Marcos
Feliciano, o famigerado deputado e pastor, escreveu uma justificativa para sua
indignação diante do texto de Simone Beauvoir, baseada em uma visão bastante
reducionista de sua biografia e a acusando de ter problemas emocionais por ser,
em resumo, pobre e rejeitada pelo pai. Então, uma vez mais, escrevo um texto
reativo, no intuito de rebater uma mera estupidez, todavia, como ele se coloca
no papel de intelectual à moda de Tom Wolfe (um idiota indignado que opina
sobre o que desconhece), volto a fazer meu papel de intelectual público, talvez
por falta de alguém melhor do que eu para fazê-lo.
Sem
maiores delongas, em termos lógicos o que Feliciano faz é uma falácia conhecida
pelo termo latino de Ad Hominem. Isso significa um recurso
meramente retórico, que na falta de possibilidades de refutar o argumento,
refuta-se a credibilidade da pessoa que produziu o argumento. No nosso caso, o
argumento da filósofa existencialista que precisa ser refutado pelo pastor é a
de que “mulher” é uma construção social e não uma realidade biológica trans-histórica
e irredutível ao tempo, espaço ou cultura. Para isso, ao invés de atacar o
argumento ou apresentar provas de que esse aspecto de construção não existe,
ou, ao menos mostrar evidências de que seu ponto de vista (essa unilateralidade
biológica) possui consistência, faz-se uso da estratégia canalha de atacar o
interlocutor minando a sua credibilidade. Esse é um recurso extremamente eficaz
e seduz muitas pessoas, por isso, além de simplesmente apontar o aspecto
falacioso do discurso do nosso farisaico e homofóbico pastor, vou explorar a
psicologia dessa falácia e refutá-la justamente em termos psicológicos.
Jung,
ao pensar na interpretação psicológica da literatura, apontava para um limite
metodológico dos mais importantes, que o colocava em uma posição diametralmente
oposta a de Freud. Esse limite é o de que ao se interpelar psicologicamente uma
obra literária, e tentar desvelar seus aspectos simbólicos, não é possível
fazer, como queria Freud, por meio da obra uma psicobiografia ou diagnóstico de
seu autor. Essa é uma impossibilidade, além disso, tal expediente não ajuda em
nada a interpretar a obra. É preciso termos em conta que Jung possuía uma veia pragmática
muito forte, e, como gosto de recordar, para ele, o único critério de validez
de uma hipótese é o seu valor heurístico, isto é explicativo.
Uma
obra de valor estético, intelectual ou emocional, por certo, tem em seu autor o
solo nutritivo de onde se originou, mas ela é um objeto, no sentido de existir
objetivamente para além da personalidade do autor. Pensar na personalidade do
autor, ou seja, encarar a obra pelo viés do método redutivo causal (pois o
autor é causa eficiente da obra) não deixa de ser importante, mas é
cientificamente insuficiente. Além disso, como já afirmava William James, os
aspectos redutivos ou causais, que ele denominava de “juízos existenciais” não
podem me elucidar o valor da obra. No que diz respeito ao valor de uma obra,
não posso me fiar, baseado tanto em James quanto em Jung, em Juízos
existenciais como os utilizados por Feliciano (a obra se origina de uma mulher
emocionalmente instável e com problemas de aceitação), é preciso que me
pergunte sobre o que James chamava de “juízo de valor”, ou seja, bem agora que
a obra está aqui, qual seu sentido? E qual seu valor? Para isso eu já preciso
ter um juízo de valor ou espiritual pré-existente (no caso do pastor esse juízo
espiritual são seus preconceitos ou sua leitura literal e farisaica da bíblia),
em outros casos esse juízo espiritual será uma filosofia, uma teoria da história,
ou uma teoria psicológica.
No
caso de Jung, seu método sintético, ou o critério heurístico da finalidade, faz
com que o valor de uma obra não possa ser haurido exclusivamente de suas causas
ou origens. Até mesmo pelo motivo de que, todos nós, e isso Jung já apontava,
somos frutos de nosso tempo, ele afirmava em seu Psicologia e Alquimia, que cada uma de nossas opiniões e
sentimentos é, em seus mínimos detalhes, condicionada historicamente. Ele apontava
como o paradoxo inescapável da Psicologia a antinomia entre o geral (genérico)
e o particular (individual), dizia ela “individual não importa perante o genérico
e o genérico não importa perante o individual”. Não bastasse isso, ao pensarmos
na existência de um fator irracional existencial inalienável, um inconsciente,
percebemos que uma produção literária depende da consciência (que é
condicionada cultural e historicamente) apenas em certa medida, seu aspecto
simbólico provém do diálogo dessa consciência com o que denominava de complexo
criativo, ou seja, da participação do inconsciente e de sua influência nesse
processo, o que garante o status objetivo da obra.
Afirmar
que Simone tinha problemas emocionais é simplesmente afirmar a sua humanidade,
não passa de uma platitude, todos nós possuímos problemas emocionais, ou ódio e
inveja, esse é o humano demasiado humano. Nietzsche terminou sua vida louco,
Heidegger foi um membro ativo do partido nazista, Jung teve diversas amantes, Foucault
era sadomasoquista e nada disso diminui o valor objetivo de suas obras. Veja,
eu poderia (como o fiz ironicamente) simplesmente refutar a estupidez de Feliciano
afirmando que ele é um vendilhão da fé, um político venal, e um reacionário com
ideias medievais, mas não o fiz. Eu ataquei o seu argumento e mais, é preciso
notar que o homem comum tem um enorme prazer em ver os grandes caírem, pois o
homem médio parece não perceber que tudo o que é real, tudo o que é
tridimensional projeta uma sombra, isso é inevitável. Para o homem médio, com
seu entendimento bidimensional, se você apontar uma falha em um grande homem
isso basta para destituí-lo de sua aura de grandeza. Esquecem-se de que o alto
só pode se apoiar no baixo, que para que os galhos de uma árvore toquem os céus
suas raízes devem descer até as profundezas do inferno. O homem médio precisa
destronar os grandes ao simplesmente lhes conferir humanidade, pois ele não
pode imaginar que eles não sejam titãs infalíveis, se eles forem meramente
humanos como ele o é, o homem médio perde a desculpa para a sua mediocridade.
Todos
os grandes homens, além de grandes foram homens. Tinham suas mesquinharias,
ódios, egoísmos, invejas, instabilidades, e é provável que sem isso, sem essas
peculiaridades que lhes garantiam os mesmos problemas e vicissitudes que o
resto da humanidade, suas obras não pudessem calar tão fundo em todos nós. Apontar
a humanidade de Beauvoir para diminuir sua obra é tolo, e somente ressalta a
mediocridade de seus agressores, realça seus preconceitos afetivos. Todos nós
somos homens e mulheres de carne e osso, nascidos em uma cultura, com uma
história, recebidos em uma linguagem, com um ponto de partida biológico, todos,
mesmo aqueles de nós que são grandes, talvez, esses especialmente. Talvez, por
terem feito o que o homem médio não faz, encarar suas sombras, essas pessoas
puderam ver o mundo por uma ótica inovadora, pois para aqueles que não são
capazes disso o mundo é uma construção subjetiva porém desconhecida, o
mundo é visto pelas lentes turvas de uma
fantasia mórbida e de validade geral que impede o reconhecimento da própria
individualidade e, por conseguinte, a individualidade dos seus semelhantes. Não
sejamos medíocres, como dizia o fundador do protestantismo, imbuído de profunda
sabedoria “sê pecador e peca fortemente, mas crê ainda mais fortemente”.