, pois quem
quer ser professor deve abrir mão da necessidade de agradar sempre, mas jamais
teria coragem de desencorajar ou humilhar. Por anos e anos minha maior luta foi
para alcançar algum grau de Ahimsa (não violência), justamente para que minhas
palavras pudessem encorajar e não desencorajar. Eu já traí o meu herói, e, como
se trata de expor os meus sentimentos, que eu exponha também esse fato insólito
da minha vida. Eu estudava com o Wilson, Psicologia Analítica, há época era um
dos únicos que o fazia devido a sua antipatia (que ele mesmo admitia) e a minha
proverbial teimosia em não ser desencorajado por nada nem ninguém, mas um dia
eu me calei. Estava justamente falando sobre Naruto e o usando como metáfora, e
ele me dizia como já estávamos derrotados de antemão, como a psicologia analítica
estava morta e ninguém era capaz de compreendê-la e aceitá-la. Eu retruquei “que
dizer que eu não posso ser hokage?”, sua resposta foi um sonoro não, seguido da
poesia de Augusto dos Anjos “Vês, Ninguém assistiu ao formidável enterro de tua
última quimera, somente a ingratidão – essa pantera – foi tua companheira
inseparável”. E eu me calei, nos afastamos depois, mas, fosse eu fiel a mim
mesmo, teria dito, como Naruto diria que “esse é o meu jeito ninja, e ninguém
vai me dizer que eu não posso ser hokage”. Minha postura é a antípoda dessa,
sou um incorrigível otimista, e espero muito dos meus alunos, espero que eles
sejam muito melhores do que eu, se assim não fosse, qual o sentido de ensinar? Não
minha querida, eu jamais seria grosseiro de maneira gratuita, ou pedante e pernóstico,
saber de algo não lhe faz melhor ou pior do que alguém, são nossas decisões e
posicionamentos morais que nos fazem melhores do que nós mesmos. Jung, disse,
acertadamente, que inteligência em gente ruim é defeito e não qualidade, eu
preferia abrir mão da minha a ser alguém que trata mal as pessoas ou se sente
superior. Minha vida é uma sucessão de erros e fracassos, não estou em posição
de julgar ninguém, e, mesmo que estivesse, esse julgamento pertence apenas ao
altíssimo e não a qualquer homem de carne e sangue.
Tenho ouvido, das pessoas que se aproximam de mim
(tenho me tornado menos reservado), a rapidez com que essas quimeras que rodeiam
a minha imagem se dissolvem, ou, como me disse uma pessoa, como isso se desfaz
de maneira “espetacular”, mas ainda me dói um pouco que haja isso, e, me dói
ainda mais saber que, por um longo tempo, a minha postura fomentou essa
desconfiança. Eis um pedaço da minha alma exposta à luz do dia, um pouco da
minha verdade, não fossem essas duas feridas, jamais teria tido estímulo para
deitar a pena ao papel para deixar transparecer tanto assim de mim, mas aqui
está, esse é o meu jeito ninja.