Meu
mais recente livro, uma sucinta introdução à obra de Jung, tem uma capa que,
pela primeira vez, não foi feita pelo meu dileto amigo Filipe Jesuíno. Ele, além
de renomado psicoterapeuta e professor, é um talentoso livreiro e capista. Desta
feita, utilizei o programa do site da Amazon para, eu mesmo, criar a capa. Ele,
Filipe, achou a foto adequada, e a capa, por mais que simples, passável. Mas não
é extamente sobre a capa que desejo falar, mas sobre a fotografia de Jung que
escolhi para ilustrá-la.
Essa
imagem me remete a um interessante paradoxo, pois, é uma imagem muito antiga e
nela Jung está jovem. Em suas fotos mais recentes, mais próximas do nosso
tempo, ele é um velho, um ancião venerável. Quanto mais recente e nova a
fotografia, mais velho ele está e, quanto mais velha a foto, mais jovem o
mestre suíço se mostra. Na imagem que escolhi, ele ainda veste os trajes típicos
da era Vitoriana, que o movimento psicanalítico ajudou a demolir. Em sua
juventude, mesmo nos trajes elaborados da época, sua robustez quase camponesa,
como certa feita a qualificou von Franz, aparece claramente, bem como um olhar
um tanto desafiador. Talvez alguém dissese que se trata de um olhar arrogante. É,
porém, uma prerrogativa da juventude certa arrogância. Um de seus punhos está
cerrado, e seu rosto, tem um misto de placidez e tensão. Ele não sorri, está sério
e com um olhar oblíquo, encarando um futuro que lhe traria infindáveis labutas
para desvendar algumas das veredas da alma humana.
O
jovem Jung já era uma estrela em ascenção na Psiquiatria europeia, com uma
teoria sobre os fenêmenos ditos ocultos que mesclava as psicologias de Pierre Janet
e Flornoy com seus próprios achados empíricos, quando conheceu Freud. O próprio
Jung relata que, assim que conheceu o pai da Psicanálise, apontou a ele uma
falha na sua teoria do recalque, pois ela não dava conta dos fenômenos
subliminares. Poucos anos depois, eles romperiam em definitivo e, poucos
encontros intelectuais, foram tão mitificados quanto este. Jung seguiu seu
caminho e o antigo amigo e mentor já o acusava de místico, algo que ele sempre
se recusou a ser.
A
imagem do jovem Jung me remete justamente a vitalidade de sua obra mesmo depois
de tanto tempo. Sua ciência da alma já tem mais de cem anos e, mesmo
incompreendida e mistificada das maneiras ignóbeis e tolas, persiste como um farol
a iluminar todos aqueles que se aventuram a tratar de almas. Trata-se de um ofício
perigoso, exigente e anônimo. Ajuda-se silenciosamente e em segredo uma alma de
cada vez a desabrochar ou, ao menos, a escapar da horrenda estagnação e desunião
consigo mesmo que é uma neurose. Numa época de respostas rápidas, comunicação
instantânea, e obsolescência programada, um artesanato como o proposto por Jung
parece deslocado. Assim, o paradoxo da imagem fica mais flagrante, o jovem em
roupas antiquadas, vigoroso e viril numa juventude antiquada, porém, talvez as
vestes sejam mais elegantes e belas do que as que usamos hodiernamente.
O
método de Jung é lento, exaustivo, e dá ao paciente algo que muitos de nós
tememos: voz. O médico, esse de quem se exige tanto, tanto saber, tanta perícia,
tanta intelligence du coeur, está em pé de igualdade com
seu paciente, num diálogo em que se devem averiguar as afirmações mútuas, em
que fatores irracionais levam a modificações em ambos. Nesse diálogo, o
paciente está livre para ser quem ele realmente é. Em nossos tempos modernos,
podemos ser tudo, menos quem somos, e, se somos alguma coisa, é um produto o
que somos. Uma mercadoria, embalada em produtos caros que compramos para que
possamos ser tudo o que nos disserem para sermos. Esse método antiquado, lento,
repleto de agruras e descaminhos tem como ponto de chegada, após cansativa
jornada, o centro de nós mesmos.
Não
é à toa que Jung tem sido tão mistificado, transformado em pensamento new age barato, pois esse tipo de
espiritualidade tosca só serve para nos afundar ainda mais nas mentiras que
contamos na frente do espelho todo dia. Essas mentiras que nos permitem seguir
confortavelmente com nossas vidinhas desconfortáveis: um pouco de meditação
durante a semana e posso seguir sendo confortavelmente neurótico. O que o método
de Jung propõe, e que nos aterroriza tanto, é olhar para nós mesmos no espelho
da alma. Isso sempre nos revela, em primeiro lugar, que tudo aquilo que
pensamos saber sobre nós mesmos e sobre os outros é uma mentira piedosa, em
segundo que ainda somos infantis, presos a fixações absurdas, e, somente depois
de desvelar duras verdades, se abre o caminho para a individualidade. Fugimos
disso como o diabo foge da cruz, é isso, e apenas isso, que sua ciência, tantos
anos depois, tem a nos oferecer. A neurose tem o condão de obrigar alguns a
encarar essa senda estreita ou ser esmagado entre Sila e Caribidis, os demais
podem fugir até o dia em que se virem no estômago da baleia.
A
potência do paradoxo da fotografia de Jung se afigura para mim como uma
alegoria para o seu método e sua teoria: algo jovem e pleno de vida, mas
deslocado e anacrônico em nossos tempos. Seria algo triste, se nossa alma não
fosse além de moderna (algumas poucas, apenas) eterna. De qualquer sorte, meu
intuito, como tudo o mais que tenho feito todos esses anos – tenha eu sido
compreendido ou não – é o de fornecer alguma ajuda a outros que, como eu,
gostam de roupas mais antiquadas, ou fotografias em sépia. Por muito tempo acreditei
que meus livros eram a minha maneira de contribuir, de uma forma ampla, para o
ensino do modo como Jung encarava os fenômenos anímicos, seu método de pesquisa
e clínico. Essa crença me fez descuidar da responsabilidade mais imediata com a
possibilidade de ensinar as pessoas mais próximas e me levava a apenas reclamar esporadicamente do “estado de coisas” a que tínhamos chegado. Pois bem, foi
justamente o meu papel como professor que me levou a escrever algo que eu
sempre achei supérfluo: um livro de introdução.
Mais
uma vez eu lanço essa garrafa ao mar, esse mar encrespado do nosso mundo
agitado e rápido, com a viva esperança de que as minhas palavras possam ser de
alguma ajuda a alguém. Só o tempo dirá se meu intuito terá algum grau de
sucesso, e eu, modestamente, me darei por satisfeito de ajudar ao menos a uma
pessoa além de mim. Sempre que me dedico a escrever e pesquisar, saio eu mesmo
modificado, com uma visão mais ampla, mas, paradoxalmente, mais humilde. Pois,
percebo que, mesmo depois de tantos anos de labuta, tanto ainda resta a ser
compreendido. Nada mais antiquado, que um ofício que requer o esforço de uma
vida inteira.